O segredo abafou a beatificação

Estava toda a gente à espera. E ninguém estava, afinal, à espera. Muito se tinha especulado sobre a revelação do terceiro segredo de Fátima, muito se tinha dito que o Papa iria aproveitar esta visita, talvez derradeira, à Cova da Iria, para destapar esse assunto-chave do fenómeno fatimita. Mas, ao mesmo tempo, ninguém acreditava que, ao fim de tantos anos, ele fosse finalmente partilhado com o povo de Deus. O Papa, que se considera beneficiário de uma acção divina, é afinal um miraculado. O mistério foi anunciado no final do acto litúrgico, celebrado por João Paulo II, onde Jacinta e Francisco foram beatificados e Lúcia aclamada como uma santa viva.

Ouvida com atenção, a homilia do Papa levantava já a ponta do véu: "E desejo uma vez mais celebrar a bondade do Senhor para comigo, quando, duramente atingido naquele dia 13 de Maio de 1981, fui salvo da morte. Exprimo a minha gratidão também à beata Jacinta, pelos sacrifícios e orações oferecidas pelo Santo Padre, que ela tinha visto em grande sofrimento."Depois, coube ao cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, desvendar o resto. E foi nesse instante que se fez mais silêncio em todo o recinto do santuário. "O Sumo Pontifíce incumbiu-me de vos comunicar uma notícia."A declaração lida por Sodano, de cujo significado muitos peregrinos não se aperceberam, acabou por relegar para segundo plano o próprio acto de beatificação de Jacinta e Francisco Marto, feito no início da missa de ontem. O padre Luís Kondor, vice-postulador da causa da beatificação, já exprimira na véspera o receio de que isso pudesse acontecer. O Papa aproveitou a homilia para se dirigir às crianças: "Vejo muitos de vós vestidos como Francisco e Jacinta. Fica-vos muito bem. Mas logo ou amanhã já deixais essa roupa e... acabam-se os pastorinhos. Não haviam de acabar, pois não? É que Nossa Senhora precisa muito de vós todos, para consolar Jesus, triste com as asneiras que se fazem, precisa das vossas orações e sacrifícios pelos pecadores."As crianças tiveram, como havia sido anunciado, um papel central na cerimónia, em particular em alguns dos seus momentos, caso do ofertório. Duas crianças, idas do Hospital D. Estefânia, em Lisboa, onde Jacinta morreu, entregaram uma cópia do registo médico da hospitalização. Miúdos de Zakopane, na Polónia, onde existe um santuário de Nossa Senhora de Fátima, ofereceram um cálice, um cibório (vaso sagrado) e um paramento para aquele santuário. Um casal com os seus cinco filhos entregou ainda ao Papa um conjunto de textos para juntar ao processo de beatificação de frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga no século XVI e um dos principais intervenientes no concílio de Trento.Aparentando maior abatimento que na véspera, João Paulo II não conseguiu resistir: perante o discurso de petição da beatificação, feito pelo bispo de Leiria-Fátima, Serafim Ferreira e Silva, num tom de voz como que a contar histórias a criancinhas, cerrou os olhos e adormeceu por alguns segundos. Depois, e em resposta ao pedido formal, o Papa declarou oficiamente beatos os dois irmãos, que passarão a ser venerados no dia 20 de Fevereiro, data da morte de Jacinta.João Paulo II falou do significado da beatificação e da personalidade dos dois videntes. E referiu-se à "luta entre o bem e o mal" presente na história do século XX: "Quantas vítimas ao longo do último século do segundo milénio! Vêm à memória os horrores da primeira e segunda Grande Guerra e doutras mais em tantas partes do mundo, os campos de concentração e extermínio, os 'gulags', as limpezas étnicas e as perseguições, o terrorismo, os raptos de pessoas, a droga, os atentados contra os nascituros e a família."Entre a multidão, onde muitos chapéus de chuva serviam para abrigar do menos esperado sol, nem sempre as suas palavras ou os actos da celebração chegavam com a necessária clareza. Muitos só através de dois ecrãs colocados perto da Cruz Alta, conseguiam ir acompanhando o que se passava no altar. O som das palavras pronunciadas chegavam depois das imagens, as palmas que pontuavam alguns momentos da cerimónia espalhavam-se pelo recinto como que em cascata: ouviam-se no altar, no som da instalação sonora, repitam-se no extremo oposto do recinto.Esta foi a terceira viagem a Fátima de um Papa que parece querer estar a "arrumar as gavetas", despedindo-se dos lugares que lhe são queridos, das devoções que mais lhe tocam, dos objectos que mais significado lhe traziam. Uma bala, um anel, Fátima já tem tudo isso na sua parafernália de culto, oferendas de João Paulo II. O coração do papa, esse, parece também estar, desde sempre, mais agora, aos pés da Virgem, cujo culto fortaleceu.*Com Fernando Correia de Oliveira e João Manuel Rocha

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