O eclipse da humanidade

Até onde pode ser esticado o argumento do direito à legítima defesa de Israel? Qual é o seu limite de carnificina? Essa corda já partiu há muito.

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É inegável que podemos traçar uma história da humanidade através das suas guerras, atrocidades e violência. À medida que avançamos nessa história até aos dias de hoje é cada vez mais difícil argumentar que, apesar de várias teorias explicativas, especialmente no seio da escola realista das relações internacionais, a guerra se pode justificar com pressupostos de racionalidade.

Num recente ensaio, Explaining the Irrationality of War (Explicando a Irracionalidade da Guerra), Michael Mann elenca de forma muito breve o seu argumento: considerando que a ganância, status, honra e glória, e o amor pela dominação de outros povos são motivos claramente importantes para quem governa, não podemos dizer que racionalidade predomina nas suas decisões que levam à guerra.

Ainda assim, ausentar de racionalidade a decisão de causar destruição humana, material e traumas profundos que perduram e dominam o passado, presente e futuro de gerações inteiras, não é absolvê-la.

Perante crimes atrozes, como os que estão a acontecer em Gaza há vários meses, agora com um capítulo ainda mais abominável em Rafah, é costume empregar-se a adjectivação de "desumano". Não podia ser mais errado. É profundamente humana a prática de atrocidades. Mas é também um imperativo da nossa humanidade punir, no expoente máximo dos quadros legais existentes, quem as comete e ainda mais importante exigir que tudo se faça para lhes pôr termo.

Vamos ao primeiro; a punição. O Estado de Israel tem-se escudado – e visto esse escudo abrigado pelas declarações de Biden e Von der Leyen – no direito à legítima defesa depois dos, também atrozes, ataques cometido pelo Hamas a 7 de Outubro. Desde então os intensos bombardeamentos das forças israelitas causaram mais de 30 mil mortos, entre os quais milhares de crianças, e mais de 70 mil feridos. Os que sobrevivem lutam diariamente contra uma imposta – essa sim, desumana – condição de fome, doença e terror. Até onde pode ser esticado o argumento do direito à legítima defesa? Qual é o seu limite de carnificina? Essa corda já partiu há muito.

Não há aqui racionalidade possível, mas também não há qualquer guerra a racionalizar. Não há Estado nem exército contra o qual Israel combate em Gaza. Há cinza, escombros e morte perante uma máquina insaciável que continua a avançar. É um massacre indiscriminado, diário, impune. Quem o ousa punir é ameaçado. Há neste momento em curso um clima de retaliação contra quem protesta a barbárie. Em universidades norte-americanas há repressão policial. Do seu Congresso surgem intimidatórias ameaças contra o Tribunal Penal Internacional (TPI) caso os seus juízes decidam dar ordem de detenção aos responsáveis israelitas. No passado dia 3 de Maio, o TPI emitiu um comunicado exigindo que todos os tipos de intimidação devem parar.

Não há, ainda, qualquer punição e o Estado Israelita já conseguiu pôr em marcha uma campanha de acusação contra quem possui legítima força acusatória.

Vamos ao segundo; pôr termo. No eixo europeu da aliança atlântica, sempre sensível ao auxílio permanente à causa ucraniana, depois da invasão da Rússia de Putin, não se vislumbram semelhantes esforços à humanamente causada catástrofe em Gaza. Von der Leyen publicou um tweet a 8 de Outubro dizendo que “Israel tem o direito de se defender – hoje e nos dias que virão”. Depois do que tem sucedido de Outubro até agora, não se conhece uma única palavra sua a condenar a chacina do Estado de Israel.

Cá em Portugal, a 7 de Abril, a conta do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a cargo do ministro Paulo Rangel, decidiu lembrar os seis meses do “ataque bárbaro do Hamas contra civis em Israel”. Certo. Pela Palestina nem uma palavra.

Os nossos vizinhos espanhóis, conjuntamente com a Irlanda, decidiram liderar uma iniciativa de aliança para reconhecer a Palestina como Estado. Afirmando a sua capacidade diplomática, não esperando por indicações ou iniciativas da UE, Espanha e Irlanda assumem a plena potência dos seus poderes soberanos contra o eclipse de humanidade que vemos televisionado em Gaza.

Portugal, com o seu reconhecido papel de diplomacia no mundo, perdeu uma oportunidade histórica – ainda para mais com um português no mais alto cargo diplomático.

A espuma dos dias discute reparações históricas do colonialismo. O que é isso tem a ver com Gaza, perguntam vocês. Nada na forma, tudo na substância.

Liderar, acompanhar e assumir politicamente a plenitude dos poderes de influência diplomática, pública e global, para deter um processo de atrocidade contínua infligido a um povo, é também afirmar-se no presente contra outros cometidos no passado. A história da humanidade não é só feita de quem violenta. Hoje deve ser sobretudo de quem luta para o impedir.

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