Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo é um dos filmes do ano

Contra o capitalismo selvagem e a uberização do trabalho, Radu Jude monta um imponente e hilariante monumento metaficcional que ergue um espelho ao mundo em que vivemos.

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O filme Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo estreia-se esta quarta-feira nos cinemas
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Do seu filme anterior, Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental (2021), dizia o cineasta Radu Jude ter tentado fazer “um filme histórico sobre o presente”. A descrição aplica-se na perfeição ao seu sucessor, Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, que pega no modo de transporte fetiche do cinema iraniano, o carro, para tecer uma teia metaficcional sobre 24 horas na vida de uma assistente de produção.

Sim, escrevemos “cinema iraniano”, e sabemos perfeitamente que Jude é romeno, e também é verdade que por aqui passam memórias de Week-end de Jean-Luc Godard — mas há tanto carro neste filme que estamos sempre a pensar em Abbas Kiarostami ou Jafar Panahi. Isto, claro, se Kiarostami e Panahi tivessem um humor escarninho de cortar à faca.

Também faz sentido invocar os iranianos porque (embora noutro registo) Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo é um filme sobre a encarnação, a encenação, a performance do real. É suposto que Angela, a nossa heroína, entreviste figuras que tiveram acidentes de trabalho para escolher os que ficariam melhor num filme institucional que é essencialmente uma fachada para projectar virtude. Entre essas visitas, faz vídeos para o TikTok em que se faz passar por um influencer macho e boçal cuja masculinidade tóxica é levada a sério por muitos, e faz de penetra numa rodagem de Uwe Boll, “o pior realizador do mundo” (interpretando-se a si próprio).

Confusos? Ainda só aflorámos a superfície: Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo não é um filme, são dois, três, quatro, cinco, numa colagem fragmentada, mas nunca dispersa, misto de montanha-russa e comboio-fantasma, cruzamento de linguagens e imagens que dialogam umas com as outras e com o espectador para construir um retrato impiedoso, devastador, do nosso mundo. As aventuras de Angela no trânsito de Bucareste, levando a mãe à campa onde os avós estão enterrados, visitando o advogado que trata do condomínio de luxo que vai ocupar o cemitério, servindo de motorista à chefe austríaca (surpresa, é Nina Hoss), são uma denúncia tão sarcástica como elegante da uberização do trabalho e do capitalismo selvagem.

E ainda há imagens de arquivo da Roménia do passado — na verdade, excertos de um filme de 1981 sobre uma mulher taxista, Angela Moves On, e Jude insere as personagens desse filme, interpretadas exactamente pelos mesmos actores, 40 anos depois, nas rondas de Angela. E ainda não falámos do plano único de 30 minutos que termina o filme (a rodagem em tempo real do tal vídeo de segurança institucional), nem de tudo isto ser inspirado em histórias verídicas dos tempos de assistente de Jude.

O que interessa realmente dizer sobre Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo é que é um dos filmes do ano, uma radiografia inteligente, em alta definição, dos tempos que vivemos, que fala de coisas muito sérias a meio caminho entre o resmungo resignado e a indignação à beira de explodir. Ou que é um esplendoroso exemplo de reinvenção e redefinição das fronteiras do que pode ser um filme, integrando o artístico e o popular, o artifício e o sincero, num todo que está permanente a apanhar o espectador em desequilíbrio e usa a ficção para chegar à essência do real.

E há lá melhor sensação do que descobrir algo de genuinamente inteligente, lúdico, que brinca com o que o cinema pode ser sem perder de vista o que ele foi e é?

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