Roger Corman, que preferia dez filmes de um milhão a um filme de dez milhões

Como realizador, foi fino e imaginativo. Mas a sua importância como produtor pede meças a isso. A importância de Roger Corman foi enorme.

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Em Grandeur et Décadence d'un Petit Commerce de Cinéma, um dos muitos filmes em que reflectia sobre a economia do cinema, Jean-Luc Godard punha as suas personagens a exprimirem uma dúvida que ficava sem resposta: “Porque é que um produtor que tenha dez milhões pensa em fazer um filme de dez milhões e não pensa em fazer dez filmes de um milhão?” A citação vem de memória, a letra pode não ser bem esta, mas o espírito é este, a prevalência da ideia de que o cinema tem de ser caro, que o prestígio de uma produção se mede pelo dinheiro envolvido, que o filme barato é uma coisa indesejavelmente plebeia (ideias de sempre que não passaram com o tempo, bem pelo contrário). Dentro do sistema industrial americano, não terá havido muitos a preferirem os dez filmes de um milhão ao filme de dez milhões. E, entre os que houve, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, nenhum terá sido mais famoso, consistente e influente do que Roger Corman.

Corman atribuiu ao “filme barato” uma nobreza que talvez ele nunca tivesse tido, pegando nas ruínas da série B (um legado do sistema de produção clássico que se começava a desfazer na viragem dos anos 1950 para os anos 1960) e enchendo-a de cores. Literalmente, porque alguns dos mais belos, mais inventivos e expressivos usos da cor no cinema se encontram em filmes seus — sobretudo nos filmes do célebre “ciclo Poe”, uma série de adaptações/inspirações do universo de Edgar Allan Poe, do Corvo à Casa de Usher, que estão entre o mais notável da obra de Corman como realizador (e quase só por eles erigiram a lenda de Vincent Price).

Neles se desfazia também a ideia de que o “filme barato” tinha de ser “mal feito”: a adequação da expressão às condições de produção era tão perfeita que todos esses filmes (e isso ainda impressiona quando vistos hoje) parecem muito mais caros do que de facto foram, mostraram que a “opulência” tem mais que ver com a inteligência com que se usa os recursos que se tem à disposição do que com o livro de cheques que pagou esses recursos. E Corman gabava-se de (quase) nunca ter feito um filme que perdesse dinheiro — um dos poucos que perdeu foi um dos seus filmes mais directamente “políticos”, o soberbo The Intruder, de 1962, um dos primeiros filmes americanos a pegar de caras o touro do racismo (Corman dizia que tinha aprendido uma lição com esse fracasso: os “temas” tinham de vir de esguelha, como bem aplicou uns anos mais tarde em The Trip, maneira de abordar, sob a superfície de uma “comédia de LSD”, o impacto político da contracultura americana do final dos anos 1960).

Como realizador, Corman foi fino e imaginativo. Mas a sua importância como produtor pede meças a isso. Sobretudo na década de 1970, quando fundou a New World e praticamente deixou de realizar, patrocinando os primeiros passos de uma quantidade de gente muito jovem que se converteria no futuro do cinema americano: Jonathan Demme, Joe Dante, John Sayles, James Cameron, Martin Scorsese, entre muitos outros, assim como antes disso, ainda na década de 60, já fora pela mão de Corman que realizadores e actores como Francis Ford Coppola, Jack Nicholson, Dennis Hopper ou Peter Bogdanovich acederam à profissão. Outra vantagem dos dez filmes de um milhão sobre o filme de dez milhões: multiplica-se por dez as pessoas a quem se dá trabalho. A importância de Roger Corman foi enorme.

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