Pedro Sánchez e César Bórgia

A trajetória política do presidente do governo espanhol é um caso notável de sobrevivência política e perpetuação no poder.

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Foi no longínquo ano de 1532 que O Príncipe – a obra cimeira que inaugurou a filosofia política moderna – foi publicado postumamente. Com a sua obra-prima, Nicolau Maquiavel pretendeu apresentar a política como ela realmente é, e não como deveria ser. O autor florentino quebra, de certo modo, com os clássicos e as suas conceções idealistas relativas ao governo do Estado e cria um breve e, simultaneamente, sofisticado tratado político sobre a conquista e manutenção do poder.

Maquiavel foi contemporâneo de César Bórgia, um poderoso nobre, homem da igreja, das armas e da política. Maquiavel conheceu e lidou com Bórgia, tendo sido grandemente influenciado por este ambicioso e controverso anti-herói do turbulento contexto político renascentista. César Bórgia tornou-se, inclusive, uma personagem central da obra de Maquiavel, mas O Príncipe manteve-se uma referência muito para além de Bórgia e do seu tempo; muitos outros príncipes, reis e homens de Estado do passado leram e estudaram a obra, bem como qualquer estudante de Ciência Política da atualidade.

Não sabemos se Pedro Sánchez leu Maquiavel, mas certamente alguns dos seus assessores o fizeram. A trajetória política do presidente do governo espanhol é um caso notável de sobrevivência política e perpetuação no poder. O recente episódio da sua eventual demissão, é mais um exemplo paradigmático, onde se detetam várias estratégias clássicas interligadas entre si. Primeiro, a vitimização, em que a sua esposa Begoña Gómez (suspeita de tráfico de influências e corrupção) vê a investigação judicial de que é alvo instrumentalizada, sendo apresentada como se se tratasse de um peão frágil e vulnerável em risco de ser eliminado por forças do mal. Segundo, a polarização, em que essas forças são identificadas com a direita, em que o poder judicial e os media são apresentadas como entidades subversivas e antidemocráticas, capazes de tudo para atingir os seus fins. Terceiro, a sedução, em que Sánchez vai ao encontro dos seus parceiros de coligação (desde a esquerda radical do Sumar ao centro-direita independentista catalão do Junts, de Carles Puigdemont) que partilham um histórico de lutas políticas contra a direita.

O atual contexto da política espanhola sugere que este episódio não foi mais do que uma falsa crise política. O caso Koldo (um caso de corrupção grave ligado a governos de Sánchez), a crescente força eleitoral dos independentismos (que marcaram as recentes eleições galegas e bascas e que, possivelmente, marcarão as próximas eleições catalãs) e os atuais maus resultados em sondagens a nível nacional por parte do PSOE foram momentaneamente esquecidos. Sánchez conseguiu colocar os espanhóis a falar de uma crise que afinal não se concretizou.

A verdade, contudo, vem sempre ao de cima. Será uma questão de tempo até que surja uma nova crise, para a qual nenhum tratado de filosofia política ou estratégia dará resposta. A Espanha vive uma situação de bloqueio legislativo em que, dificilmente, será aprovado o Orçamento do Estado. Nem mesmo os conselhos de Maquiavel conseguiriam salvar Sánchez das crises reais de governação que se avizinham, considerando os interesses divergentes dos diferentes parceiros de coligação.

O mundo de Pedro Sánchez é muito diferente do mundo em que viveu César Bórgia, mas a política continua a ser sobre como conquistar e manter o poder; e os acontecimentos recentes sugerem que Sánchez se manterá no poder por pouco tempo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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