Três tons de esquerda e uma pincelada de contraste liberal

João Oliveira quer preparar Portugal para um eventual divórcio com o euro. Catarina Martins e Francisco Paupério querem o BCE sob escrutínio dos eurodeputados. Cotrim Figueiredo exasperou-se.

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Não foi "vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão", como canta Fafá de Belém, mas o debate desta sexta-feira entre os cabeças de lista às europeias da CDU, Bloco de Esquerda, Livre e Iniciativa Liberal teve uma mancha cromática e ideológica comum a três dos candidatos, ainda que de tons razoavelmente distintos, e uma pincelada de contraste na figura do quarto candidato.

Vermelhão houve, vá. João Oliveira (CDU) diz que Portugal “deve preparar-se para libertar-se das políticas associadas ao euro”, que o comunista entende impedirem opções políticas e económicas nacionais por melhores salários e maior investimento público.

Significa isso sair do euro? Oliveira deu a volta à rotunda várias vezes, mas não era preciso um “sim” ou “não” para se perceber a resposta: o comunista disse que "o euro é um obstáculo", que há países que não têm o euro e vivem muito bem, e que não se pode ficar “de braços cruzados com a ruína das famílias e das empresas com as taxas de juro que o BCE impõe”.

Sim, a “prazo dilatado”, a CDU quer Portugal fora do euro. Não se interpreta de outra forma o que João Oliveira disse. E quer que o país se comece a preparar para o eventual divórcio. É provável que os comunistas digam nos próximos dias que não o disseram, que se exaltem porque ninguém os compreende (logo com Oliveira, um excelente comunicador), mas é esse o debate que querem abrir e é evidente o lado que escolhem.

Seguem-se dois tons avermelhados, bastantes distintos em vários momentos ao longo dos últimos anos, mas não tanto neste debate da TVI e da CNN. “O Livre é europeísta e convictamente europeísta”, vincou Francisco Paupério neste seu terceiro round televisivo, novamente abaixo da sua boa estreia. O que faz sentido “não é Portugal sair do euro”, diz Catarina Martins (BE). E ambos convergem na necessidade de ter um BCE sob escrutínio do Parlamento Europeu.

É aqui que se assiste a um de vários momentos de exasperação de João Cotrim Figueiredo (IL), a quem coube o papel de contrastar e contestar as posições dos outros três candidatos. Exasperação essa que se confundiu várias vezes ao longo do debate com arrogância, tendo acusado João Oliveira, Catarina Martins e Francisco Paupério de “roçar a ignorância económica” e de “iliteracia financeira”.

O liberal defendeu veementemente a independência do BCE e o seu mandato cimeiro de controlar a inflação, “o pior imposto para os mais pobres, o mais regressivo, o que come os rendimentos”.

De volta ao eixo Paupério-Martins: convergência q.b. sobre o que deve ser o mandato do BCE. A ex-líder bloquista (que tal como Cotrim e Oliveira voltou a exibir o traquejo que ainda falta ao candidato do Livre) lembrou a acção do banco central na gestão da crise das dívidas soberanas para defender que há espaço para acções exteriores à rigidez do mandato, desde que haja vontade política para tal, nomeadamente face à crise climática. E Paupério (que voltou a mostrar conhecer a arquitectura comunitária para lá de um scroll na Wikipédia) recordou que “o BCE já tem um mandato secundário, que é ambiental e social, mas não o exerce”.

De volta a Oliveira: ruptura. A inflação não é igual em todos os países da zona euro, logo a taxa de juro decretada pelo BCE também não devia ser a mesma, defende. Essa é uma das críticas centrais do comunista: a rigidez das regras comuns. Outra: que “há uns mais filhos do que os outros”, e que os grandes países têm liberdade para ignorar as exigências de estabilidade orçamental, enquanto o Orçamento do Estado português é controlado pelas instâncias europeias.

E o crescimento? Cotrim cumpre o seu papel e ataca as “muitas propostas para aumentar a despesa, zero propostas para o crescimento económico” dos seus adversários. Insurge-se contra a ideia de aumentos salariais por decreto (Oliveira exige-a, por via do reforço da negociação colectiva; Paupério quer um salário mínimo europeu; Catarina Martins diverge aqui do Livre) e alerta que “a Europa transformou-se na campeã da burocracia”, e que está a ficar para trás em relação aos Estados Unidos e a outros blocos.

Cotrim quer recuperar e reforçar “os drivers” que colocaram a Europa a crescer no passado, “o mercado único e a liberdade de circulação”. E ataca o “populismo de esquerda” que “apela à inveja”, o “ódio ao lucro” que é maior que o “amor pelas pessoas”. (“Quer falar de inveja às pessoas que viram duplicar a prestação da casa?”, ripostou Oliveira.)

O liberal desvaloriza a preocupação do comunista, da bloquista e do progressista com as desigualdades sociais e sublinha a necessidade de crescimento económico: “Eu quero que 99% das pessoas vivam melhor, não estou preocupado que 1% das pessoas vivam muito melhor.”

Mas até ouviu propostas de crescimento da boca dos seus adversários. Catarina Martins e Francisco Paupério convergiram novamente ao assinalar a transição energética como uma enorme oportunidade económica, desde que suportada por mecanismos de protecção e de programas de formação para os trabalhadores que arriscam ficar para trás. Oliveira retoma a ruptura: com os critérios europeus que “põem os países ao nível do limiar de pobreza” e com acordos comerciais que “destroem a indústria portuguesa”.

Houve propostas, sim. Muito ideológicas? Que sejam. Mas razoavelmente distintas: desde o regresso à soberania total (CDU), até a políticas de alianças progressistas, sociais e verdes entre estados no actual quadro institucional (BE e Livre), ao laissez faire, laissez passer liberal (IL). E não é preciso pontuá-las num estúdio de televisão. Os eleitores fá-lo-ão nas urnas.

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