Um concerto morno, um murro no estômago

Morrissey esteve cá e celebrou-se o momento. Moderamente, sem a aura dos grandes acontecimentos.

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Alexandre Antunes/Everything is New
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Esse álbum de história atribulada (a editora Harvest deixou-o cair três semanas após a edição e Morrissey, despeitado, não se ficou: “Fuck Harvest” leu-se nas t-shirts dos músicos que o acompanharam em Lisboa) foi, naturalmente, a base de um concerto com história (Morrissey veio mesmo, Morrissey continua com uma voz imponente, Morrissey tocou quatro canções dos Smiths), mas com pouco de verdadeiramente memorável (é louvável que não se prenda ao passado e que queira provar a relevância do seu presente, mas, enfim, com as canções tépidas que preencheram parte considerável do alinhamento, adornadas com guitarras acústicas e teclados ambientais de perigoso teor soporífero, ficam as intenções e caem os argumentos).

Tudo começou antes de o vermos em palco. Em vez da música tocada pelo sistema de som, uma experiência audiovisual: vídeos de Charles Aznavour; imagens dos Ramones; os New York Dolls, inspiração de sempre, em actuação na televisão alemã; ouThe bullfighter dies, canção que constaria depois do alinhamento, acompanhada de imagens de touradas em que, sim, o touro saiu vencedor (ouviram-se os primeiros aplausos da plateia e o concerto ainda nem começara).

Morrissey, as suas referências e as suas batalhas. Morrissey, o egocêntrico, o cantor que elevou a depressão e a devastação sentimental a arte maior, o activista sem freio, no centro das atenções, no centro do palco: a rainha de Inglaterra surgindo nos ecrãs em pose pouco real (dois piretes erguidos à multidão que preenchia três quartos do Coliseu) e o ícone pop a aparecer depois dela.

As primeiras palavras: “Acredito que vivemos num mundo de violência sem precedentes”. Segue-se o clássico The Queen is dead. O som está demasiado baixo e a voz sobressai na mistura mais do que o desejável mas, por agora, nada disso interessa. O homem chegou. O homem que veste calças brancas, camisa igualmente alva, e que usa um pendente verde sobre o peito meio descoberto, está a cantar The Smiths.

Não seria preciso muito. Seria até bastante fácil (demasiado, diríamos), fazer do concerto uma celebração tão festiva quanto, obrigatoriamente, nostálgica. Bastaria interpretar canções dos Smiths atrás de canções dos Smiths, polvilhadas de passagens criteriosas pela carreira a solo, e Morrissey teria a sala a seus pés. Fazê-lo, porém, seria desvirtuar a sua própria natureza. Falamos, afinal, do cantor que há cerca de um ano, quando lhe foi requisitada uma lista dos melhores álbuns em que participou, colocou nos lugares cimeiros os três últimos que editou a solo (e não incluiu nela um único dos Smiths). Para Morrissey o agora é mesmo agora (não, não ouvimos How soon is now).

Viajámos por Vauxhall & I, um dos mais celebrados álbuns a solo, com Speedway, ouvimos Certain people I now, de Your Arsenal, e a belíssima e muito aplaudida e muito cantada I'm throwing my arms around Paris - irresistível o dramatismo blasé daquela voz a cantar estes versos: “In the absence of your love / And in the absence of human touch / I have decided I'm throwing my arms around Paris / Because only stone and steel accept my love”.

Entre elas, o manifesto anti-tourada The bullfighter dies, com a energia pop dos primeiros momentos a solo, e um sopro mariachi a introduzir Kiss me alot. Depois, a investida decidida em World peace is none of your business. O que não é um problema, de todo, quando se ouve a canção título do álbum, interpretada com a graciosidade Motown e o tom "Scott Walkeriano" preservado em disco. O que se torna um problema quando surgem canções como Neal Cassady drops dead, delicadeza desinspirada minada por arranjos de guitarra arraçada de flamenco, ou Kick the bride down the aisle, canção pop anónima de que não nos recordaríamos não fosse a  foto projectada nos ecrãs, mostrando o príncipe William e sua mulher, Kate Middleton, sob a legenda “United King-Dumb”.

Sem grandes conversas, como é de resto habitual nele (uns “obrigados”, um par de “gracias”), Morrissey foi conduzindo um concerto morno com a autoridade da sua voz e o carisma da sua presença. Até que se ouve Hand in glove, a canção com que tudo começou, nos Smiths, no longínquo ano de 1983, e erguem-se telemóveis para registar o momento. Até que se ouve, depois dela, Morrissey a falar verdadeiramente. O que deve ser feito “nesta vossa bela cidade”, diz, é pegar em latas de spray e aplicá-lo em toda a publicidade à McDonalds que encontrarmos. Nada de selvajaria, de pichar simplesmente - sugere palavras para a intervenção: “No no no” ou “Shit shit shit”. O que se seguiu à declaração foi Meat is Murder, terceira canção dos Smiths da noite e aquela que deixará marca mais duradoura na memória do público.

A acompanhar o terror da balada apocalíptica ("this beautiful creature must die"), o terror das imagens: a crueldade do tratamento dado pela indústria alimentar a vitelos, perús, porcos ou pintos exposta de forma terrivelmente gráfica – o vegetariano Morrissey de costas para o público, mãos na cabeça, a observar o horrível que passa no ecrã para não ver o murro no estômago desferido no público.

Depois daquilo, era difícil pensar em sorrir ou em dançar como normalmente num concerto rock. Mas Morrissey não parou. Despediu-se com a batida alegre de One day will be farewell quando ainda não recuperáramos do que víramos e, então sim, abandonou o palco. O encore trouxe mais Smiths (Asleep) e a canção mais celebrada da noite, First of the gang to die. Esta útima, extraída de You Are The Quarry, o álbum do renascimento em 2004, surgiu em versão serenada, de base acústica, e quase despida da vitalidade pop que lhe garantiu há uma década o estatuto de clássico na discografia do seu autor – o que, de certa forma, serve de ilustração do que foi o concerto em parte considerável da sua duração.

Morrissey cantou de flor na mão, Morrissey baixou-se na boca do palco para alcançar mãos ávidas do seu toque e despediu-se em tronco nu, depois de lançar a camisa ao público como oferenda. Morrissey esteve cá e celebrou-se o momento. Moderamente, sem a aura dos grandes acontecimentos. Em 2012, quando cancelou no próprio dia o concerto marcado para o Cascais Music Festival, não tivemos direito a nada disso. Dois anos depois, vimo-lo mesmo e ouvimos-lhe a voz. Continua expressiva como poucas. Deve ser suficiente.

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