Ofélia

Tirando o pai e um irmão que vivia longe, não havia mais ninguém. Sentiu um irreversível sentimento de finitude. Nesse dia saiu do treino e não seguiu para a escola.

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Conto de Cláudia Lucas Chéu Unsplash
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O treino matinal arrancava-a por momentos da melancolia — esse ânimo empapado que não se sabe se começa na alma ou no corpo.

Ofélia nunca foi uma rapariga alegre nem uma grande atleta, era frágil demais, física e emocionalmente. Mas por não saber fazer mais nada senão nadar, prosseguia com os treinos. Do que ela gostava mesmo era de flutuar, deixar o corpo ondular à superfície, fosse no mar ou na banheira de sua casa. Desde pequena tomava longos banhos de imersão. Sentia-se protegida quando submergia porque deixava de sentir peso ou gravidade, concentrava-se apenas no tum-tum-tum da pulsação.

Depois do treino diário na piscina, tomava então o pequeno-almoço no café do Clube: um copo de leite vegetal e uma bolacha de aveia. Sempre teve um apetite que condizia com o corpo de passarinho. Logo seguia para as aulas a pé, uma vez que a escola se encontrava a poucos metros de distância; estava no penúltimo ano do ensino secundário. Nos últimos tempos, andava particularmente apreensiva. O treinador, com quem mantinha há vários meses uma relação amorosa às escondidas, passou a tratá-la de um modo diferente desde que voltara de um campeonato na Alemanha. Numa das muitas discussões que tiveram recentemente, ele sugeriu-lhe que fosse para um convento. Ofélia tinha quase a certeza de que ele estava à beira de um esgotamento nervoso e aconselhou-o a ir ao médico. Disse-lhe até que o acompanhava com muito gosto. Fez troça dela. Disse-lhe que se alguém precisava de se tratar era ela, uma tola que continuava a nadar sem ter o mínimo talento.

Pode dizer-se que a vida estava a atravessar-se de modo estranho nos dias de Ofélia, porém ela não contava com uma das mais terríveis perdas. O seu pai foi esfaqueado e assaltado. A notícia lançou Ofélia para a mais profunda tristeza e para uma incompreensão nunca antes conhecida. Quando contou ao treinador a tragédia que sofrera, ele respondeu com a mais enigmática e despropositada frase que alguma vez lhe ouvira: "Ser ou não ser, eis a questão." Durante o treino na piscina, não lhe mostrou qualquer compaixão, tratou-a como qualquer outro atleta, parecia até que nem a conhecia. Ofélia não foi capaz de o confrontar, não tinha forças.

Tirando o pai e um irmão que vivia longe, não havia mais ninguém. Sentiu um irreversível sentimento de finitude. Nesse dia saiu do treino e não seguiu para a escola. Voltou para casa. Precisava de um banho de imersão. Ondular por momentos numa maré morna. Submergir as veias até deixar de doer.

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