Têm o tamanho de uma mão de palma aberta e dedos esticados estas enormes papoilas do meu jardim. As papaver orientale não são nativas aqui do Nordeste americano, alguém as trouxe do Médio Oriente, mas crescem agora entre as outras papoilas, mais pequenas e comuns, que florescem no final de Maio.

As papoilas não pegaram tanto aqui como o símbolo das homenagens aos combatentes falecidos que se tornaram no Reino Unido, mas também adornam algumas das muitas cerimónias que decorrem nos Estados Unidos, nesta segunda-feira de Memorial Day, feriado federal, nos extensos cemitérios de lápides na relva.

A origem do símbolo é a mesma dos dois lados do Atlântico: o poema do canadiano John McCrae, também ele antigo combatente, escrito após a I Guerra Mundial:

Nos campos da Flandres as papoilas agitam-se
Entre as cruzes, fila após fila,
Que marcam o nosso lugar, e no céu
As cotovias, cantando ao desafio, voam
Quase sem serem ouvidas por cima das armas

Somos os mortos. Há poucos dias
Éramos os vivos, sentíamos o amanhecer, víamos o brilho do pôr-do-sol
Amávamos e éramos amados, e agora aqui jazemos
Nos campos da Flandres

Prossigam a nossa luta com o inimigo:
A vós, de mãos falhas, passamos
A tocha, que a ergam alto
Se perderem a fé em nós que morremos
Não iremos dormir, ainda que cresçam as papoilas
Nos campos da Flandres

O último americano que combateu na I Grande Guerra, Frank Buckles, morreu já há uma década. Corre-se agora a preservar a memória dos veteranos da II Guerra Mundial ainda vivos: americanos eram pouco mais de 100 mil em 2023 e estão todos para lá dos 90.

Há mais veteranos de guerra norte-americanos. São uns 18 milhões, 6% da população. Entre estes, o grupo mais numeroso é o dos que serviram o país durante e após a Guerra do Golfo, incluindo nos conflitos mais recentes do Iraque e do Afeganistão. Os do Vietname deixaram de representar a maioria dos veteranos americanos em 2016.

Os veteranos e os militares no activo (estes serão apenas 1% da população) mantêm um estatuto quase divino no discurso e no imaginário popular norte-americano. São os primeiros chamados a embarcar nos aeroportos; são objecto de loas nos comícios e nos debates políticos, nos concertos e nos autocolantes dos automóveis; aparecem em quase todos os grandes eventos desportivos a desfraldar a bandeira.

São assim idolatrados, e homenageados em dias como este, apesar de figurarem na linha da frente de várias crises sociais, do álcool às drogas e à doença mental. Não são mais pobres que a média nacional, mas enfrentam desafios específicos de integração no mercado de trabalho.

Também por isso, mas não só, e apesar de todos os anúncios nos cinemas, no YouTube, na Netflix, de todo o cerimonial militar no arranque do SuperBowl ou do Indy 500, há cada vez menos americanos a escolher uma carreira militar. Em 2023, o Exército, a Marinha e a Força Aérea falharam as suas metas de recrutamento. Só o corpo de marines, por muito pouco, e a Força Espacial, que é diminuta, alcançaram o objectivo.

O problema é comum aos dois lados do Atlântico. Só não se fala de serviço militar obrigatório nos Estados Unidos – para já. A carreira militar perdeu atractividade para os norte-americanos numa altura em que o desemprego está em mínimos históricos e em que, consequentemente, até as ocupações menos qualificadas são cada vez mais bem remuneradas.

Não há uma guerra mobilizadora em curso nem há apetite entre norte-americanos para novas aventuras militares. Em Abril, segundo uma sondagem da Pew, 83% dos inquiridos entendiam que o Presidente Biden devia dar prioridade à política doméstica e não à externa. O auxílio a Israel era uma prioridade de política externa para apenas 23% dos norte-americanos e a Ucrânia só para 22%. Quando olham para o mundo, as principais preocupações dos americanos são, por esta ordem, a prevenção de ataques terroristas em solo americano, o combate ao narcotráfico e a luta contra a proliferação de armas de destruição em massa (se considerarmos apenas o eleitorado democrata, as alterações climáticas são a maior ameaça; para os republicanos, é assunto menor).

Mas não é, apenas, uma questão de apetite. Os responsáveis militares norte-americanos admitem que há cada vez menos candidatos capazes de cumprir os requisitos mínimos. Os gen-z (os nascidos entre 1997 e 2012) chumbam mais nos testes de aptidão física e são mais afastados pela proibição de tatuagens em zonas visíveis do corpo, e pela exigência de registos criminais e de testes toxicológicos limpos. O problema é de tal forma notório que vários ramos das Forças Armadas estão a relaxar os requisitos ou a admitir excepções às regras.

Um optimista dirá que é boa notícia, que talvez um dia não haja novas lápides nos relvados dos cemitérios americanos, entre as papoilas do final de Maio. Um pessimista e um realista talvez se juntem para recordar o poema de McCrae e o velho adágio romano: se queres paz, prepara-te para a guerra.