A Força Espacial de Trump é alvo de piadas mas tem asas para voar

Mais do que uma unidade a olhar para o espaço, o Presidente norte-americano quer criar um novo ramo das Forças Armadas, o que já não acontece desde 1947. Uma ideia que pode esbarrar no Congresso.

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Lançamento de um rocket Delta IV, na Florida Mike Brown/Reuters (Arquivo)

Assim que o Presidente Donald Trump anunciou a sua ideia de criar uma Força Espacial "para garantir o domínio dos Estados Unidos no espaço", em Junho, as piadas dos talk shows norte-americanos multiplicaram-se à velocidade da luz.

"Espero que me dêem um sabre de luz, isso seria brilhante", diz um actor no programa do apresentador Jimmy Kimmel, que fala do plano da Casa Branca como se fosse um capricho de Trump: "Estamos a fingir que trabalhamos nisto até que o Presidente se vá embora."

Apesar das piadas, a criação de uma Força Espacial norte-americana não só não é um capricho de Trump, como até já tem um relatório em cima da mesa e um calendário definido. Foi isso que o vice-presidente, Mike Pence, anunciou esta quinta-feira no Pentágono, num discurso em que se notou a vontade de se pôr à altura dos compromissos históricos de outros tempos: "Tal como aconteceu em outras épocas, os Estados Unidos vão enfrentar as ameaças emergentes neste novo campo de batalha. Chegou a hora de criar a Força Espacial dos Estados Unidos", disse Mike Pence.

Se tudo correr como a Casa Branca quer — e nada garante que isso aconteça —, a Força Espacial estará a funcionar em 2020.

Debate antigo

A criação de uma Força Espacial norte-americana tem pouco de ficção científica, e o debate sobre se deve ou não deve existir começou muito antes de Donald Trump ter chegado à Casa Branca.

Em causa, acima de tudo, está uma questão de organização — há quem defenda, como Trump, que os Estados Unidos devem concentrar-se mais no espaço e que a melhor forma de o fazer é criar um novo ramo das Forças Armadas; e há quem defenda que esse objectivo será mais bem servido se os esforços da Administração, do Congresso e das Forças Armadas se virarem para a melhoria da coordenação entre os ramos já existentes, aproveitando o trabalho do Air Force Space Command, criado em 1982 e dependente das chefias da Força Aérea.

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Mike Pence e o chefe do Pentágono, Jim Mattis JIM LO SCALZO/EPA

Mas os especialistas e a maioria dos políticos, do Partido Republicano ao Partido Democrata, admitem que o país tem adormecido nas últimas décadas nesta questão, e que é preciso voltar a olhar para o espaço como um possível campo de batalha. Quanto mais não seja porque o exército de satélites de que dependem hoje em dia quase todas as operações — civis ou militares — pode tornar-se um alvo vulnerável em caso de guerra.

"Os militares norte-americanos dependem dos satélites para tudo — para recolherem informação, vigilância, navegação, comunicações, até mesmo para direccionarem as armas com precisão —, mas esses satélites são vulneráveis a ataques e interferências", explicou o jornalista Fred Kaplan, autor de livros sobre guerra e relações internacionais, na sua coluna na revista online Slate, em Junho. Os avisos têm mais de uma década: "Essa vulnerabilidade ficou patente em 2007, quando a China fez o seu primeiro teste anti-satélite, destruindo um dos seus próprios satélites com uma arma lançada por um rocket. Muitas pessoas fizeram soar os alarmes, mas ninguém em Washington fez nada."

Oposição no Congresso

É esta falta de resposta nos Estados Unidos perante o reforço das capacidades anti-satélite da China, mas também da Rússia, que levou congressistas do Partido Republicano e do Partido Democrata a proporem a criação de um novo ramo das Forças Armadas — o caminho escolhido pelo Presidente Trump.

Só que essa decisão tem dois obstáculos pela frente, que não existiriam se o plano passasse apenas pela melhoria da coordenação dentro dos cinco ramos (Exército, Marinha, Força Aérea, Marines e Guarda Costeira). O maior obstáculo é que a criação de um 6.º ramo, a tal Força Espacial, depende da aprovação do Congresso, o que tem os seus próprios obstáculos.

Apesar do apoio de alguns congressistas dos dois partidos, a maioria tem rejeitado qualquer proposta nesse sentido, embora o apoio público do Presidente Trump possa fazer com que muitos mudem de opinião; mas, mesmo que isso aconteça, é improvável que o Partido Democrata queira dar o seu apoio a uma proposta mediática do Presidente Trump se reconquistar a maioria no Congresso nas eleições de Novembro.

Para além disso, há que contar com a resistência das chefias militares — tanto os generais que falaram sobre o tema noutras alturas como o secretário da Defesa, Jim Mattis, disseram várias vezes que não concordavam com a criação de um novo ramo nas Forças Armadas, mas essa posição foi mudando a partir do momento em que o Presidente Trump anunciou a criação da Força Espacial, em Junho.

No ano passado, numa carta enviada ao senador John McCain, do Partido Republicano, o general Mattis disse que não concordava com "a criação de um novo serviço militar e de novas camadas de organização, numa altura que o foco está na redução de gastos fixos e na integração de funções de combate"; esta quinta-feira, Mattis acompanhou o vice-presidente ao palco no Pentágono e comprometeu-se a trabalhar para a "concretização da visão do Presidente".

Mas os críticos da criação de uma Força Espacial não estão preocupados apenas com os gastos — com um novo ramo, o Congresso terá de aprovar financiamento para construir novas infra-estruturas, como uma academia própria; para pagar milhares de milhões em novos custos fixos; e para acomodar um novo jogador no jogo preferido das Forças Armadas: a luta por uma fatia maior do orçamento geral, que este ano chega quase aos 700 mil milhões de dólares.

Cooperação em risco

"A proposta do Presidente Trump para a criação de uma Força Espacial pode afectar o estatuto do espaço como um lugar de exploração e cooperação", avisa Brian Nakayama, professor de Relações Internacionais na Universidade de Mount Holyoke, no Massachusetts, e especialista na relação da tecnologia com os métodos de guerra. "Os Estados poderosos desenvolvem sistemas militares em resposta entre si, e uma Força Espacial poderá provocar uma resposta de outras nações, o que por sua vez poderia levar a uma corrida às armas no espaço. A cooperação no espaço entre os Estados Unidos e a União Soviética, durante a Guerra Fria, serviu de válvula de descompressão em tempos de grande tensão", salienta Nakayama num texto publicado na revista Fortune.

Fred Kaplan, no seu texto publicado na Slate, também alerta para esse perigo: "Ninguém sabe o que é que os chefes de uma Força Espacial iriam fazer e comprar, mas é razoável admitir que quisessem pedir novas armas ofensivas em vez de privilegiarem medidas defensivas — e que não iriam perder tempo e dinheiro com as necessidades dos chefes dos outros ramos das Forças Armadas."

De todas as críticas, o possível afastamento de uma Força Espacial em relação aos outros ramos é talvez a mais repetida: "Os activos espaciais servem as forças terrestres, navais e aéreas, pondo à disposição delas informações, comunicações e orientação para mísseis e bombas inteligentes. Pôr esses activos vitais sob o comando de um general de quatro estrelas num serviço separado (...) vai contra as necessidades do país", avisa Kaplan.

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