A ópera política que nos impede de ficar indiferentes

Acompanhámos os ensaios da ópera O Monstro no Labirinto, onde o mito grego transcende o palco e atravessa o Mediterrâneo, alertando para o dia-a-dia dos refugiados.

Na escuridão que esconde o palco e de frente para uma plateia vazia, ouve-se o bater das palmas e murmúrios. São quase 300 pessoas - desde crianças a idosos - que festejam o fim de mais um ensaio da ópera O Monstro no Labirinto, com estreia marcada para esta quarta-feira, no auditório da Fundação Calouste Gulbenkian. Quando a encenadora francesa Marie-Eve Signeyrole sobe ao palco, a maioria dos coristas e cantores já está sentada, à espera das suas observações. "Não tragam roupa com cores fortes nem com marcas"; "deixem os objectos pessoais fora do palco"; mas, acima de tudo, "cantem com alma, de corpo virado para o público, para que ele sinta o que vocês estão a sentir. Tanto ele como vocês têm de perceber a dificuldade dos pais quando oferecem os filhos dos outros em sacrifício para salvar os seus. Este sentimento de perda e desgosto tem de ser transmitido ao público."

Passado dois dias, as centenas de coristas e cantores voltam a subir ao palco para mais um ensaio. No fundo, é projectado um vídeo em directo do que está a acontecer em cena. No meio da confusão, o grupo dos adultos agarra vários jovens para os oferecer em sacrifício ao Minotauro. "Não vão, voltem", cantam as crianças numa voz que vai desaparecendo e deixando debaixo dos seus mantos vermelhos um rasto de barquinhos em papel. Mas logo, com o cenário vazio, entram os homens a arrastar vassouras pelo chão, levando consigo as figuras em papel, como quem varre os sonhos de uma criança - que acredita voltar a ver um dia o irmão mais velho que partiu.

"A grande dificuldade está no facto de haver uma grande heterogeneidade entre os vários grupos", diz Sérgio Fontão, o director coral e responsável pela coordenação dos vários coros. "Mas depois, no seu conjunto, a obra nasce exactamente destes diferentes contributos". Criada pelo compositor inglês Jonathan Dove com o libretista Alasdair Middleton, a ópera O Monstro no Labirinto recupera o mito grego onde o jovem Teseu viaja até Creta para resgatar as crianças atenienses oferecidas em sacrifício ao Minotauro, preso no labirinto que o arquitecto Dédalo construiu. Concebido como uma ópera comunitária, o espectáculo reúne crianças, adolescentes e idosos, cujas vozes se unem para contar a história e alertar para a actualidade. Assim como os jovens atenienses que atravessam o mar em busca de um futuro melhor, também hoje em dia milhares de refugiados fogem do seu país para sobreviver. Mas a crise dos refugiados não é a única ligação que a encenadora constrói com esta ópera. Quando o Rei Minos da ilha de Creta está sentado ao lado de Dédalo, o arquitecto levanta uma folha com a planta do labirinto, que se assemelha à estrutura de um estádio de futebol. "Porquê? Por causa da situação em que milhares de trabalhadores se encontram neste momento, a preparar o campeonato mundial de futebol no Médio Oriente, a construir o estádio em condições horríveis sob um sol abrasador", diz Tiago Marques, um dos maestros assistentes da ópera e responsável pela tradução do livreto para português.

Nesta ópera, o mito transcende o palco e a arte ganha uma forma política, seguindo os ideais da encenadora que procura ligar a arte ao mundo em que vive.