Um rapaz de Buarcos na Grande Guerra

Foto
António Lourenço enviou este puzzle com 10 postais ilustrados para as irmãs e pais entre 7 e 9 de Janeiro de 1918. Na página à esquerda, António está com 21 anos e veste a farda amarrotada de 1º cabo (14 de Agosto de 1917)

Aos 21 anos, estava nas trincheiras da Flandres, juntamente com cerca de 50 mil portugueses obrigados a lutar e a morrer numa guerra que acontecia longe de casa e na qual o país teimara em participar. A família recebeu a notícia da sua morte em La Lys. "Ressuscitou" dois anos depois de partir de Lisboa. Por Maria José Oliveira

Em memória do meu avô António

Era um entre milhões. Faz pose para a fotografia que enviará para a família, sorrindo. A cor desmaiada da imagem não permite identificar quase nada daquele local onde António Maria Rodrigues Lourenço, de 21 anos, se encontra "em campanha", a 14 de Agosto de 1917. Veste a farda amarrotada de 1º cabo, saco a tiracolo, boné. Numa mão segura um cigarro, na outra o pingalim.

António foi um dos cerca de 50 mil mobilizados do Corpo Expedicionário Português (CEP), enviados para a frente europeia da I Guerra Mundial a partir de Janeiro de 1917. Em Agosto desse ano, estava há cerca de seis meses na Frente Ocidental - embarcara num navio, em Lisboa, a 22 de Fevereiro, e três dias depois estava em Brest. A partir de então, tudo mudaria na sua vida.

A 9 de Abril de 1918, no morticínio de La Lys, foi dado como desaparecido e, poucos meses mais tarde, os seus pais, Rosa e Bernardo, receberam a notícia de que tinha morrido. Mas o seu nome não constava das listas oficiais de prisioneiros, feridos e mortos. Simplesmente desaparecera.

Em Buarcos, terra natal, rezaram-se missas pela sua alma e seus pais e irmãos resignaram-se à perda - sem corpo, sem sepultura, nada. Abril, Maio, Junho, Julho, ... os meses passaram, sob o peso angustiante de um luto tão absurdo quanto a guerra que destruía a Europa.

Mas, a 20 de Novembro, após o Armistício, António foi devolvido ao mundo e libertado de um cativeiro de sete meses num campo de presos alemão. Teve ainda de aguardar até 21 de Janeiro de 1919 para embarcar no Gil Eanes, no porto de Cherbourg, rumo a Lisboa. Era um entre pouco mais de 6500 homens que regressaram à pátria.

Para trás ficavam a fome, a solidão, os trabalhos forçados, a insalubridade. E também as trincheiras, com lama, água pelos joelhos, ratos e piolhos, a guerra num país desconhecido, a língua estranha, os companheiros mortos. O que restou? 7.760 mortos e 13.645 prisioneiros e desaparecidos.

Os dias antes da guerra

António Lourenço nasceu a 23 de Setembro de 1895, na vila de Soure, uma casualidade que lhe valeu um novo apelido: "Sourista". A mãe, Rosa Maia, era vendedora de peixe seco e estava já no último mês de gravidez quando foi à Feira de São Mateus, em Soure. Foi lá que deu à luz o seu segundo filho.

Rosa e Bernardo Rodrigues Lourenço já tinham uma filha, Maria Maia. E, depois de António, tiveram mais quatro filhos: José, Clementina, Virgínia e um outro que morreu ainda bebé. Bernardo era pescador e Rosa trabalhava na seca do peixe, então feita no areal de Buarcos. António haveria de seguir as pisadas do pai, mas por pouco tempo.

Quando partiu para a Flandres, sabia ler e escrever, ao contrário da maioria dos mobilizados. Tinha apenas seis anos quando começou a trabalhar como servente de pedreiro em obras nas cercanias do cabo Mondego. Três anos depois, porém, já estava nas tanoarias do Paço do Bispo, em Lisboa, onde foi aprendiz de tanoeiro. Ali ficou até aos 14 anos - aos 13, correu para ver passar o cortejo fúnebre de D. Carlos e do príncipe Luís Filipe, assassinados no Terreiro do Paço, e quase morreu esmagado pela multidão que acorreu ao funeral.

Abandonou a zona oriental da cidade, próspera em indústrias, e foi para Cascais, onde fez a sua iniciação como pescador, numa armação gerida por um tio. O serviço militar obrigatório devolveu-o, porém, à Figueira da Foz, onde a praia de banhos já registara a cidade no roteiro de veraneio.

A declaração de guerra da Alemanha chegou em Março de 1916 e, com ela, a notícia de que António seria um dos mobilizados para a frente europeia. De Buarcos partiram cerca de quatro dezenas de jovens - todos regressaram sãos e salvos, com a excepção de um, que escapou às armas, mas não sobreviveu ao atropelamento por um eléctrico, ainda na Bélgica.

A bordo do "vapor A"

António embarcou para a Flandres francesa a 22 de Fevereiro de 1917, cerca de três semanas depois da partida para a guerra do primeiro contingente do CEP. Integrava o Regimento de Infantaria 28 (R.I. 28), que constituiu o 4º Batalhão da 1ª Brigada de Infantaria (1ª Divisão do CEP) e que ficou tristemente célebre por ter assistido à primeira baixa do CEP: António Gonçalves Curado morreu ainda antes de entrar em combate, durante uma visita de instrução à primeira linha de trincheiras no sector inglês (na cidade natal, foi-lhe erigido um memorial).

O diário de campanha da viagem de três dias rumo a Brest, a bordo do "vapor A" (assim designado por questões de segurança), ilustra claramente o clima de insubordinação e desobediência que imperava sobretudo entre as praças. Logo no primeiro dia, o major Teófilo Guanilho exigia aos seus subordinados "compostura e asseio", proibindo-os de "lançar sobre o convés quaisquer restos de comida" e de "satisfazer as suas necessidades fora dos locais destinados às mesmas". As ordens prosseguiram e estenderam-se a outras acções: os militares estavam impedidos de "conservar lixo" nas suas cobertas e de se dirigirem ao convés artilhado e aos botes, às cozinhas e às dependências destinadas à tripulação. Impunha-se ainda a recomendação de "recolherem aos seus lugares e manterem o máximo silêncio" em caso de ataque.

Imperava ainda algum ânimo, apesar da instrução militar deficiente. Nenhum daqueles homens sabia o que ia encontrar nos campos de batalha. Sabiam, contudo, que tinham de respeitar as ordens repetidas durante a viagem: não podiam utilizar o telégrafo francês e o correio civil, enviar postais com imagens das localidades e comunicar com a imprensa. A lista de informações que tinham de manter secretas era extensa: "local de desembarque de tropas, local onde se encontra e para onde seguem; nomes dos transportes que conduzem a expedição ou de qualquer navio de guerra avistado durante a viagem; nomes de brigadas, divisões ou agrupamentos a que pertence; referência ou quaisquer ideias sobre projectos de operações; organização, efectivos e movimentos de tropas; armamentos das tropas e fortalezas; obus de defesa; condições morais ou físicas das tropas; perdas; serviço de abastecimento; efeitos do fogo inimigo; crítica de operações; no endereço da correspondência a remeter para o pessoal do CEP, deve mencionar-se apenas o nome, posto, número de companhia, esquadrão ou bateria e o batalhão, grupo ou formação a que o militar pertença, não se indicando em caso algum o número de brigada e divisão."

O "vapor A" ancorou no porto de Brest no dia 25, mas o desembarque dos soldados aconteceu apenas três dias mais tarde. Não sem antes o major ter condenado um 1º cabo a 15 dias de prisão disciplinar e um soldado a 10 dias de igual pena por terem "proferido comentários" - um "há-de sair tudo" lançado às praças aquando do abandono do barco valeu-lhes a punição. Mas, para Guanilho, o caso era uma excepção. Porque "as qualidades que sempre distinguiram o soldado português são a paciência, a resignação e a subordinação". Para eles estavam reservados os "louvores da glória". "É preciso que sempre estejamos convencidos que não viemos fazer uma viagem de recreio para ver terras estranhas, mas sacrificar-nos para que o nosso querido Portugal continue livre, mas também para colhermos os louvores da glória para os que felizmente regressarem irem depor no altar da Pátria."

Até à estação de comboios, os combatentes marcharam em "fileiras cerradas" e em passo lento, por causa das "ruas escorregadias". Já no cais ferroviário, dividiram-nos em grupos de oito homens e, antes de embarcarem para a viagem de três dias, deram-lhes a ração diária: "meia lata de carne de conserva, meia lata de doce, três latas de soja (meat and vegetables), um pedaço de queijo e uma lata de bolachas".

Desaparecido

a 9 de Abril

Nos primeiros dias de Março de 1917, António e os seus companheiros de armas estavam em Marthes, onde receberam do exército britânico aulas intensivas de esgrima, de utilização das metralhadoras ligeiras e de defesa em caso de ataques de gás. Logo em Abril fizeram várias visitas às frentes dominadas pelos britânicos e, um mês depois, ocuparam finalmente a primeira linha de trincheiras em Ferme du Bois, substituindo um batalhão inglês. Estavam já familiarizados com as condições em que tentavam sobreviver, mas não totalmente com o armamento - no espaço de três dias, e quando ainda aprendiam a manusear granadas, provocaram o rebentamento de quase duas dezenas. Sem vítimas, contudo.

Foi longa a permanência do R.I. 28 em Ferme du Bois. Somente na véspera de La Lys alguns homens do batalhão tiveram direito a dias de descanso, rumando a Wirwignes. Os restantes acabaram por enfrentar o "dilúvio de metralha" que Jaime Cortesão viu na madrugada de 9 de Abril de 1918, a mais tristemente marcante da história da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial. A tempestade de fogo alemão prolongou-se por horas e horas. E foi então que António desapareceu. Na sua folha do CEP, escreveram "desaparecido a 9 de Abril de 1918". Não constava da lista de quase 400 mortos, nem fora um dos 6598 homens presos pelo exército alemão.

Só muito mais tarde, a lápis, escreveu-se "onde foi feito prisioneiro".

Na Alemanha e na Bélgica, existiam 30 campos de presos. Do R.I. 28, os serviços do CEP registaram um 1º sargento detido em Dülmen, dois soldados em Münster II e 12 em "local desconhecido". Nenhum era António Lourenço. E o seu nome não chegou nunca a constar das diferentes listas de presos elaboradas pelo CEP, Cruz Vermelha e Comité de Socorro aos Militares e Civis Portugueses Prisioneiros de Guerra. Mas não era caso único.

A dificuldade da língua portuguesa foi um dos motivos apontados pelo Comité de Socorro para a existência de lacunas nos quadros dos presos militares e civis. Em 1918, uma nota num dos boletins da instituição, com sede em Lausanne, Suíça, dava conta da "transmissão difícil das listas de prisioneiros, que, saindo dos campos de concentração para o Ministério da Guerra em Berlim, e daqui, por intermédio da Cruz Vermelha alemã, para a Cruz Vermelha Internacional, que, por seu turno, as envia para o nosso Comité, estão sujeitas a todos os erros em cópia e de transmissão, tendo de passar por tantas pessoas para quem a língua portuguesa é desconhecida. Por isso recebemos todas as indicações quase incompreensíveis e ilegíveis". O mesmo não acontecia, porém, com as informações sobre o estado de "pobreza e abandono" dos presos portugueses. Desses tempos de cárcere, António recordava, muitas décadas mais tarde, a fome, a falta de higiene, as silvas fervidas em água quente para improvisar uma sopa e as pragas de piolhos.

Nos pedidos que chegavam ao Comité de Socorro, os presos imploravam por roupa e calçado. Mas também por conservas, tabaco e papel. O delegado, Frutuoso da Silva, não se cansava de telegrafar para Lisboa as necessidades básicas dos prisioneiros, alertando para o "desleixo" a que tinham sido votados os combatentes, "vendo-se quase descalços e nus, a tal ponto chegou a incúria oficial".

Depois do cativeiro

António "ressuscitou" a 20 de Novembro de 1918, nove dias depois de assinado o Armistício. Caminhou durante vários dias até uma das bases do CEP, alimentando-se de nabos e cenouras cruas solidariamente oferecidas pelos habitantes das povoações que atravessou.

Em Janeiro de 1919, o CEP elaborou um inquérito junto dos militares que tinham sido presos ou registados como desaparecidos em La Lys. Pretendia-se averiguar o nível de conhecimento sobre os campos de concentração. Mas as respostas eram redundantes: a maioria referia que as autoridades nacionais tinham abandonado os prisioneiros. Sabiam a data, hora e local em que tinham sido detidos, alguns apontavam o nome do campo, mas à questão "O que sabe da acção ou das acções em que tomou parte ou presenciou?" respondiam com os sofrimentos vividos no cárcere.

João da Cruz, da aldeia de Capareiros, Viana do Castelo, comeu "aquilo que não se dá aos cavalos" na prisão de Lille. Por vezes, ficavam dois a três dias sem comida, marchavam dezenas de quilómetros, trabalhavam na abertura de caminhos e nas fortificações e, à entrada do campo, os alemães roubavam-lhes todo o dinheiro que guardavam nos bolsos.

Regresso a casa e nova partida

A 2 de Novembro de 1918, numa altura em que o paradeiro de António era ainda desconhecido, o R.I. 28 foi dissolvido. O balanço da sua participação na Grande Guerra não era dos piores: 55 mortos em combate, nove mortos por doença, 101 feridos em combate, 12 feridos por desastre, 17 prisioneiros, um desaparecido e 178 homens dados como incapazes.

António Lourenço, primeiro desaparecido, depois registado como morto e finalmente identificado como sobrevivente do cativeiro, desembarcou em Alcântara a 25 de Janeiro de 1919, após quatro longos dias de viagem a bordo do Gil Eanes. Tinha 23 anos.

Em Buarcos terminou o luto e o que restava da sua farda e a máscara de gás foram guardadas numa arca de madeira. António regressou ao seu trabalho no mar. Mas não por muito tempo. Em Janeiro de 1921, ainda não tinha completado 26 anos, voltou a embarcar num vapor, o Britannia, rumo a Providence, numa época marginal às vagas de emigração para os EUA. Conseguiu o primeiro emprego num matadouro, em Nova Iorque, ao qual se seguiram muitos outros ofícios, ao longo de 24 anos.

Em 1924, num breve retorno de quatro meses a Buarcos, casou com uma das quatro irmãs Barreto, Luísa, de quem teve dois filhos, António e João.

Antes do regresso definitivo a Portugal, no fim da II Guerra Mundial, enviava os objectos mais estranhos para Buarcos: um gramofone, discos de resina, um rádio Stromberg-Carlson, fotografias de cidades feitas de arranha-céus e parques.

Viveu até aos 89 anos, para minha felicidade.

BIBLIOGRAFIA

c Arquivo Histórico Militar (AHM), Lisboa, 1ª Divisão, 35ª Secção, caixas 1423, 878, 71, 1340, 1341, 430, 511, 1423, 435; 36ª Secção, caixa 26

c Resumo da participação do Batalhão de Infantaria 28/ Regimento de Infantaria 28 na Grande Guerra, na Flandres - 1917 - 1918

c Manuel H. Lourinho, Prisioneiros Portugueses na Alemanha. Guerra de 1914 a 1918, Porto, edição de autor, 1980 (publicação póstuma)

Boletim do Comité Português de Socorros aos Militares e Civis Portugueses Prisioneiros de Guerra, Lausanne, Typographie Fritz Ruedi, 1918

c Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Grande Guerra 1914-1918, Lisboa, Ed. Diário de Notícias, 2003

c Isabel Pestana Marques, Das trincheiras, com saudade - A vida quotidiana dos militares portugueses na Primeira Guerra Mundial, Lisboa, Esfera dos Livros, 2008

c Ian F. W. Beckett, The Great War, 2nd edition, United Kingdom, Pearson Education, 2007

Sugerir correcção