Rodrigo Areias, cineasta à parte

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Rodrigo Areias ainda se sente um bocado "o bárbaro do Norte" nas reuniões em Lisboa: "Não seria honesto dizer que estou fora do sistema - honesto é dizer que quero ter a ver com a descentralização do sistema" MANUEL ROBERTO

Aos 32 anos, vindo das ruínas do Vale do Ave (em tempos o coração industrial do país, e o sítio onde íamos ver Ferraris), Rodrigo Areias chega à sessão de abertura do Curtas Vila do Conde com "Estrada de Palha". Um "western" português (com banda sonora, tocada ao vivo, do inseparável Legendary Tigerman e de Rita Redshoes) que é toda uma declaração de independência em relação ao "sistema". Inês Nadais

Em 2008, Rodrigo Areias chegou ao Curtas Vila do Conde com uma curta que era para ter sido um videoclip de Sean Riley & The Slowriders, "Corrente" (as minas da Panasqueira em fotogramas colados com fita-cola), e saiu de lá em ombros com o prémio de melhor filme nacional. Amanhã, o cineasta de 32 anos volta ao festival, agora com uma longa feita com o dinheiro de uma curta, "Estrada de Palha" (que foi, hooray!, o primeiro projecto de Rodrigo Areias financiado com dinheiros públicos: agora ele já sabe "how the other half lives"). O filme-concerto da sessão de abertura do festival (Legendary Tigerman e Rita Redshoes, que fizeram a banda-sonora, acompanham "Estrada de Palha" ao vivo) é a continuação de uma história singular: à segunda longa, o modo de produção de Rodrigo Areias (um modo de produção hiperactivo em contexto de, chamemos-lhe assim, contabilidade criativa) e a sua paisagem mental confirmam-no como um cineasta à parte.

O posicionamento periférico de Rodrigo Areias no cinema português é menos um "karma" (o "karma" inevitável de quem tenta, em estado mais ou menos avançado de delírio e "wishful thinking", fazer uma "carreira" no eixo Guimarães-Porto) do que um programa escrito na testa do Bando à Parte, a produtora que fundou em 2009, e da sua produtora anterior, a Periferia, de João Trabulo. "É um manifesto. É assumir que estás à parte do sistema instituído (que felizmente também já não é o que era). Gosto de cultivar a imagem do bárbaro do Norte, de ir a reuniões em Lisboa e ter pessoas assustadas com o que vai acontecer a seguir. Mas não seria honesto dizer que estou fora do sistema, porque cada vez sou mais financiado por ele - o que é honesto é dizer que quero ter alguma coisa a ver com a descentralização do sistema. Só há duas estruturas fora de Lisboa que recebem apoios regulares, o António Ferreira em Coimbra e o Bando à Parte em Guimarães", argumenta. Vantagens: "Até é mais fácil fazer filmes fora de Lisboa: filmes urbanos há muita gente a querer fazer, filmes rurais não há ninguém. Tenho o meu território. O "Tebas" [a primeira longa, de 2007], o "Corrente" e o "Estrada de Palha" são filmes rurais e eu não tenho problema nenhum com isso", diz ao Ípsilon numa esplanada da (muito pouco rural) Baixa do Porto.

O território de Rodrigo Areias é ele próprio um caso à parte: do sítio onde cresceu, "Covas, o último apeadeiro antes de chegar a Guimarães", avista-se a carcaça do "cluster" têxtil do Vale do Ave, agora sem Ferraris. "Covas está a viver uma fase pós-industrial e voltou às suas origens rurais. Mas ficou uma paisagem incrível: parece outro planeta". Essa paisagem está no cinema de Areias como um sinal de nascença, mesmo que, depois de Guimarães (para onde voltou, e onde faz parte da equipa que está a preparar a Capital Europeia da Cultura de 2012), ele tenha andado pelo Porto (ali começou a estudar Gestão e acabou a estudar Som e Imagem, mas "com muitas cadeiras de Direito" porque não lhe apetecia "ser enganado muitas vezes na vida"), por Lisboa e por Nova Iorque (Realização Cinematográfica na Tisch School of Arts, entre outras aventuras "off the record" no ramo do tráfico de instrumentos de colecção).

O ano em que andou em Gestão (obviamente não para ser gestor: "Nessa altura eu ainda ia ser músico") foi mesmo o mais útil para a vida de realizador e produtor independente que tem agora, e que é "80 por cento gestão, dez por cento direito e dez por cento realização". Ainda durante o curso - não sabemos se acreditamos na versão "fui um bom aluno bem-comportado" ou na versão "foram anos de delírio e loucura" -, começou a fazer som para filmes (Paulo Rocha, Edgar Pêra), depois veio o Porto 2001 e realizou a primeira curta de ficção. Produção aprendeu (entre aspas) com o guru Pêra: "Disse-lhe que um dia me ia tornar produtor nem que fosse só para produzir os filmes dele".

Dito e feito. Além de realizar videoclips para os amigos (o inseparável Paulo Furtado, Wraygunn, Sean Riley, d3ö) e os seus próprios filmes, Areias é uma espécie de super-produtor (também está por trás da Olho de Vidro, uma estrutura de apoio à produção cinematográfica). Palavras antigas do lendário homem-tigre: "É incrível como uma pessoa que se calhar nem 30 anos tem consegue produzir tanta coisa... Ele rebentou com todo o sistema feudal do cinema português. É o verdadeiro produtor independente. E vive em Guimarães!". Areias tem a sua maneira muito, digamos, vimaranense, de explicar como chegou aqui: "Era o único que percebia alguma coisa de contratos e de contabilidade. Para mim é natural cravar pessoas - no fundo, ser produtor de cinema é ser pedinte, mas com mais estilo".

Para a primeira longa de Zepe, que "vai ser uma revolução séria no cinema de animação português", cravou dinheiro ao Brasil. Para a sua "Estrada de Palha", cravou dinheiro à Finlândia - e assim conseguiu esticar o subsídio que o ICA lhe deu para fazer uma curta e convenceu "o bando" a meter-se neste "western" de 1h30 sobre um emigrante português que regressa dos EUA e vem traduzir o "Desobediência Civil" do Thoreau para o interior do Alentejo (isto em 1909). Depois dos prémios em Vila do Conde, sabia que finalmente tinha uma hipótese de entrar no circuito e deixar de "fazer curtas sem um centavo e longas com o dinheiro de curtas". Passou o Verão a ler as leis da pastorícia desde Afonso Henriques e documentação sobre o período entre o regicídio e a implantação da República - "o período mais a sério da história do país", diz, e isto é um recado acerca do actual momento de "javardice política". Viu "os Peckinpahs, os Fords, os Hawks ("O grande objectivo neste filme era ir até ao "Johnny Guitar", mas financeiramente não era viável"), e depois esqueceu tudo: "É como estudar para um exame - estudo imenso, imenso, imenso, mas depois vou sem copianços, vou livre".

Livre, e pela estrada fora em direcção a onde há poeira, como os seus protagonistas: "Começo a perceber que é sempre alguém que está farto do sítio onde está e quer ir para outro lado. E outra coisa: os gajos dos meus filmes têm sempre a mania que são alguém depois de ler um livro. No "Tebas", além do óbvio "Rei Édipo", era o Kerouac. Há sempre muita literatura". E muita música - "Há quem diga, consta por aí, que os meus filmes têm música a mais, mas eu gosto disso" -, e alguma América, por deformação geracional. "A seguir vou fazer um "film noir" altamente influenciado por toda uma história do cinema americano - mas vou filmá-lo no Porto e em Guimarães, e vai ser totalmente português. São as nossas ruas, são as nossas questões".

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