O mundo maravihoso de Raymond Roussel

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Roussel herdou a fortuna do pai e gastou-a a tentar promover a sua obra literáriaA escultura Celosias, da artista espanhola Cristina Iglesias, tem excertos do texto de Impressões de África, de Raymond Roussel - as letras estão encriptadas nas grades PAULO PIMENTA

Um diamante com mortos que voltam à vida, o Grand Verre de Duchamp, Júlio Verne, uma África imaginária... Que mundo era o deste excêntrico que influenciou gerações de artistas e à volta do qual se constrói um puzzle em Serralves?

O escritor francês Raymond Roussel (Paris, 1877 - Palermo, 1933) não tinha problemas de dinheiro. Tinha um problema de público: os leitores com cujo aplauso sonhava não davam mostras de qualquer entusiasmo em relação aos seus livros. E, por isso, Roussel gastava dinheiro, muito, para transformar esses livros em espectáculos de teatro, convicto de que as pessoas que enchiam e aplaudiam as adaptações teatrais das obras de Júlio Verne, como A Volta ao Mundo em 80 Dias, iriam também adorar as suas.

O dinheiro corria. "Cenários e guarda-roupa encomendados aos mais célebres (os arquivos Roussel conservam facturas astronómicas das indumentárias realizadas para Locus Solus), actores e encenadores de renome e pagos muito acima das suas remunerações habituais, etc.", escreve François Piron no catálogo da exposição Locus Solus. Impressões de Raymond Roussel, que inaugura hoje no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto (até 1 de Julho), com comissariado de João Fernandes, Manuel Borja-Villel e do próprio Piron.

E, no entanto, as peças - tal como os livros - não tinham sucesso. Piron cita um relatório da encenação de Locus Solus que mostra a reacção da crítica parisiense falando nas "centenas de milhar de francos são esbanjados para produzir Locus Solus" e concluindo: "A menos que o Sr. Raymond Roussel seja simplesmente um misantropo cínico que quis demonstrar até onde o poder soberano do dinheiro pode fazer pouco do público...".

Mas enquanto a assistência vaiava e assobiava as representações de Locus Solus e Impressões de África, sentados na plateia, maravilhados, estavam Guillaume Apollinaire, Francis Picabia e Marcel Duchamp. Os três artistas entendiam o que estavam a ver. E mais: o universo delirante que se apresentava aos seus olhos haveria de marcar profundamente a forma de encarar a arte daqueles que foram nomes maiores do Surrealismo.

Começa aí, nessa sala de teatro onde Impressões de África foi representada em 1912, a história de como Raymond Roussel viria a influenciar gerações de artistas na Europa e na América, até hoje. Uma história que cruza Júlio Verne, Pierre Loti e Victor Hugo - as grandes referências de Roussel - com Picabia, Duchamp, Apollinaire, Marx Ernst, Salvador Dalí, e que permite convocar também Méliès e o filme Viagem à Lua, Jean Rouch e os seus documentários, e ainda Michel Foucault, que dedicou a Roussel um ensaio. E permite ainda apresentar máscaras africanas vindas do Museu Nacional de Etnologia ao lado de peças de artistas contemporâneos como Cristina Iglésias ou Francisco Tropa, todos eles inspirados por esse dandy fascinante que foi Roussel, a quem o poeta francês Louis Aragon chamou "o Presidente da República dos Sonhos".

Como é que ninguém se tinha lembrado antes de contar esta história é algo que surpreende João Fernandes, director artístico de Serralves (e em breve director-adjunto do Museu Rainha Sofia, de Madrid, instituição que co-organiza a exposição), e o responsável por estarmos aqui hoje a falar de Roussel: "É um ovo de Colombo que sempre me surpreendeu".

A ideia andava na cabeça de João Fernandes há dez anos, mas "só se tornou possível quando o Rainha Sofia se interessou por ela". "Ia coleccionando informações, em conversas com artistas, descobria "ah, este também fez uma obra inspirada por Roussel"". Começou a crescer a ideia de fazer uma exposição - uma forma de "contar as histórias que ainda falta contar na história de arte do nosso tempo". Mas era um projecto teórico.

"Gosto sempre de ter uma exposição em que estou a pensar, independentemente de vir a realizá-la ou não. É muito bom trabalhar em coisas que não são uma necessidade imediata, um objectivo para o dia seguinte", explica.

Um exercício que não tem que conduzir a coisa alguma: e não é este também um princípio central da obra de Roussel, em que a ficção (não há nada de real ou realista nos seus livros) é construída a partir de palavras com o mesmo som mas significados diferentes?

Foi esse carácter de não-utilidade, que descobriu em Impressões de África, que fascinou Duchamp e inspirou uma das peças-estrela da exposição, o Grand Verre - La mariée mise à nu par ces célibataires, même (1912-1923). "Há nesta peça uma espécie de representação do desejo, mas maquinal, um dispositivo para representar graficamente o desejo dos pretendentes à noiva", explica João Fernandes. "O facto de ser possível construir uma máquina para representar com frieza o desejo sexual é uma coisa que o atrai. O Grande Vidro, a primeira das máquinas celibatárias do século XX, a ideia da máquina sem finalidade, cuja única função é funcionar sem produzir, uma máquina de resistência à ideologia utilitária".

Uma estrela na testa

A exposição desenrola-se como um puzzle que se vai construindo. Umas referências levam às outras, todas irradiando a partir de Roussel. Assim, continua o comissário, Michel Carrouges vai mais tarde escrever Les Machines Célibataires, que depois irá inspirar uma exposição organizada por Harald Szeemann, em 1976, no Museu de Artes Decorativas de Paris.

Para a exposição de Paris, Jacques Carelman constrói estranhos objectos que regressam em Serralves: um deles é um enorme diamante, agora restaurado, no qual surgem as figuras de Locus Solus que voltam temporariamente à vida, através de uma bebida chamada ressurectina, para representar episódios passados. Aprisionadas no diamante de Carelman, as personagens vão mover-se. "É uma peça cinética", diz João Fernandes, que aguardava ainda a chegada de outra peça do artista, "um tapete de dentes humanos", também descrito na obra de Roussel.

Em Serralves descobrem-se os universos que inspiraram Roussel - os escritores Júlio Verne, Victor Hugo, Pierre Loti (este pelo fascínio da viagem), o cientista e astrónomo Camille Flammarion (a exposição inclui uma bolacha em forma de estrela cósmica que Flammarion terá dado a Roussel e que este guardou numa caixa de cristal e prata com a mesma forma; julgava-se que a bolacha estava perdida desde a sua morte, mas foi encontrada por Dora Maar, uma das mulheres de Picasso). A estrela é um elemento importante - Roussel, que escreveu em 1924 uma obra intitulada L"Étoile au Front, acreditava que esta era a marca do génio, que estava convicto de possuir.

A admiração que o autor de Locus Solus tinha por estas figuras contrasta com o pouco entusiasmo relativamente aos surrealistas, os seus mais acérrimos defensores - as vanguardas eram algo que não interessava a Roussel.

Méliès também aqui está, com o filme Viagem à Lua. João Fernandes e François Piron, o responsável pela recolha de muito do material, admitem que esta é uma "pequena aventura conceptual", porque não há referências directas de Roussel a Méliès. Mas, defende Piron, "os filmes dele eram mostrados em todo o lado, e sabemos que Roussel ia a lugares assim, ao Carnaval de Nice, às feiras, aos teatros de marionetas. Era impossível que não tivesse ido aos filmes de Méliès."

E se Méliès influenciou (provavelmente) Roussel, este influenciou (sem dúvida) Salvador Dalí. O surrealista catalão "assume Roussel como grande influência", e quando morre tem Locus Solus à cabeceira. Não foi possível trazer a Serralves o quadro Impressões de África, que se encontra no Museu Boymans de Roterdão, mas haverá Impressões da Alta Mongólia, "filme pouco conhecido, mas fabuloso, que Dalí fez já tarde na vida".

Tudo o que não existiu

Avança-se pelas salas e depara-se com nova peça do puzzle: África. Se no Rainha Sofia as peças africanas vinham de museus espanhóis, em Portugal vêm do Museu Nacional de Etnologia. A relação não passa tanto por Impressões de África, mas por algo mais "real": Roussel ajudou a financiar a Missão Etnográfica e Linguística Dacar-Djibouti (1931-33) que permitiu a ida do antropólogo Michel Leiris a África e que esteve na origem do Museu do Homem de Paris.

O ponto de partida para este módulo foi uma frase de Leiris, algo como "a África de Roussel é de tal maneira imaginária que consegue mesmo escapar aos clichés coloniais". Daí que os comissários tenham pedido ao Museu de Etnologia "peças que questionassem as relações de poder". "Há um fabuloso dente de elefante que é oferecido ao Presidente Américo Tomás durante uma viagem a África, todo esculpido com os clichés da vida tribal", conta João Fernandes.

Essa ideia do colonizador visto pelos olhos dos africanos aparece também nos documentários de Jean Rouch: Les Maîtres Fous (1955), em que uma tribo imita cerimónias dos colonizadores, num estado de transe, personificando figuras como o governador ou o general; e Petit à Petit (1969), em que "são os africanos que vão a Paris e fazem etnografia estudando os franceses".

É ainda sob as Impressões de África que entramos (literalmente) na escultura Celosia, da artista espanhola Cristina Iglesias (também aqui há o jogo com as palavras homófonas, gelosia/estore e jealousy/inveja), uma estrutura labiríntica como uma prisão em que as palavras nos rodeiam fisicamente - há excertos do livro encriptados nas grades que compõem a escultura.

E assim chegamos a uma peça feita para esta exposição: Diana y Acteón, do português Francisco Tropa, que tem vários trabalhos inspirados em Roussel - autor que descobriu através de outro português, Pedro Morais, que também terá peças em Serralves (Pedro Morais, por seu lado, descobriu Roussel em Paris nos anos 60, quando Jean-Jacques Pauvert o edita e ele se "torna numa referência para a geração do Maio de 68", acabando também por chegar, através do poeta John Ashbery, aos EUA, onde influenciará uma série de artistas americanos).

"Diana Y Acteón tem uma estratégia rousseliana: parte de um tema clássico e dá-lhe uma configuração surpreendente", explica João Fernandes. "São duas lanternas mágicas que criam imagens que podemos associar a representações da sexualidade feminina e da masculina. Diana e Acteón serão os dois pólos desse desejo. É uma bela história do desejo, esta que começa com Duchamp e o Grande Vidro e termina com a peça mais recente da exposição".

No centro de tudo isto, um homem, um excêntrico que acreditava ter na testa a estrela que identifica os génios, e não compreendia porque é que o público não gostava dele. E que não imaginava que, no futuro, tantos haveriam de dizer, como Paul Éluard disse: "Que Raymond Roussel nos mostre tudo o que não existiu. A alguns de nós só interessa essa realidade".

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