O grande repórter que veio da aldeia

O Grande Prémio Gazeta 2006 foi atribuído há dias a Jacinto Godinho, jornalista da RTP, pelos três trabalhos da série Ei-los que partem - História da Emigração Portuguesa. Recebeu 20 mil euros. Fomos à aldeia onde nasceu

a Costumava gastar em jornais o dinheiro que tinha para o lanche e a mochila andava sempre cheia. Quando ia para o campo trabalhar tinha como companheiro um rádio que levava para ouvir as notícias. A paixão pelo jornalismo é algo que o acompanha desde miúdo. Lembra-se de nas aulas do 6º ou 7º ano a professora perguntar o que queriam ser. Muitos queriam ser médicos, outros bombeiros. Ele sempre quis ser jornalista.Jacinto Godinho é hoje um dos poucos jornalistas que se dedica à grande reportagem em televisão. Em 1988 terminou a licenciatura em Comunicação Social na Universidade Nova de Lisboa. Desde então, o seu percurso esteve sempre ligado à RTP. Diz que está melhor no serviço público. "Para trabalhar como eu quero é preciso uma certa liberdade."
Começou como tarefeiro, depois teve um contrato em que era pago à peça. "Nos meus tempos livres fazia reportagens por minha conta e depois propunha-as aos telejornais", diz. "Sempre tentei forçar um pouco na minha vida a possibilidade de que isso acontecesse, nem que me custasse um pouco mais, me obrigasse a passar muito mais tempo em televisão e a prescindir da vida privada. Nunca me acomodei."
São Manços, a aldeia alentejana onde nasceu, é uma das suas principais referências. "Num dos lados da minha cabeça, da minha geografia interior, está sempre São Manços porque eu tive o privilégio de viver num outro tempo dentro do tempo presente, porque a vida numa aldeia é outra forma de cultura, é outra forma de comunicação, é outra forma de relação entre as pessoas", conta. Em criança passou por dificuldades. "A vida não era nada fácil nesses tempos. O Alentejo enfrentava a pobreza. O Jacinto andou descalço até muito tarde", conta Odete Meireles, que vive em São Manços e foi sua senhoria em Lisboa.
Mas nada disso impediu que desde cedo Godinho se destacasse como o cérebro da aldeia. Começou a ler muito novo para poder requisitar livros na biblioteca itinerante da Gullbenkian. "O Sr. que lá estava só deixava que os miúdos levassem os livros se soubessem ler, uma folha escolhida ao calhas, sem erros absolutamente nenhuns. Eu lembro-me de ter ido fazer o teste no final da minha primeira classe e fui o único que fiquei, que consegui ter o privilégio de requisitar livros. Foi um novo mundo que se abriu", conta o jornalista. Calmo e educado, não entrava nas brincadeiras violentas dos colegas. Mas Emília Lourenço, a sua colega de carteira da 4ª classe, diz que "ele também as fazia pela calada, tinha muito o jeito de me fazer cócegas". Uma vez, conta, enquanto ela "estava a ler a lição, fez-me tantas ou tão poucas que eu desatei-me a rir e acabei por levar uma valente reguada da professora". "Inteligência" e "simplicidade" são as palavras que surgem automaticamente quando se fala em Jacinto Godinho em São Manços: "Quem o vê aqui não diz que ele é doutor. Calça as botas de campo, põe a boina para trás e pronto, lá anda ele. O que é certo é que tem uma tese com 1000 páginas, às vezes até penso se não se esgotará o cérebro de tanto que ele pensa", diz o irmão António Godinho. "Temos muito orgulho nele aqui na aldeia, sabe com que nota é que ele passou no doutoramento? "Distinção e Louvor"", diz Francisco Mendes, dono do restaurante O Chico. E Odete Meireles acrescenta: "Tenho guardado em casa o jornal que diz isso. Faz parte da minha caixinha de recordações." Jacinto Godinho foi a única pessoa da aldeia, nascida antes de 1970, que se formou.
Quando terminou o 12º ano, a vinda para a faculdade foi posta em causa porque as dificuldades económicas eram muitas. "Tentámos recuperar a ideia do meu pai. O Jacinto adorava estudar. Deitava-se e deixava-se dormir com os livros em cima do peito", diz o irmão António. "Foram os irmãos que lhe pagaram os estudos", revela Odete Meireles. A integração em Lisboa não foi fácil, o choque cultural foi grande, as referências eram totalmente diferentes. "Na primeira semana que saí da aldeia e vim estudar para Lisboa tinha saudades até das pedras", conta o jornalista. Lembrava-me das pedras por onde passava quando saía de casa e de repente, eu que nunca tinha pensado nisso, via a aldeia surgir-me da forma mais estranha. Tudo isto me fazia sofrer, tanto que ao fim de uma semana tive que lá voltar."
Da vida académica guarda boas recordações. Era muito estudioso, mas dava-se com os colegas. "O Jacinto era, desde o primeiro dia, uma feliz conjugação de um cérebro notável com uma modéstia que raramente voltei a encontrar", descreve Rodrigo Guedes de Carvalho, pivot da SIC. "De uma simplicidade que me cativou, um enorme sentido de humor, era capaz de se adaptar ao meio e às conversas (nunca discutíamos Wittgenstein se falávamos de futebol). Fervia em pouca água, faceta que sempre associei à sua coragem e frontalidade." Criaram a Associação dos Copos e São Convívio e o jornal Chulecoslovacos. "A associação consistia em estarmos juntos sempre que podíamos em cervejarias, bares, restaurantes ou em casa dos que tivessem mais espaço. A maioria de nós veio de outras cidades e não conhecia ninguém. Foi uma sorte encontrar na mesma turma pessoas com tantas afinidades", conta Guedes de Carvalho. O Chulecoslovacos nascia nas aulas. Não tinha uma folha universitária, era fruto das piadas que cada um ia escrevendo ao mesmo tempo que ouvia o professor. Jacinto Godinho lamenta ter perdido o contacto com a maioria dos colegas: "No fundo, vivemos todos na esperança de um dia ainda nos virmos a encontrar."
O regresso à Universidade Nova, agora como docente, surgiu numa fase em que já tinha sofrido o desgaste dos primeiros anos do jornalismo. "Percebi que voltando à universidade, sobretudo voltando à investigação, isso me ajudava a não ficar parado na rotina profissional de fazer jornalismo." Gosta muito de ensinar, mas vê-se mais como repórter do que como professor. "No papel singular de repórter tenho ali uma oportunidade única de contactar com jovens que querem ser jornalistas e têm muitas aspirações. É um momento único. Na nossa vida não temos oportunidade de contacto com gerações sucessivas como se tem ali no ensino. Isso é fantástico para mim."
A rotina é a mesma em todas as aulas. Os bons dias são dados 15 minutos depois da hora. Liga o portátil, desliga o telemóvel e dá início à aula. Depois do "momento Zen de concentração a ver se as ideias vêm", começa o discurso. As referências são diversas, de Foucault aos Gato Fedorento. A teoria é analisada num contexto actual. "Para que serve a teoria senão para compreendermos a realidade?" De olhos nos alunos, apela à sua participação. Não gosta de dar as aulas sozinho. "É o professor que nos faz reencontrar o sentido e gosto de sermos estudantes, o prazer de ir a uma aula, a surpresa de pensar para connosco "nunca tinha visto as coisas assim". Entusiasma ver o seu entusiasmo... Não nos ensina a saber, ensina-nos a olhar, ensina-nos a aprender", descreve Joana Gonçalves, uma aluna.
O jornalismo e o ensino absorvem-no, fica com muito pouco espaço para si. "Quando tenho tempo gosto de ir para o campo à procura de qualquer coisa, apanhar cogumelos por exemplo."
Susto no Brasil
Faz coisas com os sobrinhos, "espécie de irmãos mais novos", e está sempre ligado à família. "Passamos o Natal juntos, é ele que organiza tudo: traz jogos, vídeos, constrói o presépio com o meu irmão e vai de propósito a São Manços, à Quinta do Homem Morto, buscar musgo. Está sempre a contar histórias dos tempos de escola", conta a sobrinha Ana, de 16 anos.
Antes de morrer, a mãe do jornalista esteve 15 dias no hospital e Jacinto ia todos os dias de Lisboa para lhe dar o jantar. "Deixa que eu vou lá dar de comer à mãe", dizia-nos. Vinha e depois voltava", conta o irmão. Na aldeia gosta de ir às largadas, procissões e ao futebol. Gabriel Lídimo, o barbeiro da aldeia, diz que "o Jacinto só tem um defeito, é do Benfica".
"A tarefa do jornalismo", diz, "é proporcionar a possibilidade de que ele possa ter visto com os seus próprios olhos - é por isso que eu tenho um grande respeito e carinho pela reportagem."
Eduardo Ricou, o seu produtor na série documental Ei-los que Partem, que lhe deu o Prémio Gazeta 2006, anunciado há dias, diz que "o Jacinto é um profissional muito concentrado: é um homem brilhante, inteligente, que estuda tudo o que está a fazer. Documenta-se sempre muito bem. Trabalhar com ele significa, à partida, obter um excelente resultado final."
À estabilidade proporcionada pela cadeira da redacção opõem-se as situações complicadas e dramáticas que vive no terreno. Um dos momentos mais delicados foi a cobertura do Movimento dos Sem Terra no Brasil. Na orla da floresta amazónica, a mais de 500 km do hotel, sabia que se alguma coisa lhe acontecesse ali nunca mais lhe encontrariam o rasto. "De repente vi-me rodeado de pessoas que falavam da morte com a maior das naturalidades, usavam revólveres como nós usamos cajados. Um dos nativos chegou ao pé de nós e perguntou o que queríamos almoçar. Olhámos à volta e não vimos grandes condições. Depois perguntou se gostávamos de arroz de galinha. Dissemos que sim. O tipo puxou de uma pistola e uma galinha que ia a passar, pumba, deu-lhe um tiro. Foi o almoço", conta.
Rodrigo Guedes de Carvalho resume o perfil: "Jacinto Godinho é um homem íntegro, de uma inteligência notável, que se tornou, na televisão, um maravilhoso, eficaz e sensível contador de histórias."
Falta uma coisa: "Gostaria de tentar descobrir o caminho para pôr no céu, ao pé dos filmes, livros e revistas, a reportagem. Isso sim, é uma utopia."

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