Na escola tratam o João por papazinho

Quando João contou em casa que ia ser pai a mãe chorou, o pai riu. Wilson até já tem conversas sobre birras, cólicas e consultas e Tiago assumiu o seu erro. Histórias de pais
que têm idade para ser irmãos. É preciso "pôr os rapazes na fotografia" quando se fala
de gravidez na adolescência. Este texto foi publicado a 19 de Outubro de 2008

a Se as gravidezes na adolescência fossem peças de teatro, as personagens principais seriam a mãe e o bebé. Ao pai era raro ser-lhe atribuído o papel de bom, ele seria frequentemente "o malandro que engravidou a menina" e que se "retira de cena quando a acção ainda vai no primeiro acto".
Nos meses em que acompanhou a namorada à consulta de gravidez na adolescência, na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa, Tiago Pires, de 19 anos, cruzou-se com muitas meninas que vinham com amigas: "As duas com mochila de escola." Viu raparigas sem os pais, com avós, com a mãe. "Tenho pena que os pais da minha idade ou mais novos não as acompanhem", diz o pai de Maria Leonor, de dois meses, confessando que se sente "superior", porque assumiu o seu "erro", resultado de uma noite em que o preservativo se rompeu.
Nos 20 anos que leva esta consulta para mães adolescentes houve mudanças, e embora Tiago não tenha visto muitos pais na sala de espera, eles vão estando cada vez mais presentes. Se tivesse que avançar um número, Fátima Xarepe, responsável pelo serviço social da MAC que faz acompanhamento da consulta, diria que ali metade destas mães tem os rapazes ao lado até ao nascimento: "Tem evoluído."
Outra das ideias que precisam de ser corrigidas é a de que os pais dos bebés das grávidas adolescentes (definidas como tendo até 20 anos) têm as mesmas idades. Números do Instituto Nacional de Estatística do ano passado: metade (47,8 por cento) dos cerca de cinco mil bebés nascidos de mães até aos 19 anos tem pais entre os 20 e 24 anos, 17 por cento por cento entre os 25 e 29 anos e sete por cento entre os 30 e 39 anos.
Assim, só 21 por cento destes bebés têm pais adolescentes, mas uma das tendências que Fátima Xarepe nota é a de que "quanto mais novos, mais afectivos e preocupados. Os mais velhos muitas vezes já têm outras relações, com outros filhos". O João, o Tiago e o Wilson surgem como bons exemplos.
Com a chucha da bebé na mão, João Oliveira, de 15 anos, explica que dantes a sua vida era "a Rita e o futebol", agora é "a Rita, a menina e o futebol". Leva a mochila cor-de-rosa das fraldas às costas e empurra o carrinho de bebé da Mariana, de quatro meses, já habituado a ter olhares curiosos virados para um pai imberbe e uma mãe menina. A namorada disse-lhe que tomava a pílula mas afinal não era verdade.
Para ele conseguir vir com a namorada, de 15 anos, e a bebé ao médico - "fui a todas, todas as consultas" - hoje teve que faltar à aula de Educação Visual e Área Projecto. Conseguiu continuar na escola, no 9.º ano, apesar de "ser um pai com idade para ser irmão".
A diferença é que agora os colegas brincam com ele e chamam-lhe "o papazinho", já não sai com amigos, nas férias vai trabalhar no Mcdonald's e "o dinheiro é para ela", aponta enternecido.
Quatro meses depois de Mariana ter nascido as coisas em sua casa, num bairro degradado na Portela de Sacavém (região de Lisboa), estão mais calmas. Quando decidiu contar a novidade, tentou atenuar o choque, fez por se arrastar pela casa com ar triste e calado, sempre à espera que a mãe ficasse preocupada e lhe fizesse a pergunta: "O que é que tu tens? Olha que eu conheço-te." Aproveitou a deixa. "Não te zangues, mas a Rita está grávida", assim de supetão, como quem conta uma traquinice.
Depois ela disse ao pai. "Enquanto a minha mãe chorava, o meu pai ria-se." Se calhar a ela passou-lhe pela cabeça que ia ter um neto da idade do filho (João tem um irmão de quatro meses), já o pai tratou de desdramatizar: "Ele não matou ninguém. Há-de-se criar." E assim foi. Os pais de cada um dos adolescentes repartem ao meio as despesas que Mariana dá.
Enquanto isso, João anseia por um dia viver com a namorada e a bebé, mas primeiro ainda tem de chegar aos 16 anos. Antes disso a lei não permite que lhe dê o seu apelido, explica. "Eu sou responsável por ela para todos os efeitos", mas a "minha pequenota", como lhe chama, só vai ser baptizada para o ano porque nessa altura ele já pode "ser pai de nome" e a menina passa a ser Mariana Oliveira em vez de Ferreira, que é o sobrenome da mãe. Será mais um sinal para reforçar um sentimento que já tem: "Sinto-me mais completo, mais homem, mais responsável. Pronto, sinto-me um pai."
Acelerador de vida
Ter um filho na adolescência funciona como um acelerador de vida. Dantes (antes do bebé) iam às discotecas em dias de semana, paravam pela esplanada à tarde, estavam com os amigos. Hoje (depois do bebé) deixaram de poder fazê-lo. Apesar de só terem passado oito meses desde que nasceu o filho de Wilson Lopes, um ano e sete meses desde que "meteu conversa" para conhecer a namorada na estação de comboios da Azambuja, diz dessa altura: "Eu era jovem." Tinha 17 anos. Não usavam nenhum método contraceptivo, responde Wilson sem dar grandes justificações. "Não tinha noção."
Os amigos brincam quando dizem que ele de repente ficou "cota", mas, sim, é verdade, admite Wilson, "é como se fosse mesmo cota. Não tenho a mesma vida". Tanto que até já lhe perguntaram "tu tens 25 anos?", se calhar porque o vêem ir buscar o filho Ricardo à creche. Ele responde que não, que tem 18 anos. Como é que podiam ter passado sete anos em oito meses?
Apesar de os amigos se meterem com eles por já serem pais, ter um filho na adolescência, no meio onde estes rapazes vivem, não é assim tão invulgar. João, Tiago e Wilson conhecem mais como eles. Só no bairro de Wilson, o Armador (Lisboa), consegue lembrar-se de mais seis pais com a sua idade e diz que, com alguns, até tem "essas conversas: as birras, as cólicas, as consultas".
Até este ponto da história destas gravidezes sabe-se que os percursos dos três rapazes não parecem típicos porque acompanharam as mães, mas pouco se estudou sobre a paternidade nesta faixa etária. Toda a atenção está centrada no feminino e a representação social que se tem deles é quase sempre desfavorável - são "os malandros que engravidaram as meninas e fugiram, são os pais ausentes e não envolvidos", nota o médico e investigador em saúde reprodutiva, Vasco Prazeres.
A realidade é bastante mais complexa. A comparação da gravidez na adolescência a uma peça de teatro é de António Manuel Marques, autor do livro Gravidez na Adolescência: A perspectiva da paternidade.
Estes pais ora "são retirados, ou retiram-se de cena quando a acção ainda vai no primeiro acto". Nos casos mais extremos, "não chegam sequer a participar na estreia, porque nem sabiam que ia ser levada à cena, porque recusaram nela participar ou porque lhes é vedado o acesso, seja como protagonista, actor de segundo plano, figurante ou, em desespero de causa, como mero espectador".
O que já se conhece das grávidas adolescentes permite-nos saber que eles não são, muitas vezes, os vilões. Engravidar nesta idade é muitas vezes uma escolha delas. "Elas não têm que deixar a escola porque muitas já não estão a estudar. Já não têm projecto de vida. Ter um bebé é ter um projecto de vida com acesso à vida dos adultos", nota Sónia Lopes, psicóloga da Associação para o Planeamento da Família que dá acções de formação para pais adolescentes. E ter filhos tão cedo nestes meios tem "uma grande aceitação social", tanto que muitas raparigas são elas próprias filhas de mães adolescentes e até voltam a engravidar ainda na adolescência. "São grupos com muita carência afectiva" e este é um momento das suas vidas em que concentram todas as atenções, explica. Portugal continua a destacar-se, no contexto da Europa dos Quinze e segundo dados do Eurostat, pela sua elevada taxa de gravidezes adolescentes (depois do Reino Unido), mas a percentagem de mães até aos 19 anos tem vindo a diminuir: de 6,24 por cento do total de nados vivos em 2000 para 5,04 por cento em 2005.
Contextos de pobreza
Assim, é já aceite que a gravidez na adolescência muitas vezes "não está relacionada com ausência de conhecimentos e de acesso a métodos contraceptivos". Tem sim a ver com "a pobreza" e "famílias mais desorganizadas", sublinha António Manuel Marques. Em "casos pontualíssimos" tem lugar "em classes mais elevadas, com mais recursos", e muitos destes adolescentes até conseguem acabar os seus cursos superiores porque têm mais apoios, acrescenta.
"Há mais preocupação com as filhas serem engravidadas do que com os filhos engravidarem." Mas lentamente, mesmo em meios desfavorecidos, as famílias dos pais dos adolescentes vão avisando os filhos de que eles são responsáveis pelos seus actos. "As coisas têm-se alterado", constata António Manuel Marques. Ao mesmo tempo, "há um discurso moderno de envolvimento do pai que os rapazes repetem", afirma o sociólogo, que entrevistou no seu livro 24 parceiros de grávidas adolescentes.
Fala-se muito mal deles, mas "socialmente não se espera que eles estejam presentes". São os próprios serviços de saúde que os marginalizam. "Os homens são sempre vistos como parceiros ou acompanhantes e não como actores de pleno direito", defende Vasco Prazeres. "Há uma impreparação dos serviços de saúde para envolverem os pais", concorda António Manuel Marques. Eles sentem "que não vão lá fazer nada". Mesmo nas famílias, "eles são muito queixosos em relação às sogras, no parto, nas consultas, as sogras adiantam-se", constata o sociólogo, que é professor na Escola Superior de Saúde de Setúbal.
Mesmo estando embrenhados no presente, os três rapazes pensam no futuro. Quando a Mariana tiver cinco anos João terá 20, quando ele atingir os 25 ela vai ter 10, "quando eu tiver 30 ela vai ter metade". São contas de somar e subtrair que surgem na cabeça desde que João Oliveira soube que ia ser pai. A proximidade de idades entre os dois vai fazer dele "um pai moderno. Vai ser uma boa experiência", ambiciona.
Já dizia a avó de Tiago, "um bebé vem reforçar sentimentos dos pais". Estava há um ano com a namorada que conheceu no bar onde trabalhavam os dois à noite, ele como barman, ela no bengaleiro, agora vivem juntos em casa dele, depois de a mãe ter morrido no ano passado (o pai vive no estrangeiro). "Casar não é uma prioridade", mas tudo indica que "deve ser para ficarem juntos para o resto da vida".
Wilson sonha em sair de Portugal e levar a namorada e o filho para fazer vida em França, onde vivem as tias. Não se conforma em ganhar 15 euros por dia a distribuir publicidade - enquanto isso, ele e a namorada frequentam uma acção de formação onde lhes pagam cerca de 400 euros por mês.
Vasco Prazeres, médico e técnico da Direcção-Geral da Saúde, explica que, contrariamente às raparigas, não há "risco biológico para os rapazes que se reproduzem na adolescência", mas estão por estudar "os riscos psicossociais e o impacto de saber que se vai ser pai aos 16, 17 e 18 anos". Ao mesmo tempo, tão importante como "pôr os rapazes na fotografia" da gravidez na adolescência e fazer com que tenham "um retrato" é acompanhar estas histórias para saber como acabam, mesmo as que parece que têm inícios auspiciosos.

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