Maladie d"amour

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Camille e Sullivan Camille, totalitária no amor por Sullivan, prometendo-se a morte, e tentando a morte, de cada vez que sente como um insulto uma experiência dele que não a incluiu; Sullivan, rapaz em movimento, alimentando-se da liberdade que promete uma viagem à América do Sul, permitindo-se a lucidez cruel, o desejo que, mesmo amando Camille, ela desapareça

Apesar da luz - e de um rio -, UmAmor de Juventude prefere as zonas sombrias. Como Mia Hansen-Løve, realizadora que na escuridão se sente mais bem compreendida.

Mia Hansen-Løve, 31 anos, não se dá bem com a luminosidade. Quer dizer: não disfarça o mal-estar quando - e um flash de memória reenvia-a à forma como a imprensa francesa recebeu Um Amor de Juventude - lhe falam na luz do seu filme. Quando lhe dizem que é "luminoso"...

"Não é um filme luminoso", diz, e soa a desabafo de alívio. "Quando criamos coisas que os outros não vêem, isso é frustrante. É que há sempre uma dualidade naquilo que me inspira. A parte de sombra está intacta no meu filme. A parte de irremediável. Como se o filme cristalizasse o que há de trágico."

- Amas-me?

- Adoro-te

- Só isso?

Tínhamos acabado de lhe dizer que, apesar da luz - e de um rio -, Um Amor de Juventude tocava as zonas de sombra que nenhum happy end resolve. (Como, por exemplo, nos filmes de Murnau, de onde se sai com a sensação clara de que há um compromisso humano irreversível com a escuridão.) Com a referência à escuridão Mia Hansen-Løve, pelos vistos, sente-se cineasta bem mais compreendida.

O amour de jeunesse entre Camille (Lola Creton) e Sullivan (Sebastian Urzendowsky) começa por parecer corresponder a uma imagem de intimidade e fragilidade que foi e ainda é a de um certo "cinema francês". Mas começa também a mostrar uma malaise a progredir no interior desse formato - uma insistência, uma repetição doentia, que faz com que uma crónica amorosa adquira o peso de uma história que insiste em fixar a sua crueldade. Camille, totalitária no seu amor por Sullivan, vertendo lágrimas e prometendo-se a morte, e tentando a morte, de cada vez que sente o desaire distanciar dela o seu Romeu, de cada vez que sente como um insulto uma experiência dele que não a incluiu; Sullivan, rapaz em movimento, ele e a sua bicicleta, sempre em movimento, alimentando-se da liberdade que promete uma viagem à América do Sul, permitindo-se a lucidez cruel, a coragem das rupturas, o desejo de que, mesmo amando Camille, ela desapareça.

Camille e Sullivan, bon voyage ao amor.

E ele parte, o amor, para regressar. E voltar a partir.

- Tu queres ser tudo. Não é possível

"É a crueldade da vida. Foi isso o que compreendi: que o que há de muito duro é o facto de a história se repetir. Sullivan deixa Camille duas vezes. E não há nada de errado nisso. Nem sequer nele - ele até é uma personagem generosa. O que é cruel é a repetição. Acredito no amor deles. Mas se calhar não há espaço para eles ou eles não dão espaço a esse amor. O que me interessa nele, Sullivan, é a sombra. Fiz três filmes [Tout est pardonné, 2007, O Pai das Minhas Filhas, 2009] em que os homens são destruidores. Isso talvez possa irritar algumas pessoas. Mas é por esse lado que gosto desses filmes."

O rio que é o Verão de Camille e Sullivan e ao qual ela regressa no final é o rio de Mia Hansen-Løve. Onde ela passava férias. Há uma espécie de desadequação - é o que parece inicialmente - na forma como estes (des)amores de juventude nos vão sendo relatados: os acontecimentos entre Camille e Sullivan são fixados através de uma datação, Paris, Fevereiro de 1999, depois 6 de Fevereiro, 2000, 13 de Setembro, 2003, ou ainda 12-07-2007... Como se o filme quisesse (é essa a sensação inicial de desadequação) inscrever uma história pessoal no fôlego de algo maior, usar os procedimentos de um fresco para contar uma história íntima de oito anos e para todas as estações. Ou será que é o sinal de que há aqui uma memória a lembrar-se e a impedir que uma história seja esquecida? É. É a memória de Mia Hansen-Løve, que andou por estas águas.

"A universalidade só pode vir do que é particular. Como cineasta detesto a generalidade. É importante inscrever o filme num tempo, marcar uma data. Daqui a 20 anos, quando vir este filme, quero que ele esteja inscrito num determinado tempo. Não gosto da ideia de que um filme é intemporal", começa por dizer.

E depois enfrenta: é a sua biografia, mesmo que não seja um filme autobiográfico. É como se para chegarmos a Camille e Sullivan tivéssemos de contar sempre com uma terceira presença, a da realizadora, a de uma memória in progress. Não na forma de mero relato confessional, desvio que marca o tom de Um Amor de Juventude.

"Tem a ver, é verdade, com coisas que vivi e conheci. E quanto a isso, não podia, por exemplo, contar esta história em 2010. A rapariga que fui já não sou. Tem a ver com a memória. Gosto de ficção e de romanesco, acredito que tudo pode acontecer. Mas ao mesmo tempo o cinema é memória. É como ter um diário: não quero que as coisas desapareçam. O meu cinema é biográfico, não necessariamente autobiográfico."

É qualquer coisa que está "entre", portanto. "O cinema é transformação. O diário é qualquer coisa em que se anota. A questão, então, é: como posso não trair a verdade mas fazer outra coisa? Há um desejo de outra coisa, para não ficar presa à biografia, ao que vivi."

- Deixo-te porque é demasiado tarde ou demasiado cedo para recomeçar

Para poder habitar esse jogo entre memória e ficção, Mia Hansen-Løve, que entre 2003 e 2005 escreveu crítica de cinema para a revista Cahiers du Cinéma, e que em 1998 e 2000 foi actriz em filmes de Olivier Assayas (Fin août, début septembre e Les Destinées Sentimentales, respectivamente), diz ter tido necessidade de encontrar o timing adequado. Tem "milhares" de lembranças de si própria e do que lhe aconteceu. O filme alimenta-se de tudo isso. Mas não se trata, sublinha, de contar "como foi". Trata-se de contar hoje, de "escrever no presente". Por isso, e fala agora de um método, "se a coisa está ainda muito quente", não lhe "é possível fazê-lo logo". Se está longe de mais, "já não é possível" mesmo escrever.

"Tenho de estar "entre"... No caso deste filme, quando o comecei a escrever as coisas ainda estavam demasiado próximas. Por isso tive de parar para depois regressar. Realizei entretanto outro filme. E tive um filho."

Quando começou, quis aliás estar mais perto de Sullivan - personagem a que instintivamente associou logo uma bicicleta. Queria estar com Sullivan. "Talvez por pudor", para se proteger. "A rapariga estava demasiado próxima de mim." Mas não conseguiu. "Não saberia o que seria ir para a América do Sul, que é para onde ele vai, não falo espanhol sequer. Depois de O Pai das Minhas Filhas voltei então ao argumento. Foi um recomeço. O que gosto na versão que acabei por escrever é de uma certa esquizofrenia".

Entramos no filme com Sullivan, de bicicleta - é uma daquelas figuras que se definem por um pormenor -, prosseguimos nele com Camille. As vozes vão-se alternando, o seu peso... "Há uma voz masculina e uma voz feminina. As canções em Um Amor de Juventude não cumprem a função de "música de filme", que é uma coisa que detesto, aliás. É como uma exteriorização das personagens, algo que abre o filme ao mundo. Podem ser canções que eles ouvem ou então que os assombram. Não é por acaso, então, que a última canção do filme é cantada a duas vozes."

Sullivan é "a ideia de liberdade, é alguém sempre em movimento, em fuga... Na verdade, é uma personagem que reenvia a outras personagens masculinas dos meus filmes anteriores... Há uma parte dele que nos escapa, que me escapa - mais facilmente domino Camille. Mas como argumentista e cineasta não tento conseguir no cinema aquilo que não consegui na vida real. Não tento ser omnisciente: aquilo que me escapa na vida quero que me continue a escapar no cinema. Não faço um filme para dominar o que me escapou na vida. Quero restituir esse sentimento [do que escapa]. De outra forma seria desonesto, mentiroso."

Ver crítica de filme págs. 41 e segs.

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