Hélio Oiticica A trágica ironia de um incêndio

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É difícil conceber que a obra de um dos mais originais artistas do século XX estivesse no primeiro andar de uma casa de família e mais difícil ainda vê-la desaparecer em chamas. O Brasil está de luto. E nós também. Não devia ser necessário chegar aqui para aprendermos a preservar a nossa memória. Por Vanessa Rato

Foi por volta das 23h de sexta-feira. César Oiticica diz que estava a jantar com amigos, quando ouviu barulhos estranhos vindos do primeiro andar da casa que foi em tempos do seu pai, no Jardim Botânico, um dos bairros da zona sul do Rio de Janeiro, perto de Ipanema e do Leblon e ao lado da sua própria casa. O corpo de bombeiros chegou em cerca de 20 minutos, mas seriam necessárias três horas para extinguir o incêndio. Mais tarde, entre os despojos, o primeiro balanço feito em lágrimas pelo arquitecto de 70 anos seria catastrófico, declarando a perda de cerca de 90 por cento das cerca de duas mil obras e objectos documentais que compunham o acervo do seu irmão, o artista plástico Hélio Oiticica. Um conjunto que a família estimou representar uma perda financeira na ordem dos 200 milhões de dólares (mais de 130 milhões de euros), que estava por segurar e tinha um valor artístico inestimável.

Falecido em 1980, quando tinha apenas 42 anos, Hélio Oiticica foi um dos mais importantes e transgressores nomes do movimento neoconcretista do Rio, um dos artistas maiores que na segunda metade da década de 1950 pegaram na herança do modernismo europeu e nos princípios do Concretismo de São Paulo transformando-os no que viria a ser o arranque da contemporaneidade brasileira, anos 1960 e 1970 adentro e com desdobramentos ideológicos tão fundamentais e populares para o forjar de uma identidade nacional como o Tropicalismo de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé.

Oiticica era um erudito, com uma obra por vezes extraordinariamente cerebral, mas era também um humanizador, apostado no sensorialismo, na ludicidade e na subjectividade como estratégia de aproximação entre a arte e a vida e, sobretudo, entre a arte e um público que já não se queria passivo - como acontecia com o mais puramente geométrico e abstracto Concretismo ortodoxo -, mas que se desejava, antes, parte integrante da obra de arte, um activador desta.

A redescoberta

Com os seus Bólides (pequenas esculturas para manusear), Parangolés (capas coloridas para usar sobre o corpo), Penetráveis (ambientes arquitecturais que o público atravessa) e a absoluta irreverência contracultura das Cosmococas (instalações multissensoriais de imersão total do público), tornar-se-ia numa das principais forças renovadoras das vanguardas e do debate artístico no Brasil. Nos últimos anos, juntamente com Lygia Clark e Lygia Pape, tem sido também um dos nomes de ponta de todo um fenómeno de redescoberta internacional das vanguardas brasileiras, nova e urgente etapa de uma revisão pós-colonialista da história da arte agora já não fechada sobre o tradicional eixo Europa-Estados Unidos, mas a abrir lugar a latitudes antes sem presença no mapa-mundo das grandes potências e geoestratégias internacionais. Uma revisão que começa a tornar evidente a forma como vários movimentos e vozes individuais antes ignorados anteciparam por vezes em muito tempo tendências internacionais tidas como fundamentais.

Com esta revolução em curso, em 2007, a Tate Modern, de Londres, dedicava a Oiticica uma grande exposição de cerca de 150 trabalhos intituladaThe Body of Colour, a primeira do artista no Reino Unido desde os anos 1960, quando a ditadura militar o levou a um exílio de dois anos em Londres.

Então, a Tate tinha em funcionamento há sete anos uma comissão de aquisições de arte latino-americana que lhe permitiu comprar oito trabalhos de Oiticica, incluindo a seminal Tropicália, de 1966-1967, a grande selva com areia, televisores, plantas e papagaios vivos feita para a exposiçãoNova Objetividade Brasileira,em que o artista lançou o conceito de Tropicalismo, reafirmando e reconfigurando princípios doManifesto Antropofágico publicado em 1928 pelo poeta Oswaldo de Andrade ("A primeiríssima tentativa consciente, objectiva, de impor uma imagem obviamente "brasileira" ao contexto da vanguarda e das manifestações da arte nacional", diria Oiticica).

Tropicália é uma das obras que se salvaram. E está longe de ser uma excepção absoluta.

Em Nova Iorque, o MoMA, Museu de Arte Moderna, tem nas suas colecções 12 trabalhos, dos quais oito Metaesquemas- guaches sobre cartão - datados de entre 1956 e 1960 e há outro núcleo de obras na Argentina, no MALBA, Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires. Também em 2007 - e no que foi outra grande polémica brasileira - o Museu de Belas-Artes de Houston comprou aos herdeiros a Colecção Adolpho Leirner, com centenas de obras, entre as quais algumas de Oiticica. Já de volta ao Brasil, o Inhotim, o extraordinário centro de arte contemporânea criado pelo coleccionador Bernardo Paz no meio do nada na mata atlântica de Minas Gerais, tem em exposição numa das suas galerias permanentes a instalaçãoCosmococa 5 Hendrix-war, exemplar datado de 1973 do complexo período nova-iorquino, em que Oiticica trabalhou com o cineasta Neville d"Almeida, desenvolvendo a sua série pioneira de instalações ambientais multissensoriais com objectos escultóricos, desenhos, livros, capas de discos, fotografias, música, projecções deslides e redes brasileiras onde, originalmente, o público se podia deitar - "quasi-cinemas", dizia Oiticica.

Em Outubro do ano passado o Inhotim inaugurou também Magic Square no 5 - De luxe(1978), uma grande obra ao ar livre do grupo dos Penetráveis Magic Square, praças construídas a partir da figura do quadrado e do uso da cor como activador de planos, dado central em toda a obra de Oiticica - o "lugar de um percurso" dedicado à "criação de vivências subjectivas da cor", dizia o artista. Ainda no Inhotim está também planeada a construção de uma galeria para juntar em permanência todas as suasCosmococas-Cosmococa 1 Trashiscapes,Cosmococa 2 On object,Cosmococa 3 Maileryn,Cosmococa 4 NocagionseCosmococa 5 Hendrix-war-, ficando apenas sem data de montagem umMagic Square 6, de 1979.

Também a maioria dos grandes Penetráveis se salvou, já que estavam divididos entre a garagem da família, não afectada pelo incêndio, e os acervos do Centro Municipal Hélio Oiticica, criado em 1996 pelo município do Rio num edifício do século XIX do centro da cidade, com cerca de dois mil metros quadrados divididos por três andares.

Supunha-se que esta estrutura viesse a conseguir um acordo para receber em depósito permanente o legado do artista, tornando-se responsável pela sua conservação, estudo e divulgação. Contudo, a relação entre o centro e a família Oiticica foi tensa desde o início, com a pior das polémicas a estalar no princípio do Verão, quando os irmãos de Hélio interromperam uma exposição e retiraram do edifício - para as reservas que agora arderam - a maioria dos trabalhos ali depositados.

Segundo César e Cláudio, herdeiros directos de Hélio, os serviços municipais estavam em falta desde Janeiro com o pagamento de uma tranche de 267 mil reais (pouco mais de 100 mil euros) devida pela realização da exposição, um atraso que, segundo os serviços municipais, se deveu à mudança de chefias na Secretaria Municipal de Cultura. Mas César declarou também que as reservas do centro não tinham as condições técnicas necessárias, nomeadamente em termos de desumidificação, aspecto fundamental, para mais num país como o Brasil.

Até à hora de fecho desta edição não foi possível obter quaisquer declarações de César Oiticica, mas, anteontem, Mário Chagas, número dois do Instituto Brasileiro de Museus e um dos responsáveis da equipa enviada de Brasília para o Rio para ajudar a família na operação de resgate dos acervos, em curso desde segunda-feira, sublinhou ao P2 que este "não é momento para paralisar a atribuir culpas". Uma declaração que põe a nu a trágica ironia de um incêndio que, por fim, obrigou Estado e família a um entendimento mínimo (César Oiticica já agradeceu publicamente a ajuda).

Ainda na primeira fase da operação de emergência (recuperação e secagem de obras), Mário Chagas diz que o número de trabalhos perdidos deverá ser bastante inferior ao inicialmente apontado por César Oiticica: "As primeiras declarações foram provocadas pelo trauma, porque o que aconteceu é traumático, uma grande tragédia. Mas, para nossa felicidade, muitas obras que pareciam completamente destruídas estão a ser salvas, incluindo obras do início da carreira do Hélio, mesmo desenhos e pinturas a guache e recortes de jornais. Hoje mesmo [anteontem] conseguimos recuperar obras praticamente intactas."

Também ainda sem resultados oficiais sobre a origem do incêndio - pensa-se que uma falha no sistema eléctrico - e baseando-se apenas nas suas observações, Mário Chagas afirma que "claramente [o espaço] tinha um plano de segurança" e que a investigadora e a museóloga contratadas pela família tinham, por exemplo, cada obra sobre papel embalada separadamente, segundo os melhores padrões.

Um dilema

"Foi uma fatalidade", diz. Uma fatalidade provavelmente não distante da de Maio de 2004, quando um incêndio num armazém de Leyton, na zona este de Londres, propriedade da Momart, uma das maiores empresas de conservação e transporte de arte do mundo, destruiu centenas de obras de dezenas de artistas, incluindo telas da portuguesa Paula Rego e trabalhos como a instalaçãoHell, que os irmãos Jake e Dinos Chapman tinham levado dois anos a construir, bem como a célebre tendaEveryone I Ever Slept With, em que Tracey Emin bordara o nome de todas as pessoas com quem partilhara cama.

E, contudo, o caso Oiticica deixa o sabor amargo de o Estado brasileiro e a família do artista nunca terem conseguido chegar a um acordo, no que é, aliás, também verdade para o legado de artistas como Lygia Clark e Lygia Pape, igualmente na posse das famílias.

"É um dilema. Muitas questões se colocam para o Estado brasileiro. A principal, no fundo, é que o primeiro respeito vai para a família, que não podemos obrigar a vender [pelos valores que o Estado pode pagar], nem a ceder em comodato. Seríamos acusados de intervencionismo, autoritarismo e mais."

Ainda segundo Mário Chagas, data de Maio deste ano a criação de um estatuto de Acervos de Interesse Público que ainda não está activo mas através do qual, de futuro, o Estado brasileiro pode acompanhar, fiscalizar e apoiar o estudo e conservação de corpos de obra como a de Oiticica em mãos de privados.

Também anteontem, a curadora Vanda Kablin, primeira directora de exposições do Centro Municipal Hélio Oiticica - 1996 a 2000 -, explicou ao P2 ter estado há duas semanas nas reservas da família e disse que, independentemente do que venha a ser salvo, "o que ardeu era o coração da obra" de Oiticica, com o qual "ainda havia muito trabalho de divulgação para fazer". "O potencial de irradiação poética era inesgotável. Não sei como é que as próximas gerações vão entender a obra dele."

"Uma catástrofe. Estamos de luto", resumiu Ana Durães, que tomou posse em Fevereiro como nova directora do centro e que nunca chegou a visitar o acervo da família antes do incêndio (esteve anteontem entre os escombros).

É correr os olhos pela lista de empréstimos das obras que fizeram parte da exposição da Tate: raríssimas as que não vieram da Colecção César e Cláudio Oiticica.

Numa nota enviada anteontem ao P2 por e-mail, os responsáveis da Tate afirmavam: "Estamos profundamente entristecidos pelas notícias sobre o incêndio. O desaparecimento de tantos trabalhos do Hélio Oiticica é uma tragédia e uma grande perda para a história da arte e para as futuras gerações de artistas e públicos."

Em Portugal, o trabalho de Hélio Oiticica foi exposto em Serralves (Tropicáliaesteve naCirca 68, a exposição inaugural do museu, em 1999), no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (numa individual em 1993 e numa colectiva,Arte do Brasil, em 2000) e no Centro Cultural de Belém (exposição da ColecçãoHelga de Alvear, Conceitos para Uma Colecção, em 2006). Há um vasto acervo digitalizado da obra do artista nositedo Itaú Cultural em www.itaucultural.org.br.

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