Entrevista Amin Maalouf

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Sem o Médio Oriente será difícil fazer algo, Obama sabe e tem um plano, crê Amin Maalouf, que esta semana está em Portugal. Quanto ao Afeganistão, talvez não haja um plano. O Irão pode ser um modelo de sociedade moderna, mas a melhor ajuda é não interferir. Os imigrantes poderão ser os grandes intermediários de um novo mundo, em que há uma só nação de muitas culturas. Todos somos o outro e não há estrangeiros. No seu novo livro, Um Mundo Sem Regras, este autor libanês, há muito radicado em França, propõe uma reinvenção do mundo. Por Alexandra Lucas Coelho

a Amin Maalouf, de 60 anos, está traduzido em dezenas de línguas e é um autor muito popular em Portugal, também. Em caso de dúvida, bastava ver a plateia que quarta-feira acorreu à Gulbenkian, em Lisboa, para o ouvir, num diálogo apresentado por António Monteiro e moderado por António Vitorino. Maalouf esgotou o Auditório 2, o átrio onde foi montado um ecrã, e a escadaria. As perguntas partiram do seu último livro, Um Mundo Sem Regras, acabado de traduzir na Difel. É um diagnóstico arrasador quanto ao esgotamento em que o mundo mergulhou. À tese do conflito de civilizações, Maalouf contrapõe a união numa só civilização como única hipótese de sobrevivência. Fala das mudanças climáticas, da crise económica e da crispação das identidades, que divide os homens em tribos. Depois de falharem comunismo, ateísmo, capitalismo, e religião, o século XXI, diz, será o da cultura ou não será.Longa entrevista em Lisboa, onde Maalouf fica até domingo. Filho de jornalistas e professores, ele próprio ex-jornalista, é um conversador generoso e afável.
Este livro apela à urgência. Defende que não há várias civilizações, só uma, e chegámos a um ponto em que morremos juntos ou nos salvamos juntos. É pessimista, mas há passagens em que o pessimismo parece mudar. Decidiu fazer o livro antes de Obama e entretanto Obama apareceu?
Exacto. Comecei a trabalhar neste livro em 2004. Li muito, sobre as mudanças climáticas ou o Iraque. E tinha a sensação de que as coisas estavam realmente a ficar más em muitos níveis.
Depois da reeleição de Bush?
Depois da reeleição foi ainda mais evidente. Mas há 10 ou 11 anos, quando escrevi As Identidades Assassinas, já sentia que as coisas estavam erradas. A seguir houve o 11 de Setembro, e a resposta da administração Bush criou uma situação realmente preocupante: Guantánamo, a presença no Iraque, todo o comportamento dos EUA.
Não me opus totalmente à intervenção no Iraque. Tive sentimentos ambíguos. Por um lado, não gostava da construção de pretextos e daquela pressão sobre toda a gente: "Têm que alinhar connosco." Ao mesmo tempo, uma voz dizia-me: "Bem, se eles se livrarem de Saddam Hussein, talvez as coisas comecem a mexer-se neste Médio Oriente que não está a ir a lado nenhum..." E ainda penso que se os EUA se tivessem portado de forma diferente depois da guerra, se tivessem agido cautelosamente, tendo em conta os interesses verdadeiros das pessoas, tentando conduzi-las à democracia e à prosperidade, as coisas poderiam ter sido diferentes em toda a região. Mas começou a correr realmente mal.
Então, demasiadas coisas estavam a correr mal: o Iraque; a questão das identidades e da coexistência; a relação do Ocidente com o mundo árabe e islâmico. E havia o problema das mudanças climáticas. Sentimos que é possível lidar com todos os outros problemas, mas esta bomba-relógio climática, de irmos rumo a algo irreversível se não mudarmos o nosso comportamento...
Era preciso dizer que as coisas estão más, que tudo isso tem a ver com a incapacidade de ter em mente toda a nação humana, que já não é possível que cada um lute pelo seu interesse contra os outros.
Depois, durante a escrita do livro, muitos acontecimentos vieram confirmar que as coisas estavam más. Em muitos países europeus a coexistência com os imigrantes não funcionava. E no fim há um verdadeiro raio de esperança, uma pessoa.
Obama.
Li os livros. Vi e ouvi os discursos. E ele não estava a falar ao instinto, estava a falar à razão. Só uma pequena minoria de políticos fala à razão. E essa é a verdadeira atitude democrática. Tentar convencer em vez de manipular. Desenvolver argumentos. Senti que intelectualmente e eticamente ele estava a um nível muito alto. E não fui indiferente ao seu background, porque é importante, sobretudo depois dos anos Bush, ter uma pessoa nos EUA com a qual o mundo se possa identificar. É essencial. E miraculosamente ele veio.
Isso reflecte-se no processo de ler o seu livro. Há passagens no princípio em que diz: as coisas só podem melhorar se a América perceber o que aconteceu no Iraque, se persuadir o mundo da sua legitimidade moral, etc., etc. Pequenos sinais que chamavam por alguém como Obama.
Absolutamente. Tinha todo um capítulo acerca do Presidente americano ser eleito pelos americanos mas ter jurisdição em todo o mundo.
A questão da legitimidade.
Sim. O mundo não podia identificar-se com aquelas pessoas eleitas, e de repente pôde. Foi fascinante.
O mundo não votou, mas celebrou.
Não votou fisicamente, mas na realidade votou. Não sei se alguma vez voltaremos a experimentar isto. O sentimento era: "Esta pessoa também nos representa. OK, está a ser escolhida pelos americanos, mas nós também a escolhemos." E é isso que é tão perturbador. Vivemos uma experiência muito precisa com uma pessoa, com um background particular, e havia esta convergência entre a América o mundo...
Está a dizer que se Obama falhar...?
... então o quê? É uma tragédia para a América, para o Ocidente e para o mundo. Se Obama conseguir o que pretende, terá enorme impacto na evolução do mundo. Se conseguir reconciliar o Ocidente com o mundo árabe e islâmico, e o mundo árabe com o mundo judeu; se começar um verdadeiro processo de reverter as mudanças climáticas e o aquecimento global; e se resolver a crise económica, que ao mesmo tempo é a mais difícil e a menos difícil das três tarefas.
Esperemos que seja bem-sucedido. Sobretudo a reconciliação mundo árabe-Ocidente e as mudanças climáticas. Se conseguir isto, conseguiu o mais importante.
No seu diagnóstico sobre o estado do mundo começa por falar do resultado da Guerra Fria. O Ocidente venceu mas acabou por ficar mais fraco. China e Índia tornaram-se potências económicas. Houve uma passagem da ideologia para a identidade e o islão político [aliado do Ocidente na luta contra a URSS] saiu fortalecido. O choque do 11 de Setembro foi a revelação do verdadeiro resultado da Guerra Fria? Do que o Ocidente não soube resolver?
Absolutamente. Há três momentos importantes. No fim da Guerra Fria entrámos numa nova era, cheia de esperança, mas que precisava de ser abordada de forma muito responsável - tínhamos que construir algo. O 11 de Setembro foi o sintoma que revela que não conseguimos - devíamos ter construído todo um outro tipo de relação entre as nações, deixámos as identidades florescer, o mundo islâmico estava à deriva. O 11 de Setembro veio como sintoma de uma doença e depois veio o remédio.
A "Guerra Contra o Terror".
Que em vez de curar o doente agravou a situação.
Por ter reforçado a divisão do mundo?
A América portou-se depois do 11 de Setembro como os autores do 11 de Setembro esperavam. Foi uma provocação destinada a deixar que a América antagonizasse grandes partes do mundo. E foi exactamente o que a América fez. No dia em que os ataques aconteceram, 99 por cento do mundo estava com os americanos. Eles deviam ter conduzido o mundo a algo diferente. E escolheram empenhar-se em guerras sucessivas. A do Afeganistão era provavelmente inevitável, a do Iraque era claramente evitável. Antagonizaram até aliados, pressionando-os a tomar partido, adoptando a ideia de que quem não está connosco está contra nós, o que é sempre estúpido.
E era um espelho da visão do mundo que o islão político tem.
Era exactamente o que os inimigos da América esperavam. Uma vez ouvi Donald Rumsfeld responder a perguntas na TV. O jornalista perguntou-lhe se pretendiam respeitar a Convenção de Genebra e ele respondeu: "Respeitaremos mais ou menos." É chocante ouvir o representante da melhor democracia do mundo dizer que respeitará mais ou menos a legalidade. O dever de um governo democrático é dizer: "Nós somos os guardiães da legalidade internacional." Se diz que está disposto a não respeitar as regras, toda a gente fica ao mesmo nível.
Como um segundo ataque à América, forçá-la a descer o nível moral.
A provocação era essa, fazê-la portar-se de modo a ficar mal. Então, a primeira data importante foi o começo da nova era depois da Guerra Fria. A segunda data foi o 11 de Setembro, sintoma de que a nova era não estava no bom caminho. E a terceira data foi 2008.
A correcção: Obama.
Exacto.
Na sua análise, diz que o Ocidente nunca conseguiu decidir entre civilizar e dominar, nunca levou o melhor que tinha - valores humanos e prosperidade - aos países que colonizou, e essa incapacidade criou uma falta de confiança que afecta as relações do Ocidente com o resto do mundo. Vemos isso até hoje, por exemplo no Afeganistão. A Europa é a guardiã dos melhores valores que a humanidade concebeu e falhou em estendê-los aos outros.
O meu ponto de partida é o de quem está dentro do retrato. Tenho relações com duas culturas [europeia e árabe]. Tento uni-las, construir pontes. E nos últimos anos tenho a sensação profunda de que as minhas duas culturas estão no mau caminho. Quando estou sentado na Europa e vejo o comportamento do mundo islâmico e árabe, fico profundamente chocado com muitas coisas. E quando me sento no mundo árabe e islâmico, há atitudes muito chocantes no Ocidente. A maioria das pessoas não vê isso dos dois lados.
Por isso, aqui, será importante focarmo-nos no que os leitores ocidentais não podem ver.
Claro que o Ocidente espalhou ideias, mas isso é sobretudo mítico, não é real. Claro que houve disseminação da democracia, mas isso não foi feito de forma que as pessoas sentissem: "Vocês trouxeram-nos democracia." Na Argélia ou na Índia, as pessoas souberam da democracia por olharem o Ocidente, mas sempre que o Ocidente foi ao país deles não tentou favorecer a democracia. Antagonizou os que estavam mais prontos para a modernidade. França, por exemplo, proclamava a separação do Estado e da religião. Ao mesmo tempo, na Argélia, chamava aos habitantes "franceses muçulmanos". A única razão para isso era não lhes querer dar direitos completos.
Manteve-os confinados à sua "tribo".
Privou-os de cidadania, de facto. Se votassem, talvez tivessem tido um papel maior. E isto é algo que as pessoas não esquecem. Portanto, quando os franceses dizem: "Trouxemos democracia à Argélia", não é verdade. Os ingleses não trouxeram democracia à Índia. Os indianos olharam a democracia inglesa, aprenderam coisas dos ingleses, tentaram aplicar o que achavam admirável, mas isso teve de ser conquistado, e o comportamento dos ingleses foi limitar a liberdade de imprensa, oprimir as pessoas, forçá-las a comprar isto e aquilo.
Toda a história do colonialismo é uma história de opressão e de humilhação. Em França dizemos muito que espalhámos saber. Não é verdade. Veja o número de pessoas com diplomas em África no fim da colonização francesa. Quantos médicos havia? Muito poucos. E isso é verdade para os portugueses, para os ingleses.
O papel de trazer civilização, modernidade e conhecimento foi abafado pelo desejo de dominar, e dominar eternamente, não dar oportunidade às pessoas de serem independentes e se governarem. Encontrei uma citação de Samuel Huntington, logo ele [o autor de O Choque de Civilizações]. Diz claramente que o Ocidente dominou o mundo não pelo conhecimento mas pela superioridade militar. Os ocidentais tendem a esquecê-lo, mas os outros nunca esquecem. Até porque, como disse, isso ainda não acabou. Não há razão para que 250 cerimónias de casamento tenham sido bombardeadas no Afeganistão. Devia haver um respeito pelas pessoas com quem se lida. Se não nos portamos assim no nosso país, porque nos portamos assim no Afeganistão ou no Iraque? Porquê disparar sobre um carro onde vai uma família? Não podemos ir a um país, tomar-lhe o destino nas mãos e portar-nos assim.
Acredita que a democracia é para todos. Acha um erro dizer que o Iraque não quer democracia quando os iraquianos fizeram filas para votar entre ataques suicidas. Mas há quem continue a defender que islão e democracia são incompatíveis.
Há uma atitude no Ocidente que é dizer: "Ah, o problema dos americanos foi tentarem impor a democracia a um povo que não estava preparado para ela." Acredito firmemente no contrário. Os iraquianos queriam democracia, esperaram prosperidade, paz, modernização, e os americanos não trouxeram nada disso.
Todos os dias ouço essa atitude no Ocidente: "Sabe, essas pessoas são assim, nós também éramos, com o tempo as coisas mudarão." É a atitude de considerar que não precisamos de ter princípios quando atravessamos o mar, porque respeitamos a especificidade. Isto é profundamente hipócrita. Não é verdadeiro e é contraproducente. A aspiração das nações, das pessoas em toda a parte, é praticamente a mesma. As pessoas querem viver melhor, querem vidas melhores para os filhos, mandá-los para a escola. Em toda a parte querem viver com dignidade.
O que acontece às vezes é que não lhes é dada alternativa. Há um ditador e a forma de as pessoas se organizarem é a religião. E todo o discurso se desenvolve a partir daí. Quando a verdadeira aspiração não é essa.
Não penso que haja no islão algo que impeça as sociedades de se tornarem democráticas, modernas, avançadas.
Precisamos de olhar para "o outro" como um vasto mundo de diferentes línguas, tradições, crenças. Há países islâmicos com eleições abertas, por exemplo, hoje mesmo, a Indonésia. A vasta maioria dos indonésios não vê contradição entre democracia e crença, e é a mais populosa nação islâmica do mundo. Isto pode acontecer em qualquer lado. A Indonésia teve uma mulher presidente, o Bangladesh, o Paquistão, a Turquia tiveram mulheres primeiras-ministras. Podemos empurrar as pessoas para o pior de si, mas é mais responsável empurrá-las para o melhor.
Se resolvermos o problema do Médio Oriente e as relações entre Ocidente e mundo islâmico, talvez as pessoas mais teimosas fiquem isoladas e não sejam capazes de mobilizar massas.
O melhor que podemos tirar do desastre do Iraque é nessa direcção? O diagnóstico que faz é de catástrofe. No seu livro diz: claro que a América ultrapassará o trauma do Iraque, mas o Iraque não ultrapassará o trauma da América: 700 mil mortos, minorias milenares desaparecidas para sempre. E uma das razões foi esse confinamento das pessoas a uma tribo, a uma identidade. Temos sinais de que a América começou a aprender as lições do Iraque?
Quando ouço o que Obama diz, estou convencido de que ele realmente percebeu tudo. Ele sabe que é muito perigoso jogar com este tipo de rivalidade de comunidades, porque quando se começa não se consegue parar.
Mas não estou certo de que o comportamento dos EUA e do Ocidente mude. As visões são as mesmas. Por exemplo, dizemos que o conflito entre xiitas e sunitas nunca devia ter sido incendiado, e as pessoas respondem: "Ah, mas isso é um conflito com 1400 anos." É verdade. Mas há muitos conflitos em todo o mundo em fase latente, e a habilidade política está em impedi-los de se transformarem em verdadeiros conflitos. Todo o fim da governação é impedir os conflitos potenciais.
O que achou do discurso de Obama ao mundo muçulmano? Ele fez um mea culpa em relação ao derrube do Governo democrático de Mohammed Mossadegh, no Irão, em 1953.
O que ele disse sobre o Irão foi cautelosamente medido: fizemos erros. Quantos americanos sabem e se importam com o que aconteceu no Irão em 1953? Não muitos. Mas para os iranianos ainda hoje é importante. Custou milhões de vidas. Eles não ultrapassaram esse trauma. Tinham um líder popular que só queria uma parte justa da riqueza do país.
Metade do petróleo.
Ele pediu metade e [os ingleses] queriam dar-lhe 5 ou 10 por cento. Algo humilhante. Foi eleito, era um homem aberto, secular, educado na Suíça, e foi humilhado pelo Ocidente quando era a pessoa mais próxima dos ideais do Ocidente. Houve um golpe de Estado, hoje sabe-se, organizado por americanos e ingleses, e não se pode esperar que os iranianos tenham esquecido isto, porque afectou a vida deles durante décadas.
E teve impacto na revolução islâmica de 1979, que cobriu como repórter. Como é que esse golpe de 1953 estava presente?
Está sempre presente. Há coisas que as pessoas não esquecem, porque ainda as afectam, não são o passado.
E Obama estava a dizer isso aos iranianos.
"Fizemos erros, derrubámos um governo eleito democraticamente, também somos culpados." Também falou de comportamentos indesculpáveis dos iranianos. Foi uma aproximação muito decente. Provavelmente será ouvida um dia.
A recente revolta nas ruas do Irão podia ter acontecido sem esse discurso de Obama? Quando ele estava a dizer isso, não se estava a dirigir às ruas?
O que está a dizer é algo que me passou pela cabeça e surpreende-me que poucas pessoas tenham pensado nisso. Acho que o que ele disse foi instrumental em fazer as pessoas agir. Ele disse as palavras que podiam reconciliar. As pessoas no Irão querem ouvir essas palavras, e estão satisfeitas com elas.
Dizer "fizemos erros" é reconhecer a dignidade do outro.
Absolutamente. E estou certo de que as pessoas no Irão gostavam que os seus líderes fossem ter com a América: "OK, este é um ponto de partida, agora vamos tentar ultrapassar o passado e construir algo juntos."
Obama ouviu críticas por não reagir de imediato à revolta iraniana nas ruas, e isso é realmente surpreendente. Porque o silêncio dele era muito inteligente. Os iranianos nas ruas sentir-se-iam divididos se Obama tivesse falado.
Tem toda a razão. O único argumento da actual liderança é dizer: vocês são os instrumentos da América.
E as pessoas não querem sentir que são isso.
A ideia de Obama foi dizer: "Deixem as pessoas fazer o que têm a fazer e mantenham-se em silêncio, é a melhor maneira de ajudar." Infelizmente, a maior parte das pessoas não entende isto. Não está realmente preocupada. Reage como costumava reagir. E quando reage assim, infelizmente, nem o presidente dos EUA se pode manter calado. Ele não podia explicar que o que estava a fazer era o que devia ser feito para ajudar estas pessoas, sem serem acusadas de ser manipuladas por ninguém.
Como lê o que aconteceu no Irão? É irreversível? É o início de uma revolução?
A noção de legitimidade é muito importante. E o que aconteceu foi que o regime iraniano perdeu a sua legitimidade. Poderá ficar no poder por algum tempo mas não creio que possa recuperar a sua moralidade. O melhor que pode ser feito é evitar interferências. Deixar as pessoas reagir ao seu ritmo e não as misturar com alguma intervenção estrangeira. Há um paralelo entre o Verão de 78 e o que aconteceu agora. Em 78, a revolução começou quando as pessoas foram para a rua e foram reprimidas. Aconteceu muito depressa, então. Não penso que agora seja assim.
Mas é evidente que a aspiração do povo iraniano é a outra coisa. Eles não pensam que o actual regime lhes possa dar liberdade, prosperidade, progresso, mas querem dignidade. Portanto se alguém vem e diz "nós fizemos erros, vocês fizeram erros", acho que as pessoas estão prontas. O meu feeling é que provavelmente, naquela parte do mundo, o povo iraniano é o que está mais perto de construir um estado moderno e secular. Penso que há uma verdadeira aspiração a isso. Por causa do que aconteceu positiva e negativamente nos últimos 30 anos. Este regime deu-lhes dignidade como nação e ao mesmo tempo revelou-se opressivo e ineficiente. As pessoas precisam da dignidade mas sem opressão e sem ineficiência. Uma nação moderna, mas não vassala do Ocidente.
O potencial é enorme. Não só esta revolta pode mudar a percepção ocidental de um grande país islâmico - as mulheres e os jovens na rua, toda esta gente a lutar por coisas que o Ocidente compreende - como poderá ser uma inspiração para outros países islâmicos, à semelhança do que foi 1979?
Pode haver no Irão um modelo de sociedade que ponha a religião no seu lugar - não estará ausente, mas não será um fardo. Se isto acontecer, se houver uma mudança profunda, poderá ter um impacto porque o mundo islâmico precisa de um modelo de país moderno, desenvolvido, democrático e respeitado como igual.
A presença americana acaba no Iraque, mas vai ser reforçada no Afeganistão, onde a hostilidade em relação a ocupantes é muito antiga e a honra é uma prioridade. O Presidente Hamid Karzai já tem um problema sério de legitimidade, é visto como o criado do Ocidente. Obama vai concentrar ali toda a luta contra a Al-Qaeda. Mas como poderá convencer o povo afegão das razões para estar lá? Isto não vai ser um problema?
Acho que pode ser. Não vejo, francamente, o que ele espera fazer no Afeganistão. Enquanto o Iraque era um lugar difícil para uma guerra de guerrilha, e foram precisos muitos erros para comprovar isso...
O Afeganistão é perfeito.
"O" lugar perfeito.
Montanhas, grutas.
Reli recentemente a primeira história de Sherlock Holmes, em que ele apresenta as personagens. Watson vai ter com Holmes, que quer alguém para partilhar o apartamento, Holmes diz-lhe: "Você é médico?" E Watson: "Sim." Holmes: "E vem do Afeganistão." Watson: "Como sabe?" Holmes: "Por ter a pele queimada do sol, e haver guerra no Afeganistão." E Watson diz: "Bem, de facto, acabo de vir da Segunda Guerra afegã." É muito divertido de ler hoje. Já contávamos as guerras no Afeganistão.
É difícil encontrar um afegão ou uma afegã que acredite que a intervenção americana seja uma boa solução. E a questão é: como pode a América persuadi-los da sua legitimidade? As pessoas podem ter ficado contentes com Obama, mas que espera ele conseguir?
Não sei. Tenho as mesmas dúvidas. Provavelmente, ele não sabe como lidar com isto. É muito delicado desde o 11 de Setembro.
Porque a Al-Qaeda está lá.
Demasiado delicado para simplesmente largar tudo. Acho que Obama tem medo de um problema muito maior, das consequências no Paquistão, se largar o Afeganistão. Mas não estou convencido que tenha uma solução.
Em relação ao Médio Oriente, estou certo de que tem uma solução.
Tem um plano para israelitas e palestinianos?
Sim, acho que tem.
Decidiu que vai ser ele a resolver isto?
Acho que sim. E terá um apoio forte de israelitas e palestinianos quando o plano for posto em cima da mesa. Acho que estamos mais perto de poder fazer a paz ali do que em muitos anos.
Mesmo com este Governo israelita?
Sim. Não penso que Netanyahu vá ser um obstáculo. Se houver uma solução nas linhas definidas por Obama...
Os israelitas vão aceitá-la?
Acho que sim, incluindo Netanyahu.
Porque no fim de tudo confiarão no Presidente americano.
Ninguém dirá aos israelitas: "Larguem as armas e confiem em nós." Ainda será um país com um Exército muito poderoso e todo o tipo de armas. Se o plano for aceite, haverá dois Estados, relações normais entre Israel e os vizinhos, e garantias internacionais para as fronteiras com os palestinianos. Com tudo isto, nenhum líder israelita razoável diria que não. Mesmo parte dos colonos. Aqueles na área de Jerusalém, poderá encontrar uma solução de troca de terra.
Se Obama não puder, ninguém pode?
Vi tantos planos levar a nada que não é fácil estar optimista. Mas acho que há uma vontade e uma visão que parece credível. O que aconteceu no Irão criou uma perturbação, abrandou o processo. Mas acho que Obama percebeu que sem solução para esse problema não há solução para nenhum. E se houver solução aí, é possível começar a construir algo.
Sem paz no Médio Oriente não haverá Governo que possa ser amigo do Ocidente entre o oceano Atlântico e a Índia. É preciso arranjar uma solução em que haja segurança e dignidade para todos. Se as pessoas virem os seus irmãos ser bombardeados e oprimidos, a desconfiança continuará. E não penso que Israel queira continuar um conflito em que não há solução pela guerra.
A sua convicção central é que já não há civilizações, há uma só civilização, e que os imigrantes podem ser os intermediários fundamentais. Vê sinais de que isto pode acontecer na Europa?
Vejo sinais. Se isso significa uma nova abordagem, não creio.
O que deveria ser feito?
Primeiro, deixar as pessoas à vontade com as duas culturas - têm de poder aprender a língua do novo país e não esquecer a sua língua e transmiti-la aos filhos. Depois, dignidade cultural. É muito humilhante sentir que a nossa cultura é completamente ignorada. Claro que nunca teremos milhões de franceses a falar árabe, enquanto milhões de árabes falam francês, mas se tivermos dezenas de milhares interessados em árabe, bengali ou persa, quem vem de fora não sentirá que a sua cultura é ignorada. Devia haver uma insistência no conhecimento e respeito de outras culturas. Por exemplo, não permitir escolas inteiramente de imigrantes. Em cada escola devia haver uma percentagem de 5 ou 10 por cento de gente vinda de outros países. A integração seria muito mais fácil. Não deve haver guetos.
Há uma frase sua no livro: "Já não há estrangeiros." Podemos relacioná-la com a ideia de que a pré-história do homem acaba quando todos formos "o outro".
Somos todos uma nação, e não podemos resolver problemas se não nos virmos assim: uma nação com muitas culturas. Quando começarmos a pensar dessa forma, entramos no que chamo o verdadeiro princípio da história.

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