Edward Said não queria discípulos

Faz hoje cinco anos que morreu Edward Said. Na sua casa junto à universidade onde ele foi professor, a viúva Mariam passa em revista a vida do palestiniano que não quis deixar discípulos, para criar novas correntes de pensamento, numa rara conversa. Por Simone Duarte, em Nova Iorque

a Em Nova Iorque, Mariam Said recosta-se na poltrona em que Edward Said costumava ler. Ao lado, a colecção de cachimbos do palestiniano considerado pelo jornal britânico The Guardian como "o mais influente intelectual de nosso tempo". Faz muito calor e a viúva Mariam lembra o Verão de 2003. Foi naquele Agosto, ao visitar amigos em Lisboa, que Said começou a sentir-se mal e teve que voltar à pressa para Nova Iorque. Morreria um mês depois, de uma leucemia rara que o perseguiu durante 12 anos. Nas vésperas do quinto aniversário da morte de Edward Said, a viúva Mariam fala de como foi viver com o intelectual que pôs no mapa do mundo ocidental a causa palestiniana, da importância da música na vida do marido, do que aprendeu com ele e de como transformou o silêncio depois da sua morte em som. Na sala do confortável apartamento próximo da Universidade de Colúmbia, onde Edward Said leccionou Inglês e Literatura Comparada por mais de três décadas, dois pianos permanecem intactos como o intelectual palestiniano os deixou. Debaixo deles, centenas de volumes empilhados, edições dos 37 livros que Said escreveu: crítica literária, música, o conflito israelo-palestiniano. Do clássico Orientalismo, o marco da obra do intelectual, uma crítica de como o Ocidente criou uma visão distorcida do Oriente, principalmente do mundo árabe e islâmico, Mariam Said guarda vários exemplares, entre eles, uma única cópia em português. Atrás do sofá ainda estão os pesos de ginástica que Said usava para fazer exercícios para fortalecer os músculos. "Não sei o que fazer com eles, então deixo-os onde Edward os escondia", diz Mariam. "Edward era cheio de energia, acordava às seis da manhã, ligava o rádio, começava a falar ao telefone. É muito difícil viver sem ele. O que mais estranhei, depois de ele ter morrido, e ainda estranho é o silêncio. Por vezes ligo o rádio na cozinha, e por alguns instantes tenho a impressão de que ele vai entrar porta adentro. Mas o silêncio, como Edward escreveu, também tem som."
A libanesa Mariam conheceu o palestiniano Edward, que nascera em Jerusalém, crescera no Egipto e estudara em Harvard e Princeton, nos Estados Unidos (Said também era norte-americano), no final dos anos 60. Em 1970, casaram-se. "Era muito difícil para todos nós, Edward estava sempre envolvido em 10 mil projectos ao mesmo tempo. Tinha pouco tempo para mim e para a nossa filha e o nosso filho. Depois de ele ter escrito o Orientalismo, a pressão e os pedidos aumentaram ainda mais. Eu tinha duas opções: ou pedia que ele deixasse o trabalho de lado e se dedicasse mais à família ou embarcava com ele nesta viagem. Eu senti que era minha obrigação manter viva a questão da Palestina, nós tínhamos uma responsabilidade de fazer o nosso lado da História ser ouvido, entendido. Era difícil. Eu não podia trabalhar, tinha de tomar conta de tudo da casa, mas encorajei-o. A situação ao nosso redor fez com quem eu sucumbisse. Às vezes temos de nos sacrificar pelo bem dos outros. Valeu a pena."
As memórias são muitas. Em 1974, o então líder da OLP (Organização de Libertação da Palestina), Yasser Arafat, veio a Nova Iorque discursar pela primeira vez na ONU em defesa da criação de um Estado palestiniano. Não se podia imaginar que um dia Arafat ganharia o Nobel da Paz - era considerado um terrorista, o governo norte-americano quase o impediu de entrar no país. Era um momento único para os palestinianos, mas a tradução do discurso do árabe para o inglês não estava boa. Vinte e quatro horas antes de Arafat entrar na Assembleia Geral, pediram a Said que lesse o texto. "A casa foi invadida por seis, sete pessoas, uma tradutora de árabe, outra de inglês. Imagine: nessa época não havia computador, portanto um passava o papel para o outro, Edward fazia mudanças à mão, a tradutora conferia, e a assistente batia à máquina. Às onze da noite, ela não aguentou mais e eu, que era a única que sabia usar uma máquina de escrever, continuei. Lembro-me que de madrugada já não havia comida no frigorífico. Mas na manhã seguinte estava pronto."
As palavras de Arafat, que entrou na ONU com um revólver no coldre e um ramo de oliveira numa mão, entraram para a História: "Eu vim com um ramo de oliveira e uma arma de combatente da liberdade. Não deixem o ramo de oliveira cair das minhas mãos. Repito: não deixem o ramo de oliveira cair das minhas mãos."
Recostada na poltrona em que Said se costumava sentar, Mariam parece falar para alguém que já não está presente. "Edward trabalhou toda a sua vida por justiça e pela resolução deste conflito. Quando viu o que os sul-africanos estavam a fazer depois do apartheid, ficou cheio de esperança. Hoje, se estivesse aqui... cinco anos depois de sua morte, a situação parece estar bem pior", lamenta Mariam. Mas não hesita muito ao pensar no livro que reflecte melhor a vida que partilhou com o marido, que sempre defendeu a autodeterminação palestiniana: Reflexions on Exile (Reflexões sobre o Exílio). "Eu começo a ler os textos, alguns que ele escreveu antes de me conhecer, outros quando já estávamos juntos, e reconheço a nossa vida. Sabe, perder um marido provoca mais sofrimento do que perder os pais, porque, no fim, esta é a sua vida e, de uma hora para outra, tudo muda. A minha maior descoberta depois de sua morte foi perceber realmente o quanto aprendi com ele, o quanto Edward me ensinou, o quanto eu fazia parte dele, o quanto ele fazia parte de mim."
E muda o tom da conversa. Sorri ao lembrar que Said a acusava de não ler tudo o que ele escrevia. Depois de as crianças crescerem, Mariam voltou a estudar, fez dois mestrados, entre eles um MBA, e começou a trabalhar no mercado financeiro. "Edward ressentia-se um pouco. Dizia que eu não prestava atenção a tudo o que ele escrevia", repete Mariam. A verdade é que, com a morte do marido, Mariam decidiu largar o emprego e dedicar-se ao que o Said havia deixado inacabado. "No sábado ou domingo, ele disse-me que precisava de escrever a introdução do livro sobre Oslo e os agradecimentos sobre o livro de humanismo. Parecia que realmente ele já sabia que não tinha muito tempo. No dia seguinte Edward entrou em coma. Parecia que sabia e que estava a dizer-me o que eu precisava de fazer."
Mariam obedeceu aos desejos de Edward. Prontas a introdução e os agradecimentos, os dois livros Humanismo and Democratic Cristicism e From Oslo to Iraq and the Road Map foram lançados. Depois reuniu todos os escritos sobre música e literatura e publicou On Late Style. A música, para o também pianista Said, era uma grande paixão. E foi a música e a admiração mútua que uniram o palestiniano Edward Said e o maestro israelita, nascido na Argentina, Daniel Barenboim. "Quando, em 1992, eles se encontraram por acaso num hotel em Londres e começaram a conversar, perceberam que as suas vidas eram paralelas, narrativas paralelas, não havia necessidade de reconciliá-las, mas de encontrar outras maneiras e conviver com elas. Eles podiam espelhar-se um no outro, ver as semelhanças e as diferenças. E o denominador comum escolhido foi a música. Eles achavam que a harmonia que existe na música poderia ser transmitida a outras pessoas."
O primeiro workshop com músicos árabes e israelitas foi em 1999, em Weimar, na Alemanha. "No início, Daniel estava mais entusiasmado do que ele. Edward achava que ia ser difícil encontrar músicos talentosos nos países árabes da mesma maneira que se encontra em Israel. Mas teve uma bela surpresa." Hoje, nove anos depois, músicos dos territórios palestinianos, Síria, Egipto, Turquia, Jordânia, Israel e Espanha tocam juntos. "O objectivo da orquestra é criar uma via de conhecimento, de coexistência entre ambos os lados, apostando sempre numa solução não-militar e na resistência pacífica ao conflito israelo-palestiniano. Esta nova geração tem de ter a cabeça aberta para pensar em alternativas, em como quebrar o muro da separação. Isso tudo vem, claro, depois da música", conclui Mariam, que hoje é vice-presidente da Fundação Barenboim-Said. "Se ainda estivesse aqui, Edward ficaria muito feliz ao ouvir a orquestra, o nível musical que eles atingiram, o que Daniel conseguiu fazer." A orquestra fez uma digressão de concertos durante todo o Verão. Os músicos já tocaram em várias cidades europeias, inclusive em Lisboa, nos Estados Unidos e até em Ramallah, na Cisjordânia ocupada. Da passagem por Lisboa, Mariam lembra-se de que no fim do concerto a sala se abria para os jardins da Gulbenkian. "Magnífico", suspira. Já muito doente, Said confessou a um amigo: "Sinto que este é o projecto mais importante da minha vida."
Quando recorda os 12 anos da doença do marido, Mariam lembra-se de um período tenso, em que Said sentia que o tempo escorria pelas mãos, o que o tornou mais neurótico quanto ao trabalho. "Edward tinha a noção de que o tempo era curto e queria fazer tudo, tornou-se ainda mais workaholic, ele queria concentrar-se em escrever."
Said só diminuía o ritmo durante os tratamentos e reduziu muito as suas entrevistas a jornalistas de TV, principalmente depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, por sentir que as perguntas se tornavam cada vez mais superficiais. "Lembro-me de que ele não queria dar uma entrevista à CNN e que Paula Zahn insistiu. Ele ficou tão frustrado, era tudo 'ou está do nosso lado ou é terrorista'. Achou que tinha desperdiçado o seu tempo, cada vez mais precioso. Edward adorava estar rodeado de pessoas, adorava a vida, adorava viajar e achava que nenhuma oportunidade podia ser perdida." Mas o que os outros não percebiam era o quão difícil era, para ele, manter a aparência de vitalidade e energia durante os anos de luta contra a leucemia.
"As pessoas impressionavam-se com a bravura com que ele enfrentava a doença. Mas Edward era muito sensível, e sentia a doença como qualquer outro, ficava deprimido muito facilmente, mas tentava esconder. Afinal, ele crescera num mundo em que os homens não podiam demonstrar fraqueza. No fundo, sentia-se um pássaro ferido."
A Fundação Barenboim-Said financia o Jardim-de-Infância Edward Said, conservatórios, escolas de Música em Belém, Nazaré e Ramallah para centenas de jovens e crianças palestinianas. "Com esta orquestra, Edward pôs em prática todas as discussões sobre identidade, sobre o outro, sobre o reconhecimento da existência do outro, sobre a identidade do Estado, o futuro do Estado, tudo o que ele deixou escrito. Repare: Edward não era uma pessoa que queria discípulos; ele queria que os seus alunos, os seus leitores pensassem por eles mesmos, se arriscassem intelectualmente, criassem correntes de pensamento. As coisas evoluem, mudam, temos de mudar, de contribuir para o bem-estar da sociedade. No fundo, Edward era um humanista. Esta orquestra é um projecto humanista e representa tudo aquilo em que Edward sempre acreditou, tudo o que escreveu."

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