Dancemos no mundo

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NIAN CANARD

Moullinex é uma centrifugadora dos últimos 30 anos de música de dança - do funk ao disco, do house à synth pop - trabalhando para dar luz ao presente. Flora é o primeiro álbum.

Um clavinet, o teclado que Stevie Wonder imortalizou em Superstitious, dá o mote. Caem palmas na batida certa. O baixo marca o lugar: a anca move-se. E hão-de aparecer sintetizadores saídos da pop electrónica e desejosa de futuro da década de 1980 e uma voz a atirar-se aos céus. Flora, o álbum de estreia de Moullinex, apresenta-se. Sunflare é a primeira canção. Música de dança, dir-se-á. "Hey, hey, hey! Twenty four hours a day, take my pain away", ouve-se na canção seguinte. A música cura. Prazer escapista? Por deus, sim. A música pula e avança. Não há outra hipótese. Moullinex, ou melhor, Luís Clara Gomes, tem perfeita noção desta inevitabilidade. "Gosto especialmente deste momento porque é possível pôr a música de dança a pensar sobre si própria e a ser influenciada pela sua própria história, pelo seu presente e pelo seu passado".

Flora são três décadas de história recontextualizadas para o seu tempo. Música descartável: existe para servir o mui nobre propósito de incitar o povo à dança. Música muito séria: enforma-a o saber histórico, a produção atenta ao detalhe, uma visão criativa que funciona como centrifugadora. No centro, alinham-se funk e house, P funk e synthpop, electro, disco-sound e a ideia de muralha de som transformada em experiência luxuriante. Moullinex é uma misturadora irrepreensível.

Apesar de o dia não ser o melhor, como sempre acontece quando ainda nos estamos a habituar à ideia de que o Verão não é eterno, a esplanada no bairro da Graça, em Lisboa, convida a que a conversa se prolongue. A conversa, porém, não pode prolongar-se muito. Luís não tem tempo a perder. O produtor, DJ e compositor tem um avião para apanhar. Nos dias seguintes, estará em Barcelona e em Londres. Depois voará até à Austrália, que conheceu em digressão enquanto DJ. Um dos fundadores da Discotexas, ideia que começou como nome de festa e é hoje editora com banda incorporada (a incrível Discotexas Band), Luís é homem viajado. Nasceu em Viseu, viveu e trabalhou em Munique, correu enquanto a Europa, a América do Sul, a Ásia e a Oceânia.

Hoje, depois de uma carreira feita de singles, 10", remisturas ou participações em compilações, Moullinex apresenta-se em longa-duração. Flora saiu há um par de semanas pela germânica Gomma, editora respeitada das electrónicas dadas à pista de dança. É obra de quem nos refere Aphex Twin ao lado de Kevin Shields, Chic ao lado de LCD Soundsystem, Air ao lado de Morricone. De quem pensa coisas interessantes sobre a música que admira e que homenageia. Fala-nos do disco, o género - outrora mal amado, hoje legitimado por nomes como Lindstrom - habitualmente referido (de forma redutora, convenhamos) quando o assunto é a música de Moullinex: "É um conforto muito grande ter standards com que trabalhar. É uma fórmula que funciona e, a partir daí, o trabalho autoral está no que constróis à volta do modelo, em mostrar como podes subvertê-lo por respeito a quem ouve".

No universo musical hiper-saturado da actualidade, este método é sinal de sabedoria. Na Motown, referência simbólica, "a criatividade estava no estúdio e nos compositores e havia liberdade para se ser mainstream mantendo a idiossincrasia e riqueza nos arranjos". Continua: "Tinhas uma luxúria e uma riqueza enorme em pequenas obras que era suposto serem descartáveis". Hoje, o talento revela-se nas escolhas: "Ter acesso num estúdio a fontes sonoras infinitas acaba por diluir a força das ideias individuais. Procuro limitar-me o máximo possível, musical e tecnicamente, porque há demasiadas hipóteses". O desafio consiste em, traçadas as fronteiras, perceber "aquilo em que não nos devemos impor limites".

Flora, álbum que soa verdadeiramente a álbum - "não queria fazer aquela coisa do "já produzi o suficiente para juntar tudo numa compilação de dança com o meu nome"" -, é um disco de prazer e escapismo. Um disco para o clube, de groove a ressoar pelo esqueleto, e para o quarto, atentando nos detalhes que os phones revelam. Por isso é que Dr. Dre e Kevin Shields, dos My Bloody Valentine, cabem na mesma história: "Respeito ao máximo o Dr. Dre e a forma como ele consegue pôr a batida no centro da acção, mas essa é apenas uma dimensão. Eu gosto de explorar outras".

Luís sorri enquanto nos fala do passado longínquo como baixista de uma banda ska-punk. Refere a descoberta da electrónica via Aphex Twin, Amon Tobin ou Squarepusher e como os primeiros concertos que viu dos Air e dos LCD Soundsystem serviram de ponte. "A música de dança nasce de uma cultura do silêncio, a cultura do dub. Mas muita gente da minha geração pega nisso vindo de outro lado, da ideia de parede de som. Interessa-me o balanço entre silêncio e ruído, entre o limpo e o sujo". Música de síntese, portanto. E global. "Em qualquer sítio aonde vá, deparo-me sempre com uma minoria super informada. Dentro dela, há uma camada de pessoas incrivelmente blasée, sobretudo nas capitais europeias, que tem muita dificuldade em assumir que está a gostar do que ouve". Esse pessoal é, naturalmente, aquele a pôr de lado. "Há uma linguagem global que nasce pelo facto de esta música ser desenhada para o corpo, para dançar. Há surpresas mas, na maior parte das vezes, o que funciona em Berlim funciona em Bogotá".

Flora não é blasé - é popular no melhor sentido do termo. É trabalho de cientista às voltas no seu laboratório sonoro e de músico procurando prazer no som. "É uma catarse poder chegar a um sítio e dance my troubles away. Agrada-me a ideia de escapismo, mas não do escapismo pelo escapismo. Gosto de saber que estou a ser levado nos braços de alguém em quem confio".

É seguro que podemos confiar em Moullinex. Deixemos que nos leve.

Ver crítica de discos págs. 30 e segs.

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