Como os estrangeiros vêem Sophia

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Sophia em 1999 adriano miranda

Um clássico. Sophia é estudada em universidades brasileiras, italianas, espanholas. Não foi esquecida. Embora haja discrepância entre países em relação aos livros publicados (em França há muito, no Brasil quase nada), o colóquio internacional que durante dois dias decorreu na Gulbenkian mostra que Sophia e a sua obra são "cousa amada" no estrangeiro. Por Isabel Coutinho

O primeiro poema que se ouve na Praça da Língua, a sala do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, onde se assiste a uma antologia de música e poesia, com curadoria de José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski, é de Sophia de Mello Breyner Andresen. "Salvo engano é logo seguida de Dorival Caymmi, Gonçalves Dias, Chico Buarque e Tom Jobim", conta a brasileira Sofia de Sousa Silva, professora de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de São Paulo que veio estes dias a Lisboa participar no Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen que ontem terminou na Fundação Gulbenkian. "Entre os leitores brasileiros da obra de Sophia, não podemos deixar de pensar na cantora Maria Bethânia, que no CD e no show Mar de Sophia combinou poemas da autora e canções (de diversos compositores), divulgando a obra de Sophia junto a um outro público", lembra a académica, que no colóquio abordou a forma como a poeta é lida por outra autora portuguesa, Adília Lopes, e como as suas obras dialogam, tema da sua tese de doutoramento.

A obra de Sophia é estudada no Brasil há muito. Jorge Fernandes da Silveira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que desde há 40 anos divulga a poesia portuguesa moderna e contemporânea no seu país, formou-se em Letras, em 1969, e tem 66 anos. "Eu e a minha geração convivemos com a poesia de Sophia, quer nas aulas ministradas nos cursos, quer em notícias na imprensa cultural carioca e paulista", explica. "As suas relações com Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto alargaram, com certeza, a sua presença entre nós. Igualmente importante foi o trabalho de Jorge de Sena [amigo da poeta que leccionou durante anos no Brasil] no ensino e na divulgação dos seus contemporâneos", diz o professor, que no colóquio referiu que na visão da autora de O Nome das Coisas, o Brasil, e por extensão o Novo Mundo, é a desejada metade atlântica a conhecer. "Numa palavra, a obra da cidadã portuguesa antifascista é vista no Brasil como um objecto raro de cultura, em que a busca do que é próprio à poesia - a sua justeza estética - está aliada ao que de mais ético há nas relações entre humanos - a exigência de justiça social."

Dedicatórias íntimas

Um dos números da revista Metamorfoses publicou um dossier sobre Sophia organizado pelo poeta e professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro Eucanaã Ferraz.

Em 2004, ano da morte de Sophia, a professora Vilma Arêas, da Universidade Estadual de Campinas, organizou para a editora Companhia das Letras a antologia poética Poemas Escolhidos. Ainda neste semestre, na mesma Companhia das Letras, sairá A Lua Foi ao Cinema e Outros Poemas, uma antologia de autores variados, brasileiros e portugueses, dedicada ao público jovem, onde há poemas de Fiama, Eugénio, Gastão, O"Neill e da homenageada do colóquio. Foi organizada por Eucanaã Ferraz, que na sua intervenção, em Lisboa, partiu do título de um dos poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen - Esteira e cesto (de O Nome das Coisas) - para pensar o quanto a sua poética pode ser aproximada do trabalho de entrançar cestos e esteiras, já que o "seu artesanato, íntimo, lírico, não se desliga da prática nem de uma certa dimensão do que é útil, constituindo-se, a um só tempo, como estética e ética".

No Brasil há teses defendidas recentemente e outras em preparação sobre diferentes aspectos da obra de Sophia (na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Universidade de São Paulo, na Universidade Federal de Minas Gerais e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Sempre foi dada "muita atenção" à poesia da Sophia nas universidades brasileiras. Faz parte dos autores que sempre se estudaram. "Ela é um clássico, entendeu? Ela é um grande poeta", diz Eucanaã Ferraz, num intervalo para o café, durante o colóquio. "O que acontece é que o mercado editorial demorou muito tempo para despertar para Sophia. Editorialmente a presença dela é fraca, comparativamente à atenção que lhe é dada na universidade."

Há anos, houve uma tentativa de publicação dos livros infantis da autora portuguesa. Queriam alterar a sintaxe da escrita para ficar mais parecida com a brasileira, defendiam que era por ser para um público infantil e que o livro seria muito usado nas escolas. "Isso é um erro. É curioso até você mostrar para os alunos que há uma variação linguística dentro de uma mesma língua - que tem variedade, tendo unidade", diz Ferraz. Sophia recusou e agora Ferraz está a tentar que se faça finalmente uma edição dos contos.

Na edição da revista Colóquio Letras dedicada a Sophia, que ontem ao final da tarde foi apresentada na Gulbenkian pelo director, Nuno Júdice, é publicado o poema Sophia de Mello Breyner Andresen, de Eucanaã Ferraz ("Foi Gastão Cruz quem, em Lisboa, /levou-me a ela, a velha senhora,/a senhora bela. // (...) Nenhum de nós morreria naquele/Outono de arames claros: a hora/como que se curvava// quando Sophia falava,/e então todas as palavras/eram números mágicos." O poeta brasileiro tem em casa três livros de Sophia de Mello Breyner Andresen dedicados a João Cabral de Melo Neto. "Uma parte do acervo da biblioteca do João Cabral foi leiloada e eu comprei esses exemplares, porque era na época em que eu estava fazendo esse dossier da Sophia e eu queria ver a conversa entre a Sophia e o Cabral. São umas dedicatórias muito amorosas, muito íntimas, com muito afecto."

Linguagem pura

Foi por causa de Fernando Pessoa e do entusiasmo do público francês à volta da sua obra que a seguir aos anos 1980 "a poesia portuguesa viveu durante 20 anos uma espécie de idade de ouro em França", explicou no colóquio Michel Chandeigne, tradutor, fundador da Livraria Portuguesa e Brasileira de Paris, e das Edições Chandeigne. "Sophia não é uma desconhecida em França", 11 poemas seus (alguns traduzidos pela própria poeta) foram publicados numa antologia portuguesa em 1971, organizada por Isabel Meyrelles. E em 1980 saiu Méditerranée, uma antologia bilingue organizada por Vieira da Silva que "esgotou rapidamente", conta Michel. Foram depois publicados os contos para crianças. A sua obra foi sempre "elogiada pela crítica", que, lembra Michel Chandeigne, "sublinhava a linguagem "pura e transparente" - que, aliás, o francês restituía bastante bem -, a sua poesia "fundamental do princípio ao fim", a inspiração cristã misturada com temáticas pagãs, a relação muito particular com a Grécia, mas também com Fernando Pessoa, e, por fim, a discreta mas intensa ligação à política e aos seus contemporâneos." Todas as obras da autora de O Rapaz de Bronze - menos uma - foram editadas em França pelas edições de La Différence, dirigidas por Joaquim Vital (1948-2010), que Chandeigne ontem também homenageou.

Em Espanha, Sophia é reconhecida "como uma das vozes mais importantes da poesia portuguesa e europeia", sendo também divulgadas outras vertentes da sua obra, como a narrativa breve ou a literatura infantil e juvenil. "De facto, Espanha tem sido um dos países onde esse reconhecimento émais importante e mais visível - traduções, prémios, presença nos estudos universitários e em congressos, livros, revistas e jornais, etc. - e a prova são, por exemplo, o Prémio Rosalía de Castro do PEN Clube de Galiza ou o XII Prémio Reina Sofía de Poesía Iberoamericana", observa Perfecto Cuadrado, professor catedrático de Filologías Galega e Portuguesa da Universitat de les Illes Balears.

O também coordenador do Centro de Estudos do Surrealismo da Fundação Cupertino de Miranda de Vila Nova de Famalicão destaca a tradução, para língua catalã, de Ponç Pons, "conhecido lusófilo e uma das vozes maiores da poesia actual em língua catalã" na obra Sophia de Mello Breyner Andresen - Antología Poética, publicada em 2003.

Giulia Lanciani, professora catedrática de Língua e Literatura Portuguesa e Brasileira na Universidade Roma Tre, traduziu Sophia para italiano. Trouxe para Lisboa um exemplar da revista Poesia, que tem 20 mil leitores e que escolheu a poeta como uma das grandes vozes da poesia contemporânea, em 2004. "Sophia é uma das grandes figuras do século XX, não só uma grande poeta, mas uma pessoa muito empenhada civicamente." Em Itália está publicada em antologias, mas existem também os seus livros. "Cada grande poeta tem uma originalidade. Muita coisa distingue Sophia. Neste colóquio falou-se, por exemplo, do sagrado. Que sentido tem o sagrado na sua obra? É um sagrado de distanciamento. Na sua poesia vê-se essa angústia de distanciamento entre homem e deuses e, nesse distanciamento, cria-se um vazio em que entra a poesia", explica a especialista em literatura medieval, moderna e contemporânea.

A palavra exacta

Para o também tradutor de Sophia, o norte-americano Alexis Levitin, ela era a poeta da "nitidez" e há dificuldade em traduzi-la com transparência, é necessário uma grande procura da palavra exacta. Nos últimos 35 anos, poemas de Sophia apareceram nos Estados Unidos regularmente em jornais e revistas literárias, uns universitários, mas todos de divulgação limitada. "Há 25 anos foi publicado nos EUA um livro com os seus poemas, mas o editor morreu e a casa editora já não existe. Mais recentemente, em 1997, Richard Zenith publicou uma selecção de poesia de Sophia, Log Book: Selected Poems, na Carcanet britânica. O problema é que, apesar de convénios com os Estados Unidos, quase nada acontece. O livro não aparece nas livrarias nos EUA, nunca vi. Sophia tem dois livros publicados em inglês, mas não estão disponíveis", conta o tradutor.

Nos últimos três anos, Alexis Levitin tentou convencer editoras, boas, a publicarem Sophia, mas "não é fácil": "De momento, economicamente todas as editoras estão cheias de medo."

E, já que aqui se lembra Inglaterra, vale a pena contar o que Helder Macedo, professor catedrático emérito do King"s College de Londres, disse anteontem no colóquio. Helder Macedo encontrou pela primeira vez Sophia em casa de Jorge de Sena por insistência de Alberto de Lacerda. Sena tinha escrito sobre Sophia um poema em que se interrogava, como se ela fosse uma entidade metafísica: "Versos e filhos como os dás ao mundo?" E Helder, na sua irreverência de 22 anos, teria respondido: "Fazendo-os."Poucos meses antes, numa tarde em Londres, Helder assistira "a um bizarro duelo de amores platónicos pela imaterial Sophia entre o Alberto de Lacerda e o Ruy Cinatti [poetas]". Este último teria dito, como "suprema prova de amor por Sophia", que "escrevia longas cartas à Sophia para se manter em contacto consigo próprio". E Alberto teria comentado depois, a sós, com Helder, "que não era nada a Sophia que Cinatti escrevia essas cartas, era ao próprio Cinatti". Se assim era, rematou com humor Helder Macedo no colóquio em Lisboa, "teria sido um caso extremo de transforma-se o amador na cousa amada".

Dois dias de colóquio, e a conclusão é: "cousa amada" é realmente Sophia (1919-2004) e a sua obra, por esse mundo fora.

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