Chamava-se John Souza e era de Fall River

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John Souza, em 1950, no Ponta Delgada Herb Scharfman/CORBIS

Na selecção dos EUA que surpreendeu a Inglaterra no Mundial de 1950 jogavam dois luso-descendentes. A vitória norte-americana é um dos escândalos da história do torneio

Não havia jornalistas norte-americanos em Belo Horizonte a assistir ao EUA-Inglaterra. Tanto foi assim que os jornais, quando receberam os despachos das agências noticiosas com o resultado de 1-0 a favor dos norte-americanos, pensaram que estaria alguma coisa errada e mudaram para 1-10 a favor dos britânicos. Mas não era gralha. Os amadores norte-americanos que ninguém conhecia tinham mesmo derrotado os profissionais britânicos. Quase todos eram imigrantes de segunda geração. Dois deles tinham origens portuguesas: John "Clarkie" Souza-Benevides e Edward "Wolfgang" Souza-Neto.

Hoje, 60 anos depois, EUA e Inglaterra voltam a defrontar-se num campeonato do Mundo, a contar para o Grupo C, em Rustenburg. Ambas as selecções são profissionais, mas um triunfo norte-americano em 2010 parece quase tão improvável como era em 1950, em que se defrontavam o país que criara o futebol e a sua antiga colónia, em que eram as comunidades de imigrantes que mantinham o desporto à tona. "Foram especialmente importantes depois da II Guerra Mundial. Foram estas comunidades que mantiveram o futebol vivo nos EUA. E a comunidade portuguesa em Massachusetts e Rhode Island foi especialmente importante", explica ao P2 o historiador britânico Colin Jose, especialista em futebol da América do Norte.

Os dois luso-descendentes da selecção norte-americana de 1950 eram, precisamente, do estado do Massachusetts, mais precisamente, de Fall River, uma cidade que actualmente congrega a maior comunidade portuguesa dos EUA. Partilhavam as origens e o apelido, mas não eram da mesma família. John, o mais velho, nascera a 12 de Julho de 1920, filho de dois imigrantes portugueses, Francisco e Maria. Ed nasceu um ano depois, a 22 de Setembro de 1921, também com passado português, provavelmente, com raízes nos Açores.

Na altura em que foram escolhidos para representar a selecção norte-americana, ambos estavam no Ponta Delgada Soccer Club, uma equipa fundada por portugueses que conquistou o campeonato amador norte-americano em 1938 e que chegou a ser finalista da US Cup, o equivalente ao campeonato nacional, em 1946. Durante este período, o Ponta Delgada foi uma das melhores equipas do país, chegando, inclusive, a ser escolhido na sua totalidade para representar os EUA em 1947 no campeonato da América do Norte contra o México e Cuba.

A carreira e a vida de Ed estão pouco documentadas e dele apenas se sabe que era camionista de profissão e que jogou toda a sua vida em clubes de Fall River, tendo morrido em 1979. Aos 90 anos, John Souza ainda está vivo - é um dos quatro sobreviventes da equipa de 1950 e vive com a filha Marsha em Dover, na Pensilvânia; os outros são Frank Borghi, Harry Keough e Walter Bahr -, mas recusa-se a falar do seu passado. Ainda assim, é possível reconstituir a sua história com alguns pormenores.

Abandonou a escola aos 17 anos e o único trabalho que arranjou foi na indústria têxtil, com um salário de nove dólares por semana, ao mesmo tempo que jogava futebol, casando-se em 1940 com Anita Medeiros, uma costureira. Em 1944, entrou para a Marinha e serviu num barco que entregava mantimentos às tropas norte-americanas estacionadas nas ilhas do Pacífico Sul. De regresso aos EUA, Souza foi trabalhar para a Firestone e começou a jogar no Ponta Delgada, onde passou quase toda a sua carreira.

Heróis anónimos

Ninguém contava que os norte-americanos fizessem alguma coisa no Mundial de 1950. E no próprio país ninguém sabia quem eles eram. Nem sequer apareciam cotados no ranking das apostas para um eventual triunfo no torneio. Formada por um misto de jogadores da Costa Leste (principalmente de Boston, Filadélfia e Nova Iorque) e de Saint Louis recrutados à pressa, a selecção dos EUA tinha pela frente uma missão impossível, duas fortes selecções europeias (Espanha e Inglaterra) e uma sul-americana (Chile).

A surpresa esteve perto de acontecer logo na estreia frente aos espanhóis, quando John Souza marcou para os norte-americanos. O resultado manteve-se 1-0 quase até ao fim, mas os espanhóis deram a volta e venceram por 3-1. Depois veio a Inglaterra e aconteceu o resultado que ainda hoje é considerado um dos grandes escândalos da história do torneio. Os ingleses até fizeram descansar algumas das suas principais estrelas para o encontro e nem o treinador Bill Jeffery acreditava na surpresa. Mas o golo do haitiano Joe Gaetjens (ver caixa) deu aos EUA a sua mais importante vitória até então, perante o desespero britânico.

"Tivemos sorte e ganhámos o jogo. A melhor equipa nem sempre ganha. Não sei como explicar melhor que isto", afirmou recentemente Walter Bahr, que era o capitão de equipa. Para o triunfo norte-americano foi particularmente importante a capacidade de John Souza, um avançado rápido e tecnicista, em segurar a bola. "O seu controlo de bola e a capacidade de finta eram as suas maiores forças. As suas deambulações pela esquerda até ao centro do campo, já na parte final do jogo, foram importantes para dar algum descanso aos seus colegas de equipa", observa Jack Huckel, historiador do National Soccer Hall of Fame, instituição que preserva os momentos e as figuras mais marcantes do futebol nos EUA - segundo Huckel, Ed Souza era um jogador forte, jogava numa posição mais recuada, mas "não era excepcional"; John, por seu lado, foi eleito para o "onze" ideal do torneio por alguns jornais brasileiros e argentinos.

Ao triunfo inesperado, seguiu-se uma derrota normal frente ao Chile (5-2), e os amadores americanos regressaram a casa sem nenhuma pompa. "Foram ignorados. Poucos dias depois já ninguém se lembrava deles. Não havia jornalistas americanos no Mundial. Havia um, mas como estava de férias não escreveu uma linha. Regressaram a casa em aviões separados, foram recebidos pelas famílias, que nem sequer sabiam o que tinha acontecido", conta Colin Jose.

Só muito mais tarde, já depois do meteorito New York Cosmos (onde jogaram, entre outros, Pelé e Beckenbauer) e da lenta aceitação do futebol no país (mas ainda longe da popularidade de outras modalidades como o basebol), é que a história dos heróis de 1950 foi recuperada, inclusive com um filme The Game of our Lives, segundo Colin Jose, "pouco fiel à realidade". O próprio Walter Bahr confessa que nunca deu tantas entrevistas como nos últimos dias: "Os anos passam e vou ficando cada vez mais famoso."

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