Buenos Aires Faz-se teatro todos os dias

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Carlos Gardel é imagem que não escapa a Buenos Aires nem Buenos Aires lhe quer escapar. Aqui, no bairro Abasto Claudio Cruz/Corbis

Mais de 200 espaços, dois a três espectáculos diferentes em cada semana. Em Buenos Aires, a cena teatral é única nisto: qualquer pátio, terraço ou sala de estar de uma casa particular servem a arte. A dose diária de dramaturgia dos porteños pode ser tomada em cada virar de esquina

Buenos Aires é uma das capitais mundiais do teatro. Faz-se a pé boa parte da Corrientes, a Broadway porteña, e, entre um passo e outro, temos cafés, livrarias... e salas de teatro com cartazes e letreiros à antiga. O teatro está também nas esquinas: em armazéns reconvertidos, fábricas reocupadas e salas de estar de casas particulares. E floresce no off e no off do off, nas ruas de Abasto, Palermo, San Telmo, entre mercearias, prédios particulares, casas de ferragens, como se fosse mais uma actividade de porta aberta ao público. São mais de 200 espaços teatrais, em muitos casos apresentando dois ou três espectáculos diferentes a cada semana.

Buenos Aires tem salas com fins lucrativos, o chamado "teatro comercial", e espaços públicos, agrupados no Complejo Teatral de Buenos Aires, também eles rendidos ao teatro periférico. Ao caminhar na Corrientes, vê-se anunciada a estreia, num palco convencional desta avenida, de um dos últimos espectáculos do dramaturgo e encenador Claudio Tolcachir. E no Teatro San Martin veríamos como o cenário da versão de A Gaivota montada pelo actor e encenador Daniel Veronese reconstitui as casas e espaços informais do teatro off.

Sentámo-nos à conversa com Malala González, da revista online Funámbulos, num cafezinho perto da Faculdade de Filosofia e Letras, no centro da cidade, a poucos metros da Plaza de Mayo, onde almoçavam funcionários públicos, trabalhadores e estudantes. Malala fala com as mãos, e por isso quase não comeu. Com uma tese de doutoramento em curso sobre intervenções no espaço público, foi descrevendo os inúmeros casos de "teatristas" que a partir do fim dos anos 90 "começaram a fazer teatro nas próprias casas, preparando uma sala ou um pátio para ensaiar, dar cursos, fazer espectáculos".

Nestes últimos dez anos proliferaram os espaços com estéticas, linguagens, ideologia, objectivos e convívios diferentes, e muitos artistas puderam ver autorizadas e apoiadas as suas visões artísticas. Um dos pioneiros desta ocupação foi o Sportivo Teatral, que em 1986 Ricardo Bartís - encenador, mestre de actores e directores, considerado um dos pais da actual dramaturgia argentina -transformou de depósito de ambulâncias em teatro e centro de formação. É um espaço amplo com um jardim no fundo, povoado de glicínias e jasmins. "Foi uma estratégia de sobrevivência de um teatro que entendeu que devia ocupar territórios e discutir a partir daí. Não se queria fazer o teatro que se podia ver nos espaços tradicionais. A quantidade de público, o aproveitamento do espaço real, o tipo de formato foram determinantes na estética dos espectáculos. Pode-se dizer que há 30 anos os contributos mais importantes para a linguagem teatral vêm do teatro alternativo", diz Bartís. Uma "estética dessartificializada", chama-lhe César Mathus, administrador do Teatro Empire e membro da comissão directiva da Associação Argentina do Teatro Independente (Artei): "O espaço tornou-se parte da linguagem. Fábricas, armazéns, casas, garagens, o recinto que fosse útil para gerar um convívio, foram-se transformando, com o trabalho de todos e o apoio económico estatal, em salas de teatro independente." César recebe o P2 num edifício dos anos 30, a meia quadra (ou quarteirão) do Palácio do Congresso. É a sede de La Fraternidad, o sindicato dos maquinistas ferroviários, cujo projecto, de Jorge Sabaté, incluiu um teatro.

Os próprios espaços encerram referências às suas localizações inusitadas: La Carbonera, La Carpinteria e La Manufactura Papelera foram realmente antigos negócios de carvoaria, carpintaria e fábrica de papel, respectivamente. Os lugares trazem memórias fictícias. Na esquina de La Carbonera, uma casa do século XIX, é fácil imaginar os carregamentos de carvão, e no salão novecentista com colunas de aço do La Manufactura quase se vêem máquinas e operários. Fuga Cabrera, Defensores de Bravard, Teatro de Abasto têm o apelido das ruas e do bairro onde estão. "As salas de teatro territorializam lugares da cidade invisibilizados pela gestão pública", remata Mathus.

É um movimento espontâneo. "Os espaços alternativos surgem por vontade das pessoas em fazer teatro. Vão ocupando os espaços possíveis: o fundo da casa, um local abandonado, uma fábrica. Não há plano nem organização, são grupos que espontaneamente criam os seus lugares com o que podem", vai contando Teresita Galimany, actriz e pesquisadora do Centro Latinoamericano de Creación e Investigación Teatral (Celcit).

Mais tarde, no Instituto Nacional de Teatro argentino, enquanto empilha exemplares de antologias da dramaturgia ibero-americana e números antigos da revista do instituto, Carlos Pacheco, responsável pelas edições e um dos seis críticos de teatro do jornalLa Nación, confirma: "As salas independentes foram crescendo, mas ainda não chegam para conter a grande actividade de elencos que procuram espaço para os seus projectos. Muitos optam por criar novos espaços, pequenas áreas, para poucos espectadores, onde desenvolvem as suas actividades profissionais (docente e artística) e que sirva a outros artistas também."

Da ditadura a 2012

A criação de espaços alternativos é algo que vem desde o fim da ditadura, em 1982. Mas cresceu depois da criação do Instituto Nacional de Teatro, em 1997, e do programa municipal Proteatro, em 1999, com a atribuição de apoio a salas independentes. O movimento generalizou-se muito depois do Cacerolazo, o protesto em massa dos cidadãos argentinos - batendo tachos e caçarolas na rua - contra as políticas neoliberais que conduziram o país à recessão em 2001. Actores, encenadores e dramaturgos começaram a fazer espectáculos em fábricas falidas, agora geridas por cooperativas de trabalhadores, espaços amplos e sugestivos como a metalúrgica IMPA ou a panificadora Grissinopoli, em teatros de bairro ou em anexos e salas das próprias casas, onde para chegar se tinha de passar pela porta dos vizinhos sem fazer muito barulho, e para entrar era preciso ter cuidado com a terrina da avó.

A partir de 2004, porém, esta prática esteve em risco. A 30 de Dezembro, durante um concerto na discoteca República de Cromañon, com capacidade para três mil jovens, deflagrou um incêndio que causou 200 mortos. Uma das saídas de emergência estava fechada, e a sala não estava devidamente habilitada para abrir ao público. O acidente sem precedentes obrigou ao aumento da fiscalização. Afinal, o próprio Estado apoiava salas que estavam fora da lei. De acordo com César Mathus, "os inspectores não deixavam respirar: inspecção era sinónimo de encerramento".

Algumas das exigências eram verdadeiros luxos para os pequenos espaços, como as máquinas de preservativos no W.C. Outras, a disposição da plateia, por exemplo, interferiam na natureza do espaço. Enfim, a própria dimensão das salas tornava-os ilegais à partida. As exigências legais tinham sido pensadas para salas grandes. "É necessário que um convívio com capacidade para dez a 20 pessoas tenha um sinal luminoso indicando a saída?", questiona César Mathus.

A ameaça de fecho levou os grupos a organizarem-se, promovendo o debate e pressionando para a aprovação de leis e regulamentos que não exterminassem o meio teatral. No final de 2010 começaram as primeiras habilitações para dezenas de espaços alternativos, desde fábricas que ainda mantêm a produção às casas dos próprios artistas. Desde então, 50 destes espaços foram finalmente licenciados. Hoje, a cidade tem quase 200 teatros com produção regular. E uma geração mais recente de espaços ainda menores, praticamente clandestinos, conseguiu este ano o reconhecimento legal que lhes permite continuar a trabalhar, enquanto os pedidos de habilitação aguardam resposta.

Mapa imaginário

A maior parte dos espaços alternativos encontra-se no bairro conhecido como "El Abasto", mas, diz Carlos Pacheco, "em qualquer bairro, num pequeno espaço, podem-se encontrar propostas que comovem e têm sempre público". Um dos temas recorrentes nestes espaços é o da família disfuncional, que explodiu com o grande sucesso de La Omisión de La Familia Coleman, estreada na sala Timbre 4 em 2005 e que tem corrido festivais e salas de todo o mundo (apresentou-se no CCB, em Lisboa, em 2009). "Timbre 4" quer dizer "toque à campainha 4" - o número da última casa do corredor de uma típica "casa chorizo" de Buenos Aires, parecida à primeira vista com a correnteza de casas de uma ilha do Porto. Timbre 4 começou por ser apenas a casa do encenador Claudio Tolcachir, onde ele dava aulas de interpretação, para logo se tornar num teatro. Para se chegar ao local é preciso passar primeiro em frente à casa dos vizinhos, e depois por uma das divisões da casa, como se o espectador estivesse realmente a entrar no lar da família Coleman. A cenografia era constituída pelo mobiliário da própria casa. Quando estão em digressão, limitam-se a pedir um sofá velho, uma cómoda antiga, e já está. Em 2010, Claudio Tolcachir adquiriu um espaço no outro lado do mesmo quarteirão, uma antiga fábrica de cadeiras, contígua com o Timbre 4 pelas traseiras.

No bairro de Palermo, é imperdível a ida ao Sportivo Teatral, o local de trabalho de Ricardo Bartís, talvez o mestre mais admirado pelos artistas jovens. Ali, assistem-se aos espectáculos, mas também a uma das aulas abertas que se realizam todas as segundas-feiras e têm entrada livre. O Sportivo é uma das incubadoras de novos criadores em Buenos Aires.

Ainda nesse bairro, Fuga Cabrera, na Rua Cabrera, é outro espaço caseiro, na prática uma sala atrás da morada de Daniel Veronese, actor-encenador-dramaturgo, que foi usada para ensaiar durante todos estes anos e que desde 2008 serve também como teatro. Veronese apresenta regularmente os seus trabalhos um pouco por toda a cidade, mas em particular no Camarín de Las Musas, no Abasto, um dos lugares mais emblemáticos deste movimento. Fundado no fim de 2001, no pico da desvalorização do peso argentino e do fecho das contas bancárias, o movimento começou com aulas de teatro e dança e estreou a primeira peça passados três meses. E assim aprenderam que "as crises de economia e de ideais tonificam e dão sentido a lugares como El Camarín". É um exemplo típico destes espaços que são teatros à noite e escolas de dia, além de restaurante, café e bar. El Camarín tem um restaurante charmoso, com degustações e provas de vinhos, de chão ladrilhado e ementa escrita a giz nos quadros negros por trás do balcão. Chegando à casa, não se adivinha o luminoso terraço nas traseiras, nem o par de salas de aulas e ensaios, outras duas de espectáculos e uma quinta para conferências e projecções. Em cartaz estão oito peças, uma à quinta, quatro à sexta e sábado, três no domingo.

Já no Beckett Teatro, com apenas uma sala para pouco menos de cem pessoas, está em cena Todo, de Rafael Spregelburd, resultado de uma encomenda da companhia berlinense Schaubühne. A sala de espectáculos é a típica caixa preta, em forma de quadrado. Há uma segunda sala na cave, para ensaios, aulas ou projectos especiais. Na esquina dessa rua, dois restaurante-bar. A meia dúzia de passos, outro teatro, mais um bar, de novo um teatro, e por aí fora. O Beckett Teatro foi criado pelo actor e encenador Miguel Guerberof para apresentar as suas obras e abriu as portas em meados de 2005, precisamente com uma peça do autor irlandês, Acto sem Palavras. A sala combina a apresentação de artistas reputados com o apoio à produção de primeiras obras.

No La Carpinteria criadores conhecidos alternam com artistas novos. Em cartaz tem normalmente cinco espectáculos, entre os quais Mi Vida Después, de Lola Arias, estreado em 2009, um dos maiores sucessos de público e crítica do teatro offporteño. Construído a partir das histórias de vida de cada um dos actores, Mi Vida Después faz parte de uma corrente de espectáculos que cruzam dados biográficos e criação teatral, o chamado "biodrama". Neste caso, trata-se de uma maneira de falar do país, escapando à alegoria, através de testemunhos pessoais, que resultam numa grande teatralidade. O ponto de partida são as histórias de um grupo de actores nascidos entre os anos 70 e 80, cuja memória da ditadura é normalmente indirecta, e cuja condição retrata a relação ambígua das gerações mais novas com esse passado.

Saindo do Bairro de Abasto e descendo a Avenida Corrientes até chegar ao grande obelisco comemorativo da fundação da cidade, está o Teatro del Pueblo. É uma entrada discreta, que dá para uma escada em caracol a meio da qual se encontra a bilheteira. Os bilhetes estão enroladinhos, espetados numa placa de madeira que representa a plateia, com um pequeno orifício para cada cadeira. Este é o sistema de reservas tradicional de Buenos Aires. Descendo mais uns degraus chegamos à histórica sala, com pouco mais de cem lugares. Em cartaz estão sete espectáculos, entre eles Ala de Criados, uma alegoria sobre a Argentina que vai na terceira temporada com mais de 300 actuações e 30 mil espectadores. A peça foi escrita e dirigida por Mauricio Kartun, um dos mestres da actual geração de dramaturgos. O espectáculo é uma reflexão sobre a nação e a História argentinas, a partir do relato dos distúrbios sociais na Buenos Aires de 1919. Em Buenos Aires, as dramaturgias, sejam elas naturalistas, documentais ou alegóricas, cumprem sempre a função de interpelar o espectador. O teatro independente que se faz hoje é herdeiro da primeira tentativa de se fazer teatro modernista - precisamente no Teatro del Pueblo. E este teve o seuapogeu entre 1937 e 1943, com o apelo à escrita de peças originais argentinas. Depois de encerrado durante algum tempo, o Teatro del Pueblo reabriu, em 1996, pelas mãos de dramaturgos como Roberto Tito Cossa e Roberto Perinelli, outrora ligados ao movimento que, no final dos anos 70, em plena ditadura, se organizou enquanto Teatro Abierto.

Para os artistas, o teatro é mais um processo de aprendizagem do que uma carreira profissional. Sobretudo, serve um propósito cultural. "Uma companhia independente não produz mercadorias, porque não é uma fábrica, mas produz algo muito importante: sentido", afirmava em 2007 o dramaturgo Spregelburd ao site brasileiro Digestivo Cultural. Os teatros periféricos ocupam o lugar da reflexão, da surpresa e da auto-expressão que os outros teatros não têm - respondendo à necessidade de compreender o mundo e de reconhecer outras maneiras de o ver. E, em tempo de crise, o teatro prospera.

* Todos os espectáculos referidos no texto estavam em cartaz, quando da viagem do crítico a Buenos Aires, no ano passado

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