Aqui não há Descobrimentos, há conquista

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O Castelo do Mar de Safim está a ser consolidado, mas a erosão torna a sua conservação muito difícil José António bettencourt

Baluartes e torres, muralhas e palácios. Sempre com o mar à vista. São assim as cidades que os portugueses construíram no Norte de África nos séculos XV e XVI. Há três anos, um grupo do Centro de História de Além-Mar decidiu juntar-se a arquitectos da Universidade do Minho e a uma direcção cultural marroquina e começou a escavar em Azamor. Safim e Mazagão vieram depois. É a primeira vez que há uma equipa de arqueólogos portuguesa em Marrocos. Por Lucinda Canelas, em Azamor

Saímos da Avenida Mohammed V, a principal de Azamor, e entramos por uma rua estreita de terra que leva a um pequeno souk com muitas bancas e mantas no chão cobertas de pimentos, beringelas, tomate, batata-doce, laranjas e romãs. Cheira a especiarias e a pão, o mesmo pão que passa à nossa frente nas bicicletas dos vendedores ambulantes e que, mais tarde, havemos de ver no forno comunitário junto à capitania. André Teixeira e José António Bettencourt, dois arqueólogos portugueses que escavam nesta cidade do Norte de Marrocos, caminham apressadamente para chegar à fortaleza portuguesa que D. Manuel I mandou construir no início do século XVI. Estamos no fim de Outubro e há muito trabalho a fazer. Faltam apenas cinco dias para terminar a campanha desde ano, que começou há sete semanas.

O edifício dos capitães e boa parte das muralhas originais são ainda muito visíveis, embora a actual medina tenha engolido os vestígios das antigas casas portuguesas. "Se olharmos apenas para estas ruas da medina, podíamos estar em qualquer outra pequena cidade do norte. É preciso ir ao castelo para sentir que isto já foi português, mas num passado muito longínquo", diz André Teixeira, um dos responsáveis pela missão arqueológica que o Centro de História de Além-Mar (CHAM) e a Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, em colaboração com a Direcção do Património Cultural marroquina, mantêm há três anos em Azamor, Safim e El Jadida (a antiga Mazagão). O programa de cooperação científica entre estas três entidades prolonga-se até 2013 e inclui também colóquios internacionais e edições sobre o património português em Marrocos.

"A primitiva Azamor seria do século XI ou XII, mas não há certezas", continua o arqueólogo. "É por isso que os trabalhos arqueológicos são aqui tão importantes. As fontes históricas não chegam para determinar a origem da cidade, é preciso ir para o terreno."

As sondagens deste ano junto ao que julgam ser a primitiva muralha de Azamor, muito anterior aos portugueses, permitiram estudar os vários níveis estatigráficos do terreno, que correspondem a diversos períodos e ocupações. "É esta leitura das diversas camadas e dos materiais que delas retiramos que nos ajudam a complementar a informação a que já temos acesso através das fontes históricas", explica José António Bettencourt, 32 anos. "Aqui a quantidade de materiais é enorme e dá-nos indicação de que houve uma ocupação muito intensa ao longo dos séculos."

Parte dos cacos que saíram destas sondagens estão agora numa pequena casa junto à escavação. No pátio, entre gatos, dezenas de vasos com cactos e amores-perfeitos, Tiago Silva e Luís Gil, dois dos arqueólogos portugueses (no final de Outubro a equipa conta com oito pessoas), e os trabalhadores marroquinos lavam cerâmicas, porque cada caco ajuda a contar a história da velha Azamor. Nenhum dos marroquinos fala outra coisa que não árabe, língua em que nenhum dos portugueses consegue dizer mais de três ou quatro palavras, mas ainda assim discute-se futebol. Yusuf, o mais religioso dos dez trabalhadores que este ano se juntaram à missão, exibe um dos cacos verdes vidrados como se fosse uma jóia e finge pô-lo ao pescoço.

Para André Teixeira, ter uma equipa a estudar o período medieval no Norte de Marrocos - o Sul dá mais importância à pré-história e ao romano - é fundamental para compreender o território a que os portugueses chegaram, e em que se fixaram, nos séculos XV e XVI.

Esta é a primeira equipa portuguesa a escavar em Marrocos. À excepção de uma campanha americana nos anos 70, em Alcácer Ceguer, um importante porto no período almóada (séculos XI e XII) - o mesmo que se encontra aqui em Azamor, junto àquela que os arqueólogos acreditam ser a primeira muralha da cidade -, é também a única a ocupar-se do que os portugueses construíram. Não há, no entanto, qualquer estratégia das autoridades marroquinas para vedar o acesso ao estudo deste património, garante Teixeira. "A presença portuguesa data do século XV, e o período moderno [século XVI em diante] é, por regra, ainda pouco estudado em termos arqueológicos, dentro e fora de Marrocos", explica. "As autoridades marroquinas não têm qualquer intenção de limitar o estudo do património que os portugueses deixaram. O facto de termos sido aqui uma potência ocupante não faz com que haja aversão aos portugueses."

Azzeddine Karra, arqueólogo e director de Cultura da região de Doukkala-Abda, a que Azamor, Safim e El Jadida pertencem, confirma: "Há, pelo contrário, uma série de mitos muito positivos ligados à presença portuguesa."

Ikea do século XVI

Se em Portugal qualquer ponte antiga é atribuída aos romanos, em Marrocos, qualquer construção em pedra que pareça centenária é, para a população em geral, obra dos portugueses. Outro dos mitos à volta da conquista é o de que os portugueses eram capazes de construir fortalezas da noite para o dia. "Mas este mito tem alguma razão de ser", diz o arqueólogo português de 33 anos que dirige e missão. "O que acontecia é que, nas embarcações, a armada trazia fortalezas de madeira, pré-fabricadas, em peças. Uma espécie de Ikea do século XVI. Os barcos chegavam, lutavam, conquistavam e, de imediato, os portugueses punham de pé a sua fortaleza de madeira. Só depois começavam a construir uma de pedra, por dentro da pré-fabricada. Há muitas fontes históricas que corroboram esta tese. Mas aqui em Azamor isso não aconteceu." Nem em Safim ou El Jadida. Mas a fortaleza pré-fabricada terá sido usada no sítio de Aguz (português entre 1508 e 1541), nas margens do rio Tensift, a sul de Safim.

Construir nas margens dos rios ou, melhor ainda, na costa, era prática dos portugueses, para quem a fortaleza era um dispositivo estratégico para a manutenção de territórios. Lembra André Teixeira que a política da coroa portuguesa para o Norte de África era totalmente diferente da sua política para as Índias ou o Brasil. Se na Índia Portugal estava sobretudo interessado no comércio e a sua abordagem passava mais pela miscigenação do que pelo confronto, na África de D. Manuel I (1469-1521) e, depois, de D. João III (1521-1557), a estratégia passava pela conquista e conservação de novos territórios, um projecto de expansão ultramarina que vinha já do reinado de D. João I, que vai de 1385 a 1433.

"D. Manuel tem como principal projecto a conquista, porque o Norte do continente africano é visto como o território de expansão natural do país", diz o arqueólogo, enquanto entra na medina, vindo da Porta do Mar da fortaleza portuguesa e atravessando o que foi o bairro judeu de Azamor, de que ainda resiste uma sinagoga que, já sem culto, continua a ser local de peregrinação obrigatória no roteiro judaico de Marrocos. "A ideia de conquista persiste em D. Manuel, porque o seu mundo preferencial é ainda o Mediterrâneo. No seu reinado, a Índia é vista como uma aventura - e uma aventura arriscada -, não como desígnio nacional." D. Manuel I, segundo o arqueólogo, é ainda "um homem do mundo medieval", que vê a proximidade dos povos africanos como ameaça.

"A historiografia portuguesa não tem dado ao Norte de África a atenção que merece, salvo raras e boas excepções, porque nele não há o apelo do exotismo, nem da mestiçagem que encontramos no Oriente", acrescenta o arqueólogo, que também estudou as fortalezas portuguesas do século XVI na Índia. "Aqui não há Descobrimentos, há conquista. E parece que isso deixa algumas pessoas desconfortáveis", continua, explicando que a guerra com o Norte de África tem também uma importante função social no reino - permite à aristocracia dar provas da sua utilidade na corte. "África é um espaço de afirmação dos nobres, da elite. D. Jaime, duque de Bragança, que conquista Azamor para D. Manuel em 1513, é um desses nobres."

Começando a subir a partir da nova praça no bairro judeu, onde a equipa portuguesa fez trabalhos arqueológicos em 2008 sem que encontrasse quaisquer vestígios da feitoria que ali terá funcionado, entramos na rua direita (quase todas as cidades portuguesas têm uma, por que não Azamor?). À porta do hamman os cheiros misturam-se outra vez, como no souk. Seguimos um homem muito alto que caminha na direcção do forno comunitário e que leva duas braçadas de menta e coentros. Lá dentro, flores de plástico e fotografias do actual Rei, Mohammed VI, sem o look ocidental que apresenta na capa do número especial da revista francófona Telquel, garantem a decoração. Da porta vê-se a mesquita que já foi igreja e a entrada da capitania.

Até chegarmos ali nada (tirando a muralha) nos tinha levado a pensar nos portugueses, embora o levantamento arquitectónico feito pela Universidade do Minho mostre que há um urbanismo mais regular do que o islâmico no desenho desta cidade ocupada entre 1513 e 1541.

Passados 500 anos, a casa dos capitães de D. Manuel e de D. João III ainda mantém algumas paredes e torres e a sua imponência faz dele o "mais bem conservado edifício palatino português do século XVI em Marrocos". A convivência entre as duas culturas é ali bem evidente nos diversos elementos arquitectónicos, desde a janela manuelina de onde o capitão faria as suas comunicações ao pequeno mihrab que indicia um reaproveitamento daquelas estruturas depois da saída dos portugueses.

Apesar de importante, a janela do capitão - espaço de representação do poder, onde seriam visíveis diversos elementos do discurso manuelino - não é o que faz da fortaleza de Azamor uma das jóias arquitectónicas e militares do reinado de D. Manuel. Projectada pelos irmãos Diogo e Francisco de Arruda (o primeiro envolvido no traçado do Convento de Cristo, em Tomar, o segundo autor da Torre de Belém), tem no Baluarte do Raio, que a equipa do CHAM, unidade de investigação da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores, esteve a escavar este ano, o seu expoente máximo.

Obra-prima da arquitectura militar manuelina, o Baluarte do Raio tem ainda traços medievais, mas está já preparado para um dispositivo de guerra muito intenso (tem dois níveis de canhoeiras e teria cerca de 70 peças de artilharia). André Teixeira diz que, dada a sua importância, o baluarte merecia um plano de conservação próprio: "Até hoje ninguém sabe como funcionava exactamente. Quando chegámos, estava cheio de entulho." Foram precisos dias e dias para retirar a pedra e a terra que ocupava todo o interior. Só depois José António Bettencourt pôde fazer um modelo 3D em computador que deverá integrar o estudo monográfico sobre Azamor que a equipa pretende apresentar no próximo ano.

Enquanto decorrem os trabalhos de campo, já na fase final, em casa o resto da equipa dedica-se ao registo dos materiais (cerâmicas, ossos e metais). É uma tarefa meticulosa, mas que traz muita informação, explica Inês Coelho, que com Teresa Costa desenha boa parte das peças, enquanto Patrícia Carvalho e Rui Henriques se encarregam das fotografias. Estes materiais são depois armazenados no pequeno depósito que a equipa tem em El Jadida, cuja parte muralhada, construída pelos portugueses a partir de 1513, foi inscrita em 2004 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) na lista do património mundial.

El Jadida, a moderna

Às 10h30 as ruas de El Jadida já têm muitos turistas, ao contrário das de Azamor, a 20 quilómetros de distância. Quem percorre a rua principal, com lojas dos dois lados que vendem tapetes, cerâmica e lanternas de ferro, e não conhece a história da antiga Mazagão, não percebe de imediato que a fortaleza, um dos mais importantes entrepostos comerciais e militares na rota marítima para a Índia, tem duas fases distintas de construção. A primeira, contemporânea da de Azamor e Safim, é de 1513 e tem o crivo de D. Manuel I e o traço dos Arruda, que desenham um pequeno castelo quadrado, com quatro torres. A segunda, iniciada quando D. João III decidira já concentrar os seus esforços em três praças do Norte de África (Mazagão, Ceuta e Tânger), abandonando as restantes, começa em 1541 (o projecto do italiano Benedetto de Ravena é concretizado pelos portugueses João de Castilho e João Ribeiro, com centenas de trabalhadores vindos do reino, a sete dias de viagem).

É nesta segunda fase que se criam condições para que a fortificação resista durante séculos. Para além do complexo sistema defensivo, "Mazagão tinha uma cisterna e um celeiro que lhe permitiam aguentar os cercos sucessivos. Dentro de muros, a população podia subsistir durante anos, porque tinha sempre água e cereais armazenados no castelo de D. Manuel, que João de Castilho converteu", diz André Teixeira. A magnífica cisterna manuelina, absolutamente cenográfica, foi descoberta por acaso no início do século XX e é uma das construções mais notáveis desta fortaleza, que viria a servir de modelo para praças-fortes em Moçambique, no Brasil e na Índia.

"Aqui faz-se um corte radical com a construção de outras épocas", explica o arqueólogo. "Esta é uma fortaleza moderna. Não tem torre de menagem, é muito uniforme, muito mais baixa, enterrada num fosso, com muralhas muito espessas e ruas muito regulares. Esta é verdadeiramente uma fortaleza do Renascimento, muito eficaz." É por isso que, pós-1542 (foi construída num ano apenas), sempre que estavam para ficar num novo território, os portugueses olhavam para Mazagão.

E por que opta a coroa por reforçar El Jadida, abdicando de Azamor e Safim? "Essencialmente porque muda de rei. D. João III já nasce num mundo novo, com o Brasil e a Índia. O referencial guerreiro da Idade Média não lhe diz nada. Ele é já um homem do Renascimento. Para perceber por que saímos, temos de olhar para o contexto." Há outros países europeus a avançar para o Oriente, há pirataria inglesa nos Açores e os franceses estão cada vez mais interessados no Brasil. D. João III decide, então, apostar em Ceuta e Tânger, para controlar o estreito, e em Mazagão, o melhor porto de acesso ao Mediterrâneo (em Azamor o rio começara a ficar assoreado e Safim é tecnicamente pior para ancorar). "É nisto que D. João III é um rei com um pensamento verdadeiramente moderno - a conquista não lhe interessa."

Tal como em Azamor, já não há casas portuguesas em El Jadida. As que vemos datam, na sua maioria, do século XIX e são obra dos franceses, que recuperaram a antiga fortaleza que os portugueses deixaram à pressa e que esteve 50 anos abandonada, devolvendo às ruas os seus nomes originais.

É por isso que hoje podemos caminhar pelas ruas da Mina ou da Carreira, em direcção ao Baluarte de Santo António, onde o Instituto Português de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar) se prepara para criar um centro de interpretação, segundo um projecto da Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, coordenado por Jorge Correia, que deverá estar pronto até Junho do próximo ano. "A ideia é explicar a cidade portuguesa, com cartografia, textos e desenhos, mostrando os espaços urbanos que levaram à sua classificação como património mundial", diz Correia. No novo centro, feito em colaboração com a direcção cultural de Azzeddine Karra, ficaremos a conhecer "como a coroa se servia deMazagão" e como viviam os seus habitantes.

A Ibrahim pouco importa o que queriam os portugueses da sua cidade há 500 anos. Ele tem apenas oito e a única coisa que parece interessar-lhe é correr nas muralhas, sob o olhar da mãe, Aisha. Ibrahim não fala francês, mas vai gesticulando, como se tivesse uma espada na mão. Porque não está ele a jogar futebol com os outros rapazes, perto da Porta do Mar? "Prefere brincar aqui", responde Aisha. "Diz que é um pirata, como os portugueses."

Um castelo e uma catedral

Comparada com a de El Jadida, a parte antiga de Safim, a 150 quilómetros de Azamor, parece enorme, mas menos desafiante. O Castelo de Terra - chama-se assim por oposição ao que fica à beira-mar, sobre as rochas, e que está a ser consolidado, depois de uma das suas torres ter ruído - é hoje o Museu Nacional de Cerâmica e foi construído na antiga alcáçova islâmica. Subindo a uma das torres e olhando na direcção do mar, vê-se o perímetro muralhado da cidade, com a colina dos oleiros à direita, em tons avermelhados, onde os artesãos continuam a trabalhar como há mais de cinco séculos. "Safim era um porto importante. Antes de virem para conquistar, em 1508, os portugueses vinham por causa do comércio, tinham cá uma feitoria", explica André Teixeira. "Mas depois Azamor torna-se muito mais importante", explicará mais tarde ao P2 Azzeddine Karra, "porque o porto de Safim era muito difícil, mais exposto".

É precisamente para proteger o porto, e pensando sempre na sua ligação ao mar - como via de comunicação e como possibilidade de fuga -, que os portugueses constroem o Castelo do Mar. Esta estrutura que está hoje a ser alvo de obras de consolidação (está muito degradada por causa da erosão e da proximidade de uma linha de comboio, tendo uma das suas torres ruído no ano passado) faz parte da cerca muralhada, um projecto dos irmãos Arruda. Junto à sua torre de menagem, o que foi o palácio dos capitães de Safim tem ainda bem definidos os recortes manuelinos de uma janela. "Aqui o investimento em termos de construção é grande, porque Safim passa a ser sede de bispado", acrescenta o arqueólogo português. "É por isso que não lhes chega ocuparem a mesquita e constroem uma catedral."

Dessa catedral manuelina, que terá sido construída em 1519 pelo mestre João Luís, só restam hoje o topo da nave central e uma pequena capela lateral. O resto foi engolido pela actual medina e, mesmo o que ficou - magníficos arcos com medalhões exibindo os símbolos da coroa ou da Santa Sé - apresenta vestígios da conversão do edifício em hamman, no século XIX.

Foi precisamente na área que se julga ter sido ocupada pela nave central da catedral que os arqueólogos do CHAM fizeram sondagens este ano. É também aqui que se centra o projecto de valorização do arquitecto João Campos que a Fundação Gulbenkian apresentou ao Governo de Marrocos a 14 de Outubro e que está em apreciação. "Estamos à espera de uma resposta de Marrocos para que a obra siga o seu curso", explicou ao P2 por telefone Maria Fernanda Matias, assessora do Serviço Internacional da fundação. "É claro que estamos abertos a discutir o projecto", acrescenta, admitindo que possa vir a sofrer alterações.

Para já, as sondagens arqueológicas puseram a descoberto aquilo que se pensa ser uma ínfima parte do piso da catedral, mas não há certezas. "É preciso escavar uma área mais extensa. Até para perceber se conseguimos identificar os limites da catedral ou não", diz André Teixeira.

O projecto de João Campos pretende deixar livre aquela que seria a nave central da catedral, sobre a qual se foram construindo casas, explica Azzeddine Karra, (todos os que nelas moravam foram já realojados). "A ideia não é reerguer a catedral, mas deixar o espaço que ela ocupava bem definido na actual medina." E derrubar casas para deixar vazio um espaço que há 500 anos foi ocupado por uma igreja católica no coração de uma cidade muçulmana não poderá levantar problemas?

"O projecto está ainda em apreciação", garante Karra, 38 anos. "As questões do património são sempre complicadas, porque estamos a mexer em cidades vivas, não em monumentos para serem visitados por turistas. Uma cidade com pessoas lá dentro, muitas vezes vivendo com grandes dificuldades económicas, não tem na preservação do património a sua prioridade e isso é compreensível. O que queremos aqui mostrar, tal como em Azamor, é que esta herança portuguesa também faz parte da nossa história e que para a mantermos precisamos de projectos bem definidos no tempo e no espaço, como este da Gulbenkian e das universidades [o do CHAM]."

Karra não tem dúvidas de que os portugueses "fazem parte do imaginário marroquino", com naturalidade. "As questões da identidade podem ser sensíveis, mas não é disso que se trata aqui. Nós não queremos fazer ideologia com as escavações - só queremos centrar-nos na realidade histórica."

E a realidade histórica mostra que só foi possível aos portugueses conquistarem Safim e Azamor, assim como outras cidades ao longo da costa, porque à data da sua chegada o poder político local está muitíssimo fragmentado. Depois, progressivamente, vão encontrando mais resistência. Pouco a pouco, D. João III vai abandonando cidades marroquinas até ficar com as suas três praças-fortes. Mas Tânger, Ceuta e El Jadida acabam por ser também deixadas para trás, já no século XVII e XVIII. A primeira, em 1661, faz parte do dote de Catarina de Bragança, futura mulher de Carlos II de Inglaterra, que com o casamento recebe ainda Bombaim. Ceuta desvincula-se da coroa em 1640, sendo a única cidade da Expansão que não adere à Restauração. El Jadida fica deserta a mando do Marquês de Pombal, que em 1769 envia os seus habitantes para as margens do rio Amazonas, para que fundem a Nova Mazagão (o francês Laurent Vidal conta esta viagem em Mazagão, a Cidade Que Atravessou o Atlântico).

As escavações portuguesas, inseridas no projecto Portugal e o Sul de Marrocos, dirigido por Maria Augusta Lima Cruz e com um financiamento de 200 mil euros da Fundação para a Ciência e Tecnologia, deverão continuar no próximo ano, pondo fim a um projecto que começou em 2008. André Teixeira não quer sequer pensar que será o último: "Temos tanto ainda para fazer, sobretudo no Baluarte do Raio e na cidade medieval de Azamor. Não podemos parar já."

O P2 viajou a convite do grupo de trabalhos de arqueologia do CHAM - Centro de História de Além-Mar, da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores

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