Alberto Contador Um herói silencioso

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Ele superou um aneurisma cerebral, alegações de consumo de substâncias ilícitas, uma rivalidade com o renascido Lance Armstrong e 3500 duríssimos quilómetros distribuídos por três semanas da maior prova do ciclismo mundial. Alberto Contador é bicampeão da Volta à França e, portanto, o ciclista mais forte do pelotão. Por Ana Marques Gonçalves

a Para quem viaja na A4 desde Madrid rumo ao Sul de Espanha, a pequena placa que indica Pinto passará com certeza despercebida. Uma localidade de sombras e indústria nas afueras da capital espanhola não chamará a atenção do comum dos viajantes - mesmo que as indicações históricas refiram que Pinto deve o seu nome ao facto de estar situada exactamente no centro geográfico da Península Ibérica -, mas não deixará de provocar uma exclamação aos apaixonados do ciclismo.Pinto é o centro do mundo velocipédico desde que Alberto Contador teimou em inscrever o seu nome na elite do ciclismo mundial. E quem é Alberto Contador? É o terceiro ciclista na história a ganhar as três grandes Voltas (Tour, Giro e Vuelta) em apenas 15 meses (de Julho 2007 a Setembro de 2008), sucedendo a Merckx e Gimondi (tinham ambos 25 anos quando completaram o trio Tour-Giro-Vuelta). Ou o homem que entrou na lenda da modalidade, ao tornar-se no quinto corredor a ganhar o "Grand Slam" do calendário mundial, depois dos míticos Anquetil, Gimondi, Hinault e Merckx. Ou, simplesmente, o corredor que ontem subiu ao lugar mais alto do pódio nos Campos Elísios, a montra final para os melhores dos melhores das três semanas da maior corrida do mundo, a Volta à França.
Antes da partida para aquela que seria a sua segunda vitória no Tour, o diário espanhol El País descrevia-o assim: "Contador constrói-se desde o silêncio. Tem tanto cuidado com o que diz, está tão consciente de que todas as palavras que pronunciar, todos os gestos que fizer, podem ser medidos, pesados, interpretados de tantas maneiras, que o seu discurso, voluntária e finalmente, reduz-se a quase nada."
E quase nada é o que sabemos da sua vida fora das estradas. Apenas que nasceu em Madrid, a 6 de Dezembro de 1982, como o terceiro de quatro irmãos - Francisco Javier, Alicia, mais velhos, e Raul, o mais novo, que tem paralisia cerebral -, filho de Francisco e Francisca, que trocaram a fronteiriça Barcarrota (Badajoz) pelo madrileno município de Pinto. Que, pela sua fascinação por pássaros, sonhou ser veterinário - conta-se que na sua infância, qual Flautista de Hamelin, conseguia atrair pombas com o assobio e são conhecidos o orgulho que tem na sua colecção de canários e o seu gosto pela caça. Que abandonou os projectos de miúdo, que incluíam também um futuro no atletismo ou no futebol, quando, com 14 anos, subiu pela primeira vez para cima de uma bicicleta, a velha Orbea do seu irmão Francisco, e com ela deixou para trás todos os amigos, equipados com "máquinas" mais modernas. Que ganhou a alcunha de "Pantani" (antigo trepador italiano, famoso pelas suas espectaculares vitórias em alta montanha) quando se juntou ao Real Velo Club Portillo de Madrid. Que sacrificou os estudos aos 16 anos para se dedicar por completo ao ciclismo (se enquanto júnior já não assistia às últimas aulas para treinar antes do anoitecer, enquanto amador teve de abdicar definitivamente das actividades académicas). E que divide a casa em Madrid com a sua noiva Macarena, com quem habitualmente partilha os feitos mais importantes. Ponto.
Não gosta da exposição mediática, não gosta das novas tecnologias, não gosta de ser falado por outros motivos que não os desportivos, não gosta de seguir as modas: assim é Alberto Contador, nas suas próprias palavras. Twitter? "Nunca pensei em tê-lo, nem sei como se entra na página. E caso criasse uma conta, nunca o usaria para expor a minha vida íntima. O que é meu só a mim diz respeito. Foi assim que me ensinaram." Amuletos? "Não uso nenhum nas mãos por superstição, associo-os a momentos maus." Entrevistas? "Graças ao meu assessor de imprensa e ao meu irmão, a minha orelha já não está sempre colada ao telefone. Era um pesadelo!"
O anti-Armstrong
O ciclista madrileno é o protótipo do anti-Armstrong: se Alberto é o cúmulo da discrição, Lance é o exemplo da exposição (tem toda a sua vida documentada via Twitter, entrevistas, opiniões, livros e capas de revistas). A "luta" entre os dois, dentro e fora da prova francesa, correu mundo, inundou páginas de jornais, conheceu episódios diários, criou movimentos pró-Contador e pró-Armstrong a uma escala que nunca se tinha visto nem nas maiores rivalidades da história do ciclismo mundial e fez mais pela modalidade (e pelo Tour), tão manchada pelos sucessivos casos de doping nos últimos anos, do que qualquer grande feito desportivo.
O que poucos sabem (o silêncio e a discrição mais uma vez a servirem de mote para o corredor de Pinto) é que antes de toda a polémica, antes de todas as incompatibilidades, mais ou menos públicas, dos dois nomes grandes do ciclismo mundial, Armstrong era o ídolo de Contador. Ou melhor, Armstrong e a sua autobiografia It's Not About the Bike: My Journey Back to Life, onde o norte-americano relata pormenorizadamente a sua luta contra o cancro, foram a inspiração de Contador enquanto estava deitado numa cama de hospital.
Estávamos em 2004, na primeira etapa da Volta às Astúrias. Para trás tinham ficado os anos como amador, em que ganhou tudo o que havia para ganhar em Espanha, um título de campeão nacional de contra-relógio sub-23, uma vitória numa etapa da Volta à Polónia, com apenas 20 anos e no primeiro ano como profissional pela ONCE, uma das principais equipas do pelotão internacional de final dos anos 90 e inícios do século XXI. Contador, então com 21 anos, caiu da bicicleta, em convulsões, depois de vários dias com fortes dores de cabeça, ficando inconsciente na estrada. Depois de uns dias internado, voltou a casa, sem saber o que tinha acontecido. Dez dias depois do primeiro colapso em cima da bicicleta, o susto repetiu-se, sendo-lhe diagnosticado um aneurisma cerebral.
"Quando estava no hospital, tive medo de não conseguir viver uma vida normal. O Lance Armstrong foi uma inspiração para mim, li o seu livro no hospital e isso motivou-me", confessou o espanhol na posse do seu primeiro maillot jaune em Paris, em 2007. "Foi maravilhoso poder voltar a competir" [tão maravilhoso que a 27 de Novembro de 2004, o dia em que os médicos lhe comunicaram que podia voltar a pegar na bicicleta, saiu de casa para treinar debaixo de um dilúvio e com três graus de temperatura]", admitiu então.
Uma cicatriz entre as duas orelhas é a única recordação daqueles dias. Isso e uma renovada vontade de vencer, tão grande que havia de o colocar, quatro temporadas depois, ao lado das grandes lendas do ciclismo mundial.
A sombra do doping
Mas antes da era dourada, Contador teria ainda de passar outro teste de fogo: a Operación Puerto. No pequeno universo das bicicletas Operación Puerto é sinónimo de terramoto, doping maciço e generalizado, rolar de cabeças. Caíram muitos (e grandes) ciclistas com a descoberta de um dos sistemas de dopagem mais elaborados do desporto europeu (implicava não só o fornecimento de substâncias dopantes, mas também avançadas técnicas de despistagem dos controlos, nas quais se incluíam métodos de transfusão sanguínea), encabeçado pelo famoso médico Eufemiano Fuentes. Nas caóticas horas antes da partida do Tour 2006, a Guardia Civil espanhola revelou um relatório encriptado de 36 páginas, onde, entre outros, constava o nome de Alberto Contador, que, afastado da corrida francesa nesse ano, seria posteriormente ilibado em tribunal, com o próprio Fuentes a desmentir qualquer implicação do espanhol no caso.
Não seria a última vez que o nome do ciclista da Astana estaria associado ao doping: em 2007, quando venceu o Tour inesperadamente, as suspeitas sobre a "limpeza" dos seus resultados voltaram a ter eco nos media, com Contador a garantir nunca ter tomado substâncias ilícitas. Já no decurso da Volta à França deste ano, Greg Lemond, tricampeão do Tour, questionou o desempenho do espanhol, dizendo que nunca nenhum ser humano conseguiu atingir um nível de desempenho semelhante.
A resposta de Contador foi o silêncio - sempre ele a marcar a postura do espanhol. Afinal, os seus trunfos (nunca deu positivo num controlo antidoping) e os seus triunfos falam por si. Ontem, o companheiro de quarto de Sérgio Paulinho (o P2 tentou entrar em contacto com o português para conhecer mais segredos do novo bicampeão do Tour, mas a apertada agenda e a festa dentro do autocarro da Astana não o permitiram) só estava preocupado com um pormenor: envolver-se na bandeira nacional para festejar mais um grande feito do desporto espanhol.

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