O telefonema que mudou a vida de Jorge Humberto

A primeira transferência de um jogador português para Itália foi há 50 anos, quando um avançado da Académica foi contratado pelo "colosso" Inter de Milão. Jorge Humberto só acreditou que era o "mago" Helenio Herrera, então treinador dos nerazzurri, do outro lado da linha depois de receber em casa um telegrama.

Como tantos outros estudantes em Coimbra, Jorge Humberto estava ocupado a preparar-se para os exames. Mas o estudo foi subitamente interrompido por uma chamada que iria mudar a vida do jovem avançado da Académica e estudante do 5.º ano de Medicina: do outro lado da linha alguém se apresentava como Helenio Herrera, treinador do Inter de Milão. O propósito da chamada era comunicar-lhe o interesse da equipa italiana em contratá-lo.

A reacção instintiva foi pensar que se tratava de uma brincadeira. "Está bem, está bem. Adeus", despachou Jorge Humberto, desligando de seguida. Mas o telefone voltou a tocar pouco depois naquela tarde de Junho de 1961. "Deixa-me estar que estou ocupado com os meus estudos", pediu. Perante a insistência do interlocutor na proposta de transferência para Itália, decidiu desmascará-lo: "Se é verdade o que o senhor está a dizer, mande um telegrama para confirmar."

As razões para não acreditar no convite eram mais que muitas. Para começar, vinha "só" de um dos maiores clubes da Europa. Depois, o facto de o telefonema ser feito pelo próprio "mago" Helenio Herrera, uma figura cujo legado ainda hoje perdura. O técnico argentino (a quem José Mourinho foi comparado durante a sua passagem por Milão) revolucionou o futebol italiano - da preparação física à táctica, passando pela alimentação dos atletas ou pelas relações com o presidente - e transformou o Inter num clube ganhador.

"O telegrama chegou daí a uma horita, se tanto", recorda Jorge Humberto, em conversa com a Pública. A admiração foi geral na "república" (casa de estudantes) onde vivia, no número 23 da Rua do Norte, por trás da Sé Velha de Coimbra. "Nós comíamos à mesma mesa quando ele recebeu o telegrama do Herrera a propor a ida para Milão", lembra Armando Rocheteau Gomes, companheiro do avançado da Académica: "Afinal, era verdade. Nem queríamos acreditar."

Entre 1957 e 1958, Helenio Herrera treinara o Belenenses. Na mesma altura, Jorge Humberto fazia os primeiros jogos pela equipa de Coimbra. Mas nada fazia prever o convite para se juntar ao técnico argentino em Milão. "Isto não pode ser, como é possível?", lembra-se de ter pensado. Jogavam então pelos nerazzurri nomes como Luis Suárez, Mario Corso, Sandro Mazzola, Giacinto Facchetti ou Lorenzo Buffon (pai de Gianluigi Buffon e guarda-redes tal como este). "Quem sou eu ao pé dessa gente toda?"

"Nunca me tinha passado pela cabeça algum dia ir jogar num clube estrangeiro", confessa Jorge Humberto. Mais ainda quando estava tão perto de passar para o último ano do curso de Medicina, a sua verdadeira prioridade. Mas o convite do Inter não deixava de ser tentador... A condição era que o avançado português fizesse uma prova em Milão, num jogo particular, antes de ser tomada uma decisão. "Se tudo correr bem, provavelmente vai haver uma reviravolta na minha vida", pensou.

Antes, teve de se encher de coragem para abordar o professor Fernando de Oliveira e pedir-lhe autorização para adiar o exame de Patologia Cirúrgica. "Atrevi-me a ir bater à porta dele antes de ir para Itália", explica Jorge Humberto, algo quase impensável numa altura em que professores e estudantes eram separados por uma enorme distância. "Vá e tenha boa sorte. Mas esteja cá antes do fim do mês", disse-lhe o professor, "com cara séria".

Amizade com Suárez

É já de Milão que, a 18 de Junho de 1961, Jorge Humberto envia a Armando Rocheteau Gomes um postal com uma vista da Piazza della Repubblica. "Já cá estou desde ontem. Viagem rápida e confortável, jornalistas e fotógrafos à chegada, instalação no Palace Hotel e descanso neste momento para o jogo à noite. Esta manhã recebi a visita do Suárez, que se mostrou muito simpático. Informei-o das minhas características, falou-me dos restantes colegas e ficámos amigos. Já ontem à noite eu, ele e o Herrera estivemos a conversar no restaurante do hotel. Diz à malta que o jogo é contra o Spartak, à noite, e que lhes mando muitos cumprimentos."

O teste dificilmente poderia correr melhor. O Inter conseguiu uma goleada e Jorge Humberto brilhou. "Meti dois ou três golos, já não sei." Três dias depois havia novo encontro, diante do Santos de Pelé. Mas o avançado português teve de abdicar do sonho de defrontar aquele que é por muitos considerado como o melhor jogador de sempre. Tudo por causa do compromisso, assumido com o professor Fernando de Oliveira, de estar em Coimbra para fazer o exame.

"Disse cá para mim: "Não, não. Eu, à cautela, não vou querer tudo na vida. Se isto der resultado, há-de dar. Mas vou-me embora, porque não quero estragar o que já está feito. A exibição que eu fiz foi mais do que convincente"", recorda Jorge Humberto. Os responsáveis do Inter foram sensíveis aos argumentos do avançado português e, na véspera do regresso, chamaram-no à sede para lhe entregarem o prémio do jogo. "Deram-me 120 mil liras, que na altura eram seis contos. Seis contos era quatro vezes aquilo que eu recebia na Académica", diz. "Claro, reuni-me com a minha malta toda, lá em Coimbra, e fizemos uma festarola."

Seis anos depois de ter chegado a Coimbra, Jorge Humberto estava de partida. A sua carreira na Académica começara alguns anos antes. Ainda estudante do liceu, o jovem avançado "já jogava à bola" na Académica do Mindelo, em Cabo Verde, de onde é natural. "Tinha um treinador que era, ao mesmo tempo, o professor de ginástica do liceu, e que me entusiasmou imenso para vir para Portugal. Disse-me que tinha condições para poder vingar na Académica e ao mesmo tempo tirar um curso", conta.

"Comecei, juntamente com outros dois colegas, a alimentar seriamente a possibilidade de vir estudar para Portugal. Começámos a explorar hipóteses de subsistência, porque nem a minha família nem a deles estavam em condições de nos aguentar em Portugal a tirar um curso", continua Jorge Humberto.

Bolsa para seis meses

O que fazer? "Resolvemos" - imagine-se - "abordar o governador da província", explica. "Ele ia lá à ilha de São Vicente de vez em quando, e todas as vezes que ele ia lá nós fazíamos-lhe uma visita. Queria ajudar-nos, mas não havia verba." Até que surgiu uma possibilidade: uma bolsa apenas, a dividir pelos três, e por um período de seis meses. "Abraçámos este projecto e avançámos", sublinha.

Estava-se em 1955. Terminados os seis meses da bolsa, cada um teve de se desenvencilhar como pôde. Jorge Humberto contou com a ajuda de uma irmã, que era professora primária, e um subsídio da Académica. "Eu já tinha começado a jogar nos juniores, logo quando cheguei. Acabaram os seis meses e fui ter com os directores da Académica. Contei-lhes a minha história. Aquilo foi uma risada que sei lá, não queriam acreditar", recorda Jorge Humberto: "Fui o primeiro júnior a ser subsidiado. Nunca tinham feito isso. Eles compreenderam a situação e apostaram em mim."

Livre das preocupações monetárias, Jorge Humberto pôde concentrar-se no futebol. "A minha estreia foi contra o grande rival da Académica, o União de Coimbra. Ganhámos 3-0 e eu meti os três golos. Fiquei logo lançado nos juniores e no ano seguinte estava destinado a ser promovido ao primeiro team", diz.

Em Maio de 1956, Cândido de Oliveira, treinador da Académica, decidiu dar uma oportunidade a Jorge Humberto numa partida contra o Olhanense. "As coisas não me correram mal, mas já quase no fim, numa daquelas bolas compridas que o guarda-redes sai e vou a correr a ver se ainda consigo lá chegar, estico o pé e o safado agarrou-mo, torceu-me o joelho e fiquei arrumado. Fiz uma luxação completa do joelho esquerdo, julguei que tinha acabado para o futebol."

Seguiram-se alguns meses de recuperação, com o fim do ano lectivo e as férias pelo meio. No início da nova temporada, Cândido de Oliveira teve uma conversa com o avançado: "Jorge, eu gostava de te pôr já no primeiro team, mas como tu ainda tens idade vais jogar outra vez nos juniores. Vais arranjar um bocadinho mais de calo, recuperar esse joelho como deve ser, e para o ano, zás!" "Dito e feito", afirma Jorge Humberto. "No ano seguinte comecei então a jogar no primeiro team."

Paralelamente, ia construindo o seu percurso académico. "Quando fui para Portugal, estive muito indeciso sobre que curso escolher", confessa. Após uma inclinação inicial pela Engenharia, acabou por se decidir pela Medicina. "Depois, nasceu-me a paixão pela obstetrícia. O Mário Torres, que jogava comigo na Académica, era já obstetra. E quando ele estava de serviço, eu - que ainda era aluno de Medicina - ia lá ver o dia-a-dia dele. Fiz até uma data de partos sendo apenas aluno de Medicina", explica Jorge Humberto, que no entanto acabaria por fazer a especialidade em Pediatria.

"Ecco Humberto"

Mas o curso teve de ser interrompido e, em Setembro de 1961, rumou a Itália para integrar o plantel do Inter de Milão. "Era um avançado explosivo. Tinha uma velocidade espantosa, uma determinação terrível e um remate fulminante. Era um futebolista de alto nível", resume Mário Wilson, companheiro de Jorge Humberto na Académica. "Ecco Humberto - Parla quattro lingue e tira con i due piedi" (Eis Humberto - Fala quatro línguas e chuta com os dois pés), escreveu um jornal italiano na altura.

O avançado e estudante de Medicina acabava de protagonizar a primeira transferência do futebol português para o calcio. Um negócio que rendeu uma quantia importante à equipa de Coimbra: "A Académica pediu 4000 contos [cerca de 20 mil euros, ao câmbio actual], dos quais 3000 para ele e mil para a Académica", recorda Armando Rocheteau Gomes, que viria a pertencer à direcção da secção de futebol da associação.

Porém, Jorge Humberto não foi o primeiro português a jogar em Itália. Segundo vários registos, o pioneiro terá sido Francisco dos Santos, que chegou a Roma em 1906 com uma bolsa de estudo para frequentar a Academia de Belas-Artes. Aquele que, mais tarde, viria a ser o autor do busto da República ou da estátua do Marquês de Pombal em Lisboa, jogou na Lazio durante dois anos, para fazer face às dificuldades financeiras, chegando a ser capitão da equipa.

As características de Jorge Humberto não chegaram para que o avançado português se afirmasse na primeira equipa do Inter. Uma regra da Liga italiana não permitia que as equipas colocassem ao mesmo tempo em campo mais do que dois jogadores estrangeiros. E nos nerazzurri essas vagas estavam ocupadas pelo espanhol Luis Suárez e pelo britânico Gerry Hitchens. O clube ainda faria uma tentativa, frustrada, de naturalização de Jorge Humberto, com o objectivo de contornar essa regra. Um assunto que marcou o ex-avançado, que descreve o esquema como uma "fraude".

Nas competições europeias era diferente, uma vez que a Taça das Cidades com Feiras (precursora da Taça UEFA, hoje Liga Europa) permitia que jogassem três estrangeiros. Foi nesta prova que Humberto viveu os melhores momentos com a camisola do Inter de Milão: cinco golos em cinco partidas disputadas - incluindo um hat-trick diante do Colónia, nos 16 avos-de-final -, a que se juntaram dois jogos no campeonato italiano e outro (com um golo) na Taça.

Apesar disso, as recordações são boas: "Vivia num apartamento, um sexto andar na Via Canonica, 59, que partilhava com o [Bruno] Bolchi e o guarda-redes Ottavio Bugatti, que tinha vindo do Nápoles e era o número dois do Buffon." De Helenio Herrera, Jorge Humberto lembra os discursos antes dos jogos. "Ele falava com um entusiasmo tal que um indivíduo ficava embevecido a ouvir. Dizia-nos: "Tu és capaz! Não vires a cara." E a gente convencia-se de que era capaz", lembra.

Ouro antes dos jogos

No Inter, antes de cada jogo, havia um cerimonial. "O presidente Angelo Moratti [pai de Massimo Moratti, actual líder do clube] ia ao balneário visitar a equipa uns dez minutos antes. Desejava-nos boa sorte, dizia umas palavrinhas e distribuía a cada um uma libra de ouro pelo jogo ganho na semana anterior. Se não tivéssemos ganho, não havia libras, mas como se ganhava quase sempre..."

Porém, devido à escassa utilização, o avançado português deixa o Inter de Milão no fim da primeira temporada. "Depois de estar lá um ano fui para Vicenza, onde joguei no Lanerossi [nome da empresa têxtil que detinha o clube]", conta Jorge Humberto, que mesmo em Itália fez algumas cadeiras do curso, nas universidades de Milão e Pádua.

Após dois anos em Vicenza, a aventura italiana chegou ao fim. "Já tinha dito aos dirigentes que não ia continuar, porque queria voltar a Portugal para acabar o meu curso", conta Jorge Humberto. Ainda se falou na hipótese de ser vendido aos belgas do Standard de Liège, mas a vontade do avançado acabou por prevalecer. "E lá me vim embora. Regressei de carro, um Peugeot 404 comprado havia um mês e tal, novinho em folha. Carregado com todas as minhas coisas", acrescenta.

Em 1964, no regresso de Jorge Humberto, a Académica ganha ao FC Porto no antigo Estádio das Antas. Ao lado do agora experiente avançado brilhava uma jovem esperança acabada de chegar a Coimbra: Manuel António. "Um bom amigo, um bom aluno, um bom médico", resume o actual director do Instituto Português de Oncologia de Coimbra.

"Na brincadeira chamávamos-lhe Giorgio Humbertino", recorda Manuel António. Sobre a aventura italiana de Humberto, admite que "não triunfou como esperaria". "Julgo que ele não se adaptou bem lá ao futebol. E por isso é que ele regressa, senão continuaria lá", acrescenta Manuel António, concluindo com um sorriso: "Mas acho que foi melhor para ele regressar e tirar o curso."

De Angola a Macau

Jorge Humberto fez mais duas épocas na Académica e colocou um ponto final na carreira de futebolista em 1966, no mesmo ano em que concluiu os estudos. Passados três anos, foi chamado para a tropa. Embarcou no paquete Uíje e foi cumprir o serviço militar em Angola como alferes miliciano médico. "Estive lá dois anos", recorda.

Entre as histórias que o antigo avançado recorda de Angola, há uma particular que remete directamente para a sua experiência de futebolista. Quando a companhia que Jorge Humberto integrava foi colocada no Leste do país, em Lucusse - perto da fronteira -, a frequência dos ataques diminuiu drasticamente, quando antes era um sítio "permanentemente atacado". "Porquê? Porque, dizem, estava do outro lado, na Zâmbia, a companhia ou o batalhão do Chipenda. Daniel Chipenda, que tinha sido meu colega no futebol da Académica", explica.

O tempo que passou em Angola serviu também para ganhar prática médica. "Fiz aquilo que era possível ser feito", admite Jorge Humberto, descrevendo vários casos de ferimentos graves ou partos que teve de ajudar a realizar. Quando regressa a Coimbra, em 1971, dedica-se à especialidade. Acaba por escolher Pediatria: "Aquela que eu sempre quis." Termina-a em 1975. "Depois tive a sorte de, terminada a especialidade, passados dois anos, abrir o Hospital Pediátrico [de Coimbra]."

Jorge Humberto fala da Pediatria com entusiasmo e orgulho no trabalho feito. Desde a equipa que integrou no Pediátrico de Coimbra - um grupo que "dava cartas" e estava "avançado" na área - ao trabalho desenvolvido depois em Macau, para onde vai em 1982. Aí, teve como desafio erguer praticamente "do princípio" uma rede de cuidados pediátricos. O que era para ser uma estadia de curta duração transformou-se em mais de duas décadas de residência no território. Recentemente, o ex-avançado da Académica decidiu regressar a Macau para um novo desafio profissional.

Meio século depois de ter protagonizado a primeira transferência de um futebolista português para Itália, o sentimento que Jorge Humberto guarda da sua aventura no calcio é largamente positivo. "Uma rica experiência, que jamais esquecerei", escreveu no testemunho para a obra Académica - História do Futebol. Mais tarde, outros seguiram-lhe os passos. Mas coube-lhe a ele o pioneirismo de desbravar o caminho e dar a conhecer ao futebol italiano a qualidade dos jogadores portugueses.

tiago.pimentel@publico.pt

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