Dois bairros e uma bola: uma história de futebol

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Belenenses e Atlético são rivais de sempre. Representam dois bairros, Belém e Alcântara, e são um pedaço da história do futebol português - raízes populares, fábricas de ídolos como Matateu ou Germano. O presente pode ser uma pálida imagem de um passado glorioso, mas os clubes resistem e continuam a apaixonar os seus adeptos. Dia 20 de Agosto, 34 anos depois do último derby no campeonato, encontraram-se novamente.

Está um dia cinzento de Verão ameaçando chuva e, na secretaria do Clube de Futebol Os Belenenses, algumas dezenas de sócios pagam quotas em atraso e compram o bilhete para o jogo que começa em breve. À volta do Estádio do Restelo, movimentam-se centenas de pessoas, ora de camisola azul e cruz de Cristo ao peito, ora de camisola listada azul e amarela. "Em cachecóis o Atlético ganha 10-2", informa o dono da banca respectiva, que até é da Académica. A diferença tem uma justificação simples: os do Atlético "estão entusiasmados com o regresso". Ainda para mais, porque o regresso às competições profissionais de futebol se faz, logo na jornada inaugural, com o derby mais apetecível, o que os opõe ao rival de sempre, o Belenenses.

Para o campeonato, o Atlético Clube de Portugal jogara pela última vez naquele estádio a 22 de Maio de 1977. Foi nesse ano que a equipa do bairro de Alcântara desceu da 1.ª Divisão para não mais voltar. O Belenenses, que fora durante muito tempo um dos grandes do futebol nacional, ombreando com Benfica, Sporting e Porto pelos primeiros lugares, continuou a partir de 1977 um percurso de altos e baixos. Há dois anos, desceu à segunda divisão. Este ano, o Atlético subiu à segunda. Trinta e quatro anos depois, num domingo cinzento de Verão ameaçando chuva, os dois históricos do futebol português, rivais de sempre por proximidade geográfica e, dizem os de Alcântara, por distância de classe, estão de novo frente a frente.

Na história dos dois clubes e através da sua rivalidade, descobre-se parte da história do futebol em Lisboa e em Portugal. O jogo introduzido em Cascais por ingleses ciosos do seu amadorismo, elitista nesses anos fundadores, tornar-se-ia rapidamente num fenómeno de massas, agrupando cada bairro em volta do seu clube e transformando-se no desporto popular por excelência. Belenenses e Atlético têm na sua génese essa matriz. Os "sangue azul" defrontando os "carroceiros". Belém enfrentando Alcântara.

Às 17h de 20 de Agosto, o estádio com melhor paisagem do país - o do Restelo com vista aberta para o Tejo - está muito longe de estar cheio. Já lá vão, há muito, os tempos das enchentes quinzenais, do belenense que arrastava uma carroça de fruta pelas ruas depois dos jogos, gritando as glórias do clube (e as misérias do adversário) ou do velhote do Atlético que acompanhava a equipa a todos os campos, munido de megafone e sempre preparado para incitar a equipa em versão solo dos cânticos das claques de hoje: "O Atlético joga, joga! A bola rola, rola! Força e em frente, em frente!" Os ecos, porém, não desaparecem. Um derby é um derby e vice-versa, como disse um dia Mário Jardel. E este é um dos grandes.

O fenómeno popular que é o futebol transforma-se, mas há coisas que nunca mudam. A Fúria Azul grita sincopada na sua bancada: "Belém, Belém." A 5.ª Coluna responde da bancada em frente com incentivos em ritmo rápido: "Atlético!Atlético!Atlético!" O Atlético sobe pela primeira vez ao meio campo adversário, ganha uma falta, ganha logo depois outra, mais perto da área, e o bombo marca o desejo: "E faz um golo! Atlético faz um golo!" Confusão na área dos azuis e amarelos, uma bola que bate no braço de um defesa e o sarcasmo na bancada - "ah foi bola no peito?" - dá rapidamente lugar à conspiração da memória: "Estamos feitos, é o [árbitro] Olegário [Benquerença]. Sempre a lixar o Belém." O jogo avança aos repelões - "Uuuuf", suspiram os belenenses quando o defesa corta a bola para o poste da sua própria baliza; "aaaah", desesperam os alcantarenses com a bola que não entrou.

O jogo está longe de espectacular e lembramo-nos de algo que lemos num guia turístico de Lisboa britânico. Na secção de desporto, referiam-se dois estádios modernos, construídos de raiz para o Euro 2004, mas essencial mesmo, escreviam, era visitar o Estádio do Restelo. Citamos de cabeça: "Se o futebol não estiver a ser o melhor, pode sempre regalar-se com a magnífica paisagem." Mas não é com a paisagem que nos regalamos. Deixemos no campo Coelho, Miguel Rosa ou Camará, jogadores da casa; Caleb, Nélson Veiga ou Hugo López, três dos visitantes. Deixemos os adeptos do Atlético, entusiasmados com a luta que a equipa vai dando, e os do Belenenses, impacientes com o jogo atabalhoado dos seus onze em campo. Mais um passe falhado: "Olha, agora quer passar a bola ao liner", ri-se Francisco Fernandes, 74 anos, adepto do Belenenses que é, conta, excepção familiar na escolha de clube. Mudou-se em novo de Belém para Alcântara e toda a família é Atlético. Ele manteve-se fiel ao Belenenses do pai. Ele disse liner para designar "fiscal de linha" e recordou-nos um tempo em que canto ainda era corner e fora-de-jogo se dizia offside. Já nos esquecemos do Belenenses - Atlético de 2011, que continua 0-0. Já voltaremos a ele.

A vingança dos lenços brancos

22 de Maio de 1977. Penúltima jornada do campeonato. O Atlético já não tinha hipótese de escapar à descida de divisão, mas ia jogar ao Restelo e, como tal, tinha a honra para defender. O Belenenses - apesar de contar na equipa com jogadores como o avançado Vasques, o defesa e capitão Alfredo Quaresma, o avançado Artur Jorge, então no ocaso da carreira, ou um Jorge Jesus com farta cabeleira, estava sereno, apesar de mal classificado - não corria o risco de se afundar até à 2.ª Divisão. No já despromovido Atlético, por sua vez, encontrávamos gente como Mário Wilson (filho de Mário "O Velho" Wilson, símbolo do Benfica que foi também jogador de Sporting e Académica), Norton de Matos (actualmente treinador da Guiné-Bissau) ou Nelo Vingada, o treinador que vai correndo o mundo depois de ser adjunto de Carlos Queirós nas selecções sub-20 campeãs mundiais.

No Atlético, o capitão era o defesa Franque. Nascido em Benguela, Angola, chegou a Portugal em 1969 com Jordão para jogar nos juniores do Benfica. Não chegou a representar a equipa principal do Benfica - "naquele tempo era muito difícil" -, e o Atlético foi, dos muitos clubes que representou ao longo da carreira, aquele onde permaneceu mais tempo. Subiu com a equipa à primeira divisão, em 1974, com ela ficou até à descida e regressaria mais tarde, quando o Atlético já estava nas divisões secundárias. Franque não esqueceu. "Esse jogo marcou-nos imenso", recorda numa sala da Associação de Jogadores Profissionais de Futebol, de que é hoje vice-presidente.

"O estádio estava cheiíssimo porque eles queriam despedir-se do Atlético." E despediram-se em grande. Durante o jogo: "Eles marcaram pelo Vasques, nós empatámos pelo Nelo Vingada e depois o Pincho, o primeiro timorense a jogar em Portugal, fez o 2-1." E depois dele: "Saímos tão desiludidos. E depois aqueles lenços brancos..." Os lenços brancos: milhares deles ondulando no Estádio do Restelo enquanto os belenenses diziam adeus ao rival.

Agostinho Dias, director de futebol sénior do Atlético durante mais de duas décadas e adepto do clube desde que se lembra - "sempre vivi em Alcântara, casei em Alcântara, tinha de ser do Atlético" -, também desabafa: "Nós já estávamos lixados por descer de divisão e eles lá com aquela história dos lenços brancos. Deprimiu-nos e de que maneira." Mas, sentado na bancada de sócios do Estádio da Tapadinha, construído em 1942 pouco meses depois do nascimento do clube, e que pouco se alterou desde então, recorda também o que aconteceu anos depois. "Em 1982, eles desceram e a malta estava sedenta de vingança." Eis então os adeptos do Atlético em romaria até ao estádio, não com lenços, mas com lençóis e grandes panos brancos. "Com ferros matas, com ferros morres", ri-se Agostinho ao recordar um deles: "Havia imaginação em Alcântara e grande dedicação ao clube." E um gostinho especial em picar o Belenenses.

Para Agostinho e para os adeptos do Atlético, o Belenenses era o "clube dos ricos" que tinha um Presidente da República, Américo Thomaz, "a mexer os cordelinhos para o ajudar". Alcântara era um bairro que "vivia a força galvanizante dos operários, o que se manifestava no Atlético", um clube nascido da fusão entre o Carcavelinhos, de Alcântara, e o União Foot-ballde Lisboa, de Santo Amaro. Atlético que foi fundado no ano das grandes manifestações e greves do operariado que afrontou o Estado Novo de Salazar. O perfil do clube ficava desde logo ali traçado.

Mas passemos a palavra ao outro lado da barricada.

Disputas sãs, ao murro

Humberto Azevedo é o sócio n.º1 do Belenenses e é sócio do clube desde que nasceu. No café do estádio do Restelo, onde todos o conhecem e tratam com reverência - caramba, é o sócio n.º1, o mais antigo de todos eles -, mostra o seu primeiro cartão do Belém, ano 1928. A fotografia é a de um bebé sorridente que seria, anos mais tarde, nadador do clube e, depois disso, professor e director de natação. Estava-lhe no sangue. O pai, Eduardo Azevedo, o "Pêras", foi campeão de Lisboa em futebol em 1926/1927: "A defesa era Mário Duarte [aveirense e o primeiro guarda-redes do Belenenses, futuro embaixador], Morais e Pêras."

Humberto Azevedo só quer falar da rivalidade entre Belenenses e Atlético para a "desmobilizar". Para ele, não passa de um fenómeno bairrista, "como acontece com o Guimarães e o Braga", mas talvez mais intenso que isso porque, "quanto mais próximos, mais esses sentimentos nascem". Ainda assim, nada de especial. Na Tapadinha nunca teve problemas e "ambientes complicados sempre houve". Exemplos há muitos.

Em Vila Real de Santo António, viu os adeptos do Lusitano puxarem de navalhas - "mas eram uns cobardolas desgraçados, que a gente lançava-lhes a mão e eles fugiam". Estava em Olhão, conta, quando Soares, avançado do Olhanense, partiu a clavícula a José Sério, mítico guarda-redes do Belenenses: "Deu-lhe um pontapé, tirou-lhe a bola e meteu golo. Partiu-lhe a clavícula e o golo foi validado. Ai do árbitro se não fosse." E assistiu, num jogo com o Sporting Covilhã, a um momento que nos parece, como dizer, inolvidável. Sidónio, avançado que assinara pelo Belenenses vindo, curiosamente, da equipa serrana, "falha uma avançada, tropeça e fica ali cai não cai". O guarda-redes adversário aproxima-se mas, em vez de auxiliar o homem em queda, "dá-lhe uma cabeçada". Da bancada irrompe a mulher de Sidónio - "uma mulher de Alfama que não era para brincadeiras"-, vestindo um casaco de peles e armada com uma "telefonia portátil", e despedaça o aparelho contra o guarda-redes. Depois? Depois o jogo acabou, os ânimos não serenaram e Humberto e demais adeptos do Belém foram "corridos à pedrada desde o campo até ao largo onde estava o autocarro".

Como disse Franque, o futebol era então "para duros": "Não havia proibição de chapéus-de-chuva e nós éramos picados pelo público que ficava debruçado à volta do campo. Os fiscais de linha estavam sempre a olhar para trás, com medo que lhes batessem." Como recorda Agostinho Gil, sempre que havia um Oriental-Atlético, ou seja, o derby entre a zona oriental e ocidental de Lisboa, "a Azinhaga dos Alfinetes [próximo do campo do Oriental] fervia": "Era cada cena de pancadaria."

Curiosamente, todos os entrevistados condenam a violência do futebol actual, em particular aquela que associam às claques. Agostinho Gil não vê nisto qualquer contradição. Tudo se resume a uma questão de escala e intensidade. "A malta jogava com os punhos, desafiava-se e, mais cabeçada menos cabeçada, ficava tudo resolvido. Era uma coisa sã." Agora, acentua, é diferente: "Quando um tipo pode chegar com uma pistola ou uma faca..."

A escala pode ser diferente, mas a génese é a mesma. O belo jogo tornou-se num fenómeno apaixonante pela sua força identitária, por ter passado do amadorismo desinteressado, mas profundamente exclusivo, a algo mais elevado. Citemos Bill Shankly, lendário treinador do Liverpool: "Algumas pessoas pensam que o futebol é uma questão de vida ou de morte. Asseguro-vos que é muito mais sério que isso." Shankly estava absolutamente correcto. E a história do Belenenses, com fortes raízes populares, apesar de, naturalmente, ter congregado para a sua massa adepta as classes mais abastadas de Belém, prova-o.

É por isso que Humberto Azevedo não aceita a teoria das diferenças de classe, defendido pelos associados do Atlético, como um dos pilares da rivalidade entre os dois clubes. "Chamavam carroceiros aos adeptos do Atlético porque as pessoas de Alcântara punham aos cavalos das suas carroças um avental com o emblema do Atlético. Mas aqui no Belenenses também alguns o tinham, e eram tão carroceiros como eles", diz entre risos. "Essa história do elitismo vem do Américo Thomaz", um homem que, "com todos os defeitos políticos que tinha" (Humberto não gostava nada "dos gajos da situação"), "era Belenenses cem por cento". Quanto à massa associativa do Belenenses, assinala, "era da classe trabalhadora", independentemente "de quem a teve a dirigir".

Pepe, a alma de Belém

Fundado em 1919, 31 anos depois da introdução do futebol em Portugal, em 1888, o ano em que Eça de Queiroz editou Os Maias, o Belenenses nasce de um desejo de Artur José Pereira, considerado durante as primeiras décadas do século XX o melhor jogador português de todos os tempos, uma figura emblemática, sempre fotografada com a sua inseparável boina. Antes de concretizar o sonho de fundar um clube com o nome do bairro onde nascera, jogara no Futebol Cruz Negra, no Benfica e no Sporting. Do Benfica, veio com ele uma série de jogadores nascidos em Belém, carregando consigo o mesmo espírito que animava Artur José Pereira. Estavam, de resto, no sítio certo, no berço do futebol lisboeta. Marina Tavares Dias escreve em A História do Futebol em Lisboa (Quimera Editores, 2000) que "desde o início da década de [18]90 que a parte mais ocidental de Lisboa era o seu [do futebol] palco privilegiado. E isto porque, se a origem "aristocrática" ficou ligada a Cascais e à zona das futuras avenidas, os primórdios do futebol popular estão para sempre ligados a Belém, através de uma instituição que faz parte da história do próprio bairro, a Casa Pia de Lisboa" - saíram dela Cosme Damião, fundador do Benfica, ou futuros jogadores do Sporting, como António Bentes.

Na história do Belenenses, ninguém representa melhor o seu lado popular que José Manuel Soares, imortalizado como Pepe. Entre 1926 e 1931, transformou-se na maior estrela do futebol português do seu tempo. Avançado felino, tem o recorde de golos num só jogo - 10 ao Bom Sucesso - e quando se estreou pela selecção portuguesa com dois golos à França, com meros 18 anos, "foi o delírio" nas "ruas mais pobres de Belém", como lemos em A História do Futebol em Lisboa: "Pepe representava a alma do Bairro, o seu orgulho e a sua vaidade." O momento de maior glória chegaria com a participação portuguesa nos Jogos Olímpicos de 1928, onde o Belenenses, através de Augusto Silva, César e Pepe, foi a equipa mais representada numa escassíssima convocatória de 12 jogadores.

No dia do primeiro jogo, com o Chile, uma multidão encheu as ruas no centro de Lisboa, lendo as edições especiais dos jornais, ou observando o painel no Rossio onde a partida foi acompanhada num directo pré-televisão, com um homem, em contacto com Amesterdão, assinalando com um íman e com a precisão possível os avanços e recuos da bola no campo.

Portugal vence 4-2, Pepe marca e é decisivo nessa e na vitória seguinte, frente à Jugoslávia. A contestada derrota com o Egipto no terceiro jogo [um golo invalidado a Portugal] não maculou em nada o prestígio de Pepe, estrela maior do futebol de então. De então: nos campos era um ídolo, fora dele, um simples operário no Centro de Aviação Naval do Bom Sucesso.

Morreu tragicamente aos 23 anos em 1931, na sequência de uma intoxicação alimentar fulminante, nunca verdadeiramente esclarecida, e deixou o país em choque - ainda hoje o FC Porto, sempre que se desloca ao Restelo, leva consigo uma coroa de flores em homenagem ao jogador. "Menino pobre de um bairro pobre, José Manuel Soares valia o seu peso em ouro, no tempo em que o futebol ainda não tinha preço", escreveu Marina Tavares Dias. Pepe, de certa forma, fora a ponte entre um semiprofissionalismo de jogadores que, sendo já figuras míticas, não ganhavam mais que um curto suplemento monetário para compor o ordenado principal, e um futuro em que ser futebolista passou a ser ocupação a tempo inteiro - o Belenenses também está nesta história: uma das primeiras transferências a envolver verdadeiras fortunas foi a de José Maria Pedroto para o FC Porto, por inimagináveis 500 mil escudos. Nas décadas seguintes à morte de Pepe, o futebol ganha uma definitiva dimensão nacional, impulsionado pela rádio e pelas fotos e textos inflamados na imprensa.

Os ídolos Matateu e Germano

Em 1946, o Belenenses é campeão nacional com uma equipa alicerçada nas suas "Torres de Belém", a defesa formada pelo guarda-redes Capela, por Vasco, Feliciano e Serafim. Humberto Azevedo lembra-se bem do jogo decisivo, lembra-se de aguardar pelo resultado da última jornada, em Elvas (vitória por 2-1), na sede do seu clube. A equipa do Belenenses que lhe encheu as medidas não é porém a dos campeões mas sim aquela que, na temporada 1954/55, perdeu o campeonato para o Benfica a quatro minutos do fim da competição - vitória por 2-1 no Restelo e o sportinguista Martins a marcar o golo do empate que acabaria por entregar o título ao Benfica, que venceu na Luz por 3-0. Equipa adversária: o Atlético.

"A" equipa de Humberto era dos irmãos Vicente Lucas, o defesa que "secou" Pelé, sem uma falta, em todos os seis jogos que disputou com o gigante do futebol brasileiro, e Matateu, avançado extraordinário que marcou a sua era tanto em Portugal como no estrangeiro: numa Taça Latina em que o Belenenses defrontou o Real Madrid de Di Stefano e Puskas, a France Football titulava que o jogador nascido em Moçambique eclipsara as estrelas madridistas; na primeira vitória da selecção contra a Inglaterra, a exigente imprensa britânica desfez-se em boquiabertos elogios à técnica, velocidade e potência da estrela de Belém. Que até chegou a jogar pelo Atlético e a marcar ao seu clube, mas como diz Humberto Azevedo, "o Matateu estava sempre perdoado". Nessa equipa, para além dele, havia ainda o imprevisível Artur Quaresma, tio-avô de Ricardo Quaresma, ou Di Pace: "O melhor argentino que passou por Portugal, nunca vi um jogador com tanta classe", elogia Humberto Azevedo.

Enquanto o Belenenses construía o seu percurso de grande do futebol português, o Atlético mantinha-se na peugada. No ano em que o Belenenses vence o campeonato, o Atlético atinge a final da taça eliminando Benfica e Porto antes de perder a final para o imponente Sporting dos Cinco Violinos. Três anos depois, nova final, dessa vez perdida por 2-1 para o Benfica. E, antes e depois, teve classificações de destaque: um terceiro lugar no ano de estreia na primeira divisão, em 1943/44, classificação repetida em 1949/50.

Clube pujante de 15 mil sócios (hoje terá cerca de 2000), começou a perder a sua força com a construção da ponte sobre o Tejo e o progressivo desmantelamento das suas indústrias e, consequentemente, da sua massa adepta. Antes de tal acontecer, porém, Agostinho Dias viu um clube que conseguia recrutar jogadores ao Real Madrid - aconteceu em 1951/52, pela mão de Cândido de Oliveira, que conseguiu trazer para a Tapadinha o argentino Imbelloni, Licker e Enrique Messiano - e que tem como símbolo máximo Germano Figueiredo, campeão europeu pelo Benfica, mas "um produto made in Atlético e made in Alcântara". Agostinho não tem dúvidas: "Já vi finais da Taça da Inglaterra ao vivo, vejo golos e futebol de toda a parte mas nunca vi um jogador como o Germano." Qualquer adepto do Atlético, com a memória viva dos jogos ou com a construída pelos relatos heróicos dos mais velhos, concordará. "Eusébio?", questionarão, "só era bom a fazer golos". Germano, por sua vez, jogava a guarda-redes, a defesa central, a centro-campista e avançado. Sempre em grande. Sempre Atlético, o clube que era a paixão daquele homem reservado que preferia discutir literatura e cinema a falar de bola, "uma pessoa idolatrada no bairro que só se sentia verdadeiramente em casa com a malta de Alcântara", recorda Agostinho Gil.

O passado enche Agostinho Dias de orgulho. O passado no Atlético deixa Franque com um sorriso aberto: "Os clubes de bairro marcam. É um sentimento diferente." O presente, olham-no com apreensão. A Tapadinha precisa de obras para que o clube possa acolher os jogos da equipa, e manterá casa na Amadora até que elas sejam realizadas. Mas o dinheiro não abunda e "tem de se inventar todos os dias". É como exclama Franque: "[O Atlético] tem de ter uma grande alma para chegar onde chegou [às competições profissionais do futebol português]".

No Estádio de Restelo, segunda parte do regressado Belenenses-Atlético. O Belenenses tenta carregar, mas o Atlético defende-se bem e vai lançando contra-ataques que não deixam os azuis descansar. A claque de Alcântara não pára o incentivo à equipa - está-lhes no sangue -, Francisco Fernandes, adepto da casa, não perde o sorriso, mas abana a cabeça. "Isto é tudo jogador de baixa qualidade. E estão a jogar como os antigos jogavam, meio toscos." O Belenenses não marca, o Atlético igualmente. O jogo acaba como começou. Zero a zero. Abraçam-se os jogadores do Atlético, que pontuaram fora, saem sob assobios os do Belenenses, que não ganharam em casa. Mas, para quem gosta de futebol e das histórias que o futebol conta, houve derby. Regressou o clássico.

Atlético e Belenenses são clubes à imagem do gosto por futebol de João Brites, um dos dinamizadores do site O Cromo dos Cromos, verdadeiro arquivo da memória futebolística nacional (e não só) sem a qual a Pública não teria tido acesso às imagens de Germano, Matateu, Pepe e Franque que ilustram estas páginas. A rapidez com que a informação circula hoje leva a que já não seja norma o adepto escolher o clube do seu bairro - "até é mais fácil uma criança começar a admirar uma equipa estrangeira", considera João Brites. Mas, coisa bonita, as potencialidades da Net também permitem arquivar e revelar todos os protagonistas da história, dos heróis inesquecíveis aos perdidos na voragem da tempo que passa: "Muitos dos que já "apresentámos" no Cromo dos Cromos ajudaram a fazer o nosso futebol e o futebol não é só feito de "Messis" e "Ronaldos", mas também de muitos outros, mais ou menos anónimos."

No Restelo, dia 20 de Agosto, não houve Messis ou Ronaldos em campo. Já não há Matateu ou Pepe, não há Germano ou Gregório. Onze homens de cada lado. Cada grupo representando aquele milhar que, nas bancadas, anseia por um pouquinho de felicidade a beijar as redes. O Atlético está em dificuldades, mas há que acreditar no futuro. "Já nasci Atlético. Vivo para isto. Atlético sempre", diz à saída do derby Vítor Domingues, 28 anos, o homem do bombo da claque azul e amarela. O Belenenses atravessa a pior crise das suas nove décadas, mas há que olhar em frente: "Tenho esperança no futuro como belenenses que sou", sublinha Humberto Azevedo.

Um século depois, o futebol continua a ser o desporto mais popular e democrático que a humanidade conhece. O futebol continua. E precisa de equipas assim, e de rivalidades assim, para continuar a fazer sentido. É que, da cintilante Liga dos Campeões decidida sempre entre os mesmos grandes e muito ricos, quais putos mais velhos da escola a roubar a bola aos mais pequenos - o futebol actual é a versão financeira disso -, já estamos fartos. Dêem-nos dois bairros e uma bola. Temos futebol.

mario.lopes@publico.pt

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