O país que chegou tarde à festa

Na Birmânia, milhões de pessoas navegam na Internet pela primeira vez. Sem experiência prévia, são vítimas fáceis de propagandistas extremistas e de um código penal herdado da ditadura.

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Há quanto tempo está no Facebook? Parecendo que não, já vai para dez anos. E quando é que usou a Internet pela primeira vez? Apostamos que ainda foi no tempo do escudo. Já não é novo nisto, portanto, e no entanto ainda é capaz de cometer erros de principiante de vez em quando: clicar no link errado, apanhar um vírus, talvez mesmo fazer um comentário impróprio num sítio que julgava ser privado e que afinal está à vista de todos. Agora imagine quem começa a usar a Internet nos dias de hoje, na era das notícias falsas, dos ataques informáticos em larga escala e da total ausência de privacidade. Pior, imagine um país inteiro que só agora fez login.

Esse país é a Birmânia. Em 2011, recorda o BuzzFeed, apenas 0,2% de uma população de 51 milhões de habitantes tinha acesso à Internet. Um telemóvel podia custar mais de 3.000 euros e o acesso à rede estava reservado de forma quase exclusiva a altos funcionários do regime militar. Em 2014, a percentagem de cidadãos online subira apenas para 1%. Hoje, com a abertura do país ao mundo num processo político não isento de contradições, há cerca de dez milhões de birmaneses no Facebook. A rapidez na adesão à Internet não encontra paralelo noutro país do mundo.

E como é chegar à Internet em 2017? Em primeiro lugar, significa saltar as etapas que o resto do mundo percorreu. Os birmaneses não querem saber do email e centram toda a sua comunicação na rede social fundada por Mark Zuckerberg. E fazem-no sem seguir as regras: as contas duplicadas e os pseudónimos são a norma.

Mas um dos principais riscos que a nova Birmânia vive é o do impacto da propaganda extremista disfarçada de informação. Se no Ocidente o problema já é suficientemente grave, na Birmânia a situação piora com a credulidade e a iliteracia informativa de uma população que só recentemente começou a usar as redes sociais e a procurar fontes alternativas de notícias.

Após décadas de tensão entre comunidades, a Birmânia voltou em 2016 a viver uma situação de guerra não declarada entre o Estado central e a minoria rohingya, muçulmana, de Rakhine, no noroeste. No país predominantemente budista, a acção militar, que as Nações Unidas dizem ter contornos de limpeza étnica, encontra forte apoio popular. Alheia a isso não será a multiplicação de boatos online sobre crimes supostamente cometidos por muçulmanos. Figuras como Ashin Wirathu, um monge budista extremista, reúnem centenas de milhar de seguidores no Facebook a quem chegam, sem filtro, as suas mensagens de ódio. “Os muçulmanos fazem muito mal à sociedade birmanesa. Wirathu não tem medo de dizê-lo”, comentava na reportagem do BuzzFeed o guia turístico Win Lo Latt.

Antes, apesar de a violência ser um problema antigo, os birmaneses dificilmente leriam este tipo de discurso na imprensa estatal. Agora, líderes budistas partilham vídeos de decapitações no Iraque com legendas a identificar incorrectamente as imagens como prova de crimes cometidos na Birmânia. Na realidade, são antes comuns os linchamentos de birmaneses muçulmanos.

O Governo de Aung San Suu Kyi, antiga líder da oposição democrática e Prémio Nobel da Paz agora acusada de deriva nacionalista e autoritária, tem respondido ao problema dos boatos e da difamação online recorrendo cada vez mais a uma lei do anterior regime militar. No entanto, os alvos da justiça têm sido menos frequentemente os extremistas e mais os críticos de Suu Kyi, por um lado, e por outro cidadãos comuns que se insultam entre si na Internet. Na terça-feira, Wana Oo, um homem de 21 anos, foi detido por insultar a mãe no Facebook, desagradado pela relação desta com um novo namorado. “Prostituta”, escreveu. Arrisca agora três anos de prisão.

O caso de Wana Oo é apenas um entre dezenas registados nos últimos meses. Um homem que chamou “louco” ao Presidente Htin Kyaw também foi detido, tal como uma modelo transexual que criticou uma actriz famosa. Mais se seguirão, apontam organizações de defesa dos direitos humanos. Entre a crítica legítima ao poder político e o desabafo menos ponderado, torna-se extremamente fácil infringir a lei num ambiente virtual cujas regras os birmaneses ainda desconhecem.

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