O cérebro humano é o único sistema capaz de albergar uma mente?

No livro The Digital Mind, Arlindo Oliveira traça cenários em que os avanços tecnológicos podem mudar radicalmente a sociedade e o próprio conceito de humanidade.

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Há muitas perguntas no livro The Digital Mind — How Science is Redefining Humanity, do académico Arlindo Oliveira, presidente do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. O cérebro humano é o único sistema capaz de albergar uma mente? Ou será possível criar uma mente digital, seja esta ou não uma réplica do cérebro humano? Como será a relação dos humanos com estas mentes digitais? Temos o direito de desligar uma máquina que pensa?

Editado recentemente pela MIT Press, o volume (disponível apenas em inglês) é, nas palavras do autor, “um livro quase de divulgação científica” — mas que não se coíbe de traçar cenários especulativos, ao longo de páginas em que são comuns as referências a obras de ficção científica.  

Os primeiros capítulos sintetizam o estado actual da computação, da inteligência artificial e do conhecimento sobre o funcionamento do cérebro. São áreas que se cruzam no percurso académico de Oliveira: depois de um curso de Engenharia no Técnico, tirou um doutoramento na Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde aproveitou também para estudar neurociências: “Consegui aprender o suficiente sobre evolução, neurónios e cérebros para me safar”, lê-se na introdução. No essencial, estes primeiros capítulos podem ser lidos sem grandes conhecimentos prévios. Servem de preparação para a última parte da obra, na qual o autor se debruça por ideias que vão da eventual atribuição de direitos a máquinas inteligentes até à existência de inteligência extraterrestre, passando pela possibilidade de criar uma cópia de uma mente humana num sistema informático e alcançar assim uma espécie de imortalidade digital — algo que, a ser possível alguma vez, pode bem vir a ser um luxo apenas para os mais ricos.  

Há ainda ideias que poderão exigir algum esforço de imaginação ao leitor: por exemplo, uma entidade digital inteligente a falar com uma cópia “mais nova” de si própria. Seria, descreve o autor, uma espécie de viagem no tempo, em que a versão mais nova podia aprender factos úteis sobre o futuro. Estas pessoas digitais também poderiam viver a um ritmo mais lento ou mais rápido do que o mundo físico, uma hipótese que só por si abre as portas a múltiplas complicações.  

Arlindo Oliveira respondeu às perguntas do P2 no seu gabinete no Instituto Superior Técnico. Reconhece que algumas das ideias abordadas no livro estão, na melhor das hipóteses, muito distantes e admite colocar vários problemas para os quais não tem resposta. Mas nem todos remetem para um futuro distante. Há questões que já estão a colocar-se hoje. De quem é a responsabilidade num acidente com um carro autónomo? A ideia de pleno emprego está ameaçada pela evolução tecnológica?

Apesar das incursões do livro por transformações radicais potenciadas por grandes avanços tecnológicos, o autor diz não ser um adepto da singularidade, uma controversa teoria segundo a qual haverá um ponto no tempo em que as máquinas se tornarão inteligentes ao ponto de aperfeiçoarem a sua própria inteligência, superando o intelecto humano, com consequências imprevisíveis para a própria humanidade. Mas acredita que, apesar da evolução acelerada das décadas recentes, ainda “estamos no princípio” daquilo que os computadores serão capazes de fazer.

Porquê este fascínio com a criação de mentes que possam funcionar como o cérebro humano e que possam até ser mais inteligentes que o homem?
Esse fascínio é muito antigo. Surge praticamente ao mesmo tempo que apareceu a primeira ideia muito formal sobre um computador, com Alan Turing [um matemático britânico nascido em 1912 e um dos pioneiros da computação]. Passado um ano, o mesmo Alan Turing escreveu sobre inteligência artifical. São coisas quase simultâneas. Quando se conceberam os primeiros computadores, pelo menos electrónicos, surgiu a ideia de um computador reproduzir o funcionamento do cérebro humano. Naquela altura, as pessoas tiveram uma ideia muito clara de que o cérebro humano faz computação. A partir daí é um salto natural pensar até que ponto é que a computação pode reproduzir a inteligência humana. O que aconteceu é que se subestimou imensamente a complexidade do cérebro humano. Mesmo agora, os computadores só em coisas muito específicas conseguem reproduzir o funcionamento do cérebro.

É fácil perceber a motivação para ter inteligência artificial específica. Por exemplo, para carros autónomos ou assistentes virtuais nos telemóveis. Qual seria a motivação para fazer inteligências artificiais genéricas, como a do cérebro humano?
Duas grandes razões. Se tiver um sistema realmente inteligente, que possa pensar como um ser humano mas esteja num computador, ele pode substituir o ser humano em quase tudo, provavelmente de forma mais barata. Do seu trabalho [de jornalista], não há muito que precise de uma presença física. É simpático estar aqui à minha frente, mas podia estar num ecrã. Há uma motivação económica inevitável. Pode dizer-me que depois fica sem emprego. Isso é outro problema.

A segunda motivação, que acho realmente estranha e não usei no livro, é a ideia do transumanismo, a ideia de que o facto de os seres humanos viverem neste suporte biológico é uma coisa temporária. As ideias transumanistas são as ideias de imortalidade.

O livro parece-me optimista. Diz que a tecnologia pode chegar a esse ponto de uma inteligência genérica, mas não discute muito a possibilidade de a sociedade não querer essa tecnologia. Podemos simplesmente não querer criar uma inteligência artificial que venha a ser mais inteligente do que os humanos e lhes roube os empregos.
O problema é que quem decide isso se calhar são os donos de empresas. As ameaças são muitas. Esta ideia de que toda a gente deve ter um emprego é uma ideia relativamente recente, apareceu com as revoluções industriais, e há quem ache que não vai durar muito. Saber se, dada a evolução tecnológica, o pleno emprego é uma perspectiva realista nas próximas dezenas de anos é uma questão interessante. Há duas correntes: a que diz que as máquinas vão fazer muita coisa, mas que nós vamos fazer coisas ainda mais interessantes e portanto vai haver emprego. E a que diz que as máquinas vão substituir muita gente: os condutores de veículos, as pessoas que trabalham em call centers, alguns jornalistas… Com 15% de desemprego, ficamos nervosos. Mas nada impede que a taxa de desemprego natural numa sociedade seja de 50% ou 70%.

Descreve quatro tipos de inteligências que os humanos poderão criar, incluindo algumas com base no cérebro humano. Qual lhe parece mais provável a curto prazo?
Aquilo a que chamei “inteligências artificiais sintéticas”, ou seja, sistemas muito inteligentes, com uma inteligência que em alguns casos parecerá próxima da humana, mas aos quais chegámos via outros mecanismos. Há pessoas que dizem que o problema da inteligência é tão complexo que a maneira mais fácil de criar uma inteligência artificial é copiar um cérebro humano. Não concordo. Acho que este problema é tão complicado que não pode ser mais fácil do que o outro.

No livro, parecia-me mais entusiasta dessas ideias de copiar um cérebro humano.
Tenho talvez maior fascínio por isso, não quer dizer que ache mais provável. São ideias mais radicais. Essa possibilidade elimina a morte (dependendo de algumas crenças…). Uma sociedade onde haja carros autónomos que falem connosco, onde haja assistentes digitais que tratam de tudo, é uma sociedade que conseguimos perceber. Viver numa sociedade em que mil milhões de dólares lhe dão a vida eterna, embora dentro do computador, é uma sociedade diferente.

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Uma sociedade onde haja carros autónomos que falem connosco, onde haja assistentes digitais que tratam de tudo, é uma sociedade que conseguimos perceber. Viver numa sociedade em que mil milhões de dólares lhe dão a vida eterna, embora dentro do computador

Supondo que a tecnologia estava desenvolvida, faria upload da sua mente para um computador?
Está a perguntar-me se preferia morrer ou fazer upload?

O livro fala da hipótese de fazer upload, criando uma cópia, e mantendo o original.
A pergunta interessante é: tem 70 anos, foi-lhe diagnosticado um cancro fatal. Tem duas escolhas: não faz nada ou faz upload? Se tivesse dinheiro, fazia o upload. Mas atenção que acho que esta tecnologia não vai existir para ninguém que esteja vivo agora. A questão do upload da mente é muito farfetched [rebuscada]. Mas pode vir a existir uma coisa parecida. Imagine que tenho uma criatura que tem inteligência artificial. Neste caso, garanto que pode ser duplicada. Mesmo que a questão da cópia não se coloque com entidades físicas, acho que se vai colocar com entidades virtuais.

A dada altura, fala de eventualmente reconhecer direitos às máquinas. É uma discussão que devemos ter? Que ideias sobre inteligência artificial devíamos estar a discutir agora? Está em voga a questão ética da programação, nomeadamente por causa dos carros autónomos.
A questão da identidade dos agentes de inteligência artificial é para daqui a muitas dezenas de anos. Reconhecemos direitos aos humanos, alguns direitos aos animais (e mais a alguns animais do que a outros) e reconhecemos zero direitos às máquinas. À medida que haja sistemas que venham a incorporar mais conhecimento e mais raciocínio, não me parece uma discussão disparatada reconhecer que há ali um conjunto mínimo de direitos — que eu não sei quais são.

A outra questão é a da responsabilidade, que se põe com os carros autónomos. Um carro que aprendeu e se autoprogramou com a experiência pode virar à direita e atropelar uma criança, ou virar à esquerda e atropelar uma idosa. Quando atropela um deles, as pessoas vão perguntar-se: “Quem decidiu isto?” Foi o programador que fez o código original? Foi a pessoa que projectou o sistema de inteligência artificial? Foi o próprio robô, que tomou uma decisão que não devia ter tomado e deve ser descontinuado?

Os carros autónomos são um daqueles casos em que a tecnologia está a andar mais depressa do que o resto? Essas questões não estão resolvidas.
A tecnologia está a andar mais depressa do que a sociedade está a conseguir discutir. Há uma fronteira muito difusa sobre onde está a responsabilidade: no fabricante, no dono do veículo ou no próprio sistema.

O livro aborda a questão da singularidade. Há quem argumente que este tema desvia a discussão em torno da inteligência artificial para algo completamente improvável, em vez de a centrar em questões úteis.
Não sou um grande crente na singularidade. Mas a verdade é que, com ou sem ela, o resultado final [da evolução tecnológica] é uma sociedade que é basicamente irreconhecível por alguém que tenha vivido 100 ou 200 anos antes. 

No livro também diz que a evolução pode estar a desacelerar…
É uma teoria. Há pessoas que dizem que está a desacelerar. Há duas opções. Ou se mantém a aceleração da tecnologia e, singularidade ou não, não fazemos a menor ideia de como vai ser o mundo daqui a 100 anos. Ou então vivemos numa idade dourada da evolução tecnológica, onde as coisas estão a acontecer muito rapidamente, mas já esgotámos muita da evolução possível e daqui a 50 anos vamos ter uns telemóveis um bocadinho melhores e uns carros autónomos. Não acredito nisto.

Porquê?
Ainda há muito por explorar na computação. Estamos no princípio. Tão no princípio que as civilizações com mais 500 ou mais 1000 anos do que a nossa são provavelmente tão diferentes que nem as conseguimos compreender. Em última análise, pode haver muitas civilizações inteligentes por aí, mas que já passaram por esta fase e agora estão numa fase em que são tão incompreensíveis para nós como nós somos para as formigas. Mas há várias pessoas que têm a teoria oposta, de que estamos na fase final de uma aceleração tecnológica muito rápida que agora vai acalmar.

Esta entrevista encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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