Last Day of June não quer deixar o amor morrer

Quem conseguir perseverar pela sensação de repetição que se vai instalando é recompensado por com uma história – e um final – que emociona sem amarras.

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O entretenimento de ênfase no amor pode ser uma proposta de fóssil em fóssil. É ardilosa a tarefa de desencadear o pensamento acima do tradicional, ou melhor, é engenhoso o processo de fazer sentir e emocionar além de tudo o que já passou à frente dos nossos olhos. Tão apetecível como propício ao banal, é um tema que requer talento para fazer sentir.

Last Day of June declara-se sem grandes reservas ao jogador. É um videojogo que passa bem sem aditivos, renunciando à tentação de adornar o quão puro é o sentimento. O resultado final é uma história que nos faz apaixonar pelos apaixonados, que nos deixa o coração mais exercitado do que quando o começámos a jogar.

Os dois protagonistas são June e Carl, duas pessoas que se amam incondicionalmente. O jogo começa com o casal num pontão de madeira junto à água: estão ali porque ali podem estar um com o outro. Na pele de Carl podemos colocar uma flor na orelha de June, acto que demonstra intenções, demonstra o quão pura é a relação.

A beleza do dia dá lugar a uma tempestade, obriga-nos a regressar a casa. Há um acidente automóvel grave, disruptivo: Carl fica parcialmente paralisado e é obrigado a usar uma cadeira de rodas. June morre. Há a perda, a forma como condiciona a existência tão devota de outra pessoa. O amor ilustrado como um feliz puzzle de duas peças continua a sê-lo com o profundo vazio sentido por ser agora incompleto.

O jogo mostra o seu processo principal quando dá a Carl e, consequentemente ao jogador, anos volvidos, a possibilidade de reviver os eventos que levaram à morte do amor da sua vida. Esta repetição não serve para um perpétuo ciclo infernal de dor, mas sim para conceber a oportunidade de os tentar alterar, salvando assim a sua amada de uma morte que tenta a todo o custo deixar de ser certa.

Para o fazer, Last Day of June recorre à pacata vila onde decorre. Ou seja, estes processos passam pelos vizinhos que tiveram uma acção que poderá ter afectado o desfecho. Na prática, o videojogo aposta na sua própria versão do efeito borboleta para salvar June, deixando-nos manipular pequenas partes que contribuíram para a trágica conclusão.

Uma criança que brinca com uma bola e com um cão, um caçador, a amiga de June que faz uma visita à sua casa, um idoso com um presente nas mãos e a chave para o cemitério. Carl tem a habilidade de tocar no quadro que está na sua casa e reviver esses momentos, com os jogadores a terem que analisar a pequena vila – igual para todas as personagens – enquanto descobrem o que podem alterar.

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Por exemplo, a primeira personagem precisa de uma corda para criar um papagaio e assim deixar de brincar com a bola que rola para a estrada e provoca o acidente. A personagem seguinte precisa de uma corda para amarrar as malas ao carro e assim evitar que a bagagem se solte e provoque o acidente. Ao jogar a segunda vez descobrimos que a corda está a ser usada no papagaio. São puzzles de observação e lógica: descobrir como manobrar as vinhetas de forma diferente, conseguindo o mesmo objectivo.

A obra nunca é demasiado complexa, ou seja, faz sempre o mínimo esforço para nos dar pistas visuais que permitam a ignição do raciocínio. Todavia, devido à sua natureza de experimentação – com o passar do tempo temos que equilibrar as diferentes situações –, tem na execução a sua principal falha. Tentar a solução três, cinco, dez vezes faz parte das regras, com a questão a ser não podermos saltar algumas cenas de vídeo e a obrigação de jogar novamente certos trechos.

Isto pode parecer inofensivo, mas resulta num exercício frustrante devido ao número de vezes que acontece. O processo básico da jogabilidade não é exigente, pois temos apenas que guiar a personagem pelo cenário, fazendo a já mencionada exploração – há também vários coleccionáveis opcionais para serem recolhidos – à procura do que alterar na linha temporal da realidade que estamos a jogar.

Isto agrava-se conforme a vossa paciência, claro, mas também consoante o número de vezes que precisarem para concluir um puzzle. Se a dedução acabar por levar a uma linha de pensamento ao lado do que o jogo requer, emerge o cansaço de ver a mesma situação novamente.

E resolver isto era simples. Na primeira temporada de Life is Strange, o processo principal da jogabilidade é a possibilidade de rebobinar o tempo para resolver questões impostas pela obra. Mas depois de vermos a cena pela primeira vez, sempre que repetimos a porção à procura da melhor saída, a produtora deixa-nos simplesmente saltar a parte que já vimos. É opcional: quem quiser rever o diálogo de Max e companhia pode fazê-lo, mas quem não quiser, pode simplesmente continuar o seu percurso até à próxima cena que é nova na narrativa.

Em Last Day of June isso não acontece. É uma jogabilidade desconjunta: em parte deixa o arco narrativo brilhar, por outro acaba por tornar a experiência muito mais repetitiva do que inicialmente aparentava graças a um pormenor que poderia facilmente ter sido sanado. No seu cômputo geral, a obra leva-nos a um ciclo de experimentação, pelo que devia ser uma parte sem arestas, que incitasse o jogador a arriscar a execução do seu discernimento.

E quem perseverar é recompensado com um final que aperta o coração. Voltar atrás no tempo para tentar alterar os desígnios infelizes da vida colocou-me imediatamente a questão: será que o jogo vai provar no final que há situações que não podem ou devem ser alteradas? Obviamente não vou estragar o clímax da obra, mas posso dizer que não é esse o ponto que a Ovosonico, produtora que já tinha assinado Murasaki Baby na PlayStation Vita, quer sublinhar.

E reparem: é uma história que é contada sem recorrer a palavras. As personagens não falam num idioma que seja compreendido pelo humano. O estilo gráfico foi escolhido de forma certeira: as personagens não têm rosto, mas o estilo de cores garridas, a forma com as personagens estão em cena, assim como a representação da vila, dão-lhe carisma e permitem o contraste das emoções.

A história foi inspirada pela música Drive Home de Steven Wilson, músico que ajudou a afirmação dos Porcupine Tree. Basta ver o vídeo de Jess Cope para se perceber o cerne do jogo, mas há o mérito de Massimo Guarini, director criativo da produtora, em conseguir pegar no conceito e executá-lo num estilo que é mais do que um videoclip alongado.

E é o próprio Steven Wilson que é responsável pela excelente banda sonora do jogo. Pode-se ou não gostar do estilo musical, mas a verdade é que as músicas emocionais enquadram-se perfeitamente na mensagem do jogo, além de obviamente serem um excelente complemento para as cenas mais delicadas. Não são temas que tomam conta das rédeas, mas sim que sabem o seu lugar – dão força às variadas cenas pesadas, mas dão também impulso às cenas de alegria genuína.

Last Day of June prova novamente que os videojogos são uma plataforma para histórias belas, reveladoras, capazes de nos emocionar como qualquer outro meio de entretenimento. O seu calcanhar de Aquiles é claramente ter caído na armadilha da repetição que se vai agravando com o passar do tempo. É uma obra curta, podendo ser terminada numa tarde. Talvez a obrigatoriedade de vermos as mesmas cenas e de jogarmos novamente alguns trechos seja a forma da produtora aumentar artificialmente a longevidade da obra. Quem conseguir lidar com a execução aquém será recompensado com uma experiência que celebra o amor, a perda e o desespero de uma forma genuína.

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