Hellblade é uma aventura agonizante e importante

A nova obra da produtora de Heavenly Sword e DmC: Devil May Cry prova que é possível um videojogo abordar a Saúde Mental de uma forma respeitadora.

Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria

Hellblade: Senua’s Sacrifice é um videojogo com algo a dizer, com muito a fazer sentir. O primeiro aspecto que nos faz concentrar a atenção total no ecrã é o seu grafismo, mas mesmo que inegavelmente belo, não é o mais importante da obra. Não, o mais importante do jogo da Ninja Theory é colocar abertamente em cima da mesa a Saúde Mental. E o melhor é que consegue fazê-lo de forma respeitadora.

A produtora inglesa esforçou-se para o conseguir. Não só o videojogo é acompanhado por um documentário com aproximadamente 25 minutos que ajuda a compreender melhor esses esforços, como logo no início da obra somos avisados que há retratos de psicose durante o jogo e que os produtores contaram com ajuda externa na elaboração dessas representações, como por exemplo Paul Fletcher, professor de neurociência na Universidade de Cambridge.

Isto faz com que o jogo não seja um deambular de ideias pré-concebidas em mais uma representação esbatida de alguém com problemas graves de saúde. Senua, a protagonista da aventura, tem uma personalidade profunda, especialmente porque é uma identidade que é revelada sem pressas em detrimento de outros processos de jogo, tendo tempo para maturar além do facilitismo da catalogação rasa.

É uma obra de compaixão sem pena. Ao longo destas horas vamos assistindo ao que aflige e perturba e angustia a heroína, vamos sendo sensibilizados para esta dor que debilita sem fazer os olhos transeuntes repararem à primeira passagem. Os sintomas de Senua, como as alucinações e as vozes que não lhe dão descanso, afirmam Hellblade como um título que não é fácil de jogar, mas importante, que não alinha em hits ligeiros de Verão porque ninguém disse que os videojogos não podiam alargar o espectro de sensações que provocam.

Ao fugir ao cliché, a Ninja Theory podia cair na tentação da descrição clínica esquecendo que estava a criar um videojogo. Contudo, graças a uma abordagem com tacto, o tema está integrado no arco narrativo. Senua é uma guerreira celta que parte numa viagem de superação e de dúvida, numa viagem alimentada pela alma de Dillion, o grande amor da sua vida.

Com o desenrolar narrativo chegam-nos também vislumbres de uma Senua mais jovem que nos revelam os traumas e os abusos que não a derrubaram, mas que tiveram o seu custo. Misturando elementos mitológicos com elementos familiares, quando mostra a relação com os seus pais, o argumento do jogo entrelaça folclore com o aspecto mais sério, com o resultado conseguido a dever-se também à imaculada costura dos temas.

As vozes são espessas, demoram-se nos tímpanos. Dizem-lhe para não avançar e para avançar; dizem-lhe que não vão conseguir e que vai conseguir; contam-lhe palavras que incitam a dúvida, que a fragilizam sem a fazer cair definitivamente. Riem entre a aflição. O jogador ouve-as tão bem como Senua, tão bem que começa a duvidar se não estão falar connosco; tão claramente que começamos a sentir além do jogo, transpondo-as para a nossa própria viagem.

Para percorrer esta história há também uma jogabilidade que é apresentada em moldes mais tradicionais. Há secções de combate, de exploração e de resolução de puzzles. Os trechos que nos fazem medir forças contra os adversários assentam sobretudo no domínio dos processos de ataque e de defesa, temporizando bem a forma como a guerreira ergue a sua espada para um contra-ataque mais poderoso.

Não é demasiado complexo, ou seja, não terão pela frente um colosso de dificuldade como Dark Souls, até porque o grau de dificuldade pode ser ajustado. Pelo caminho há também confrontos com bosses, criaturas mais poderosas que os inimigos corriqueiros, que nos incitam a executar aquilo que vamos aprendendo e dominando.

Há um processo, porém, que se destaca. Hellblade: Senua’s Sacrifice tem um sistema designado como Rot (podridão na localização em Português) que nos avisa logo nos momentos iniciais que, caso morram demasiadas vezes, o jogo apaga todo o progresso feito e terão que começar a aventura de novo. A manifestação visível destes sintomas é o consumo do braço de Senua por uma mancha negra, indicando a deterioração da sua mente consumida pela escuridão.

Se parece ser uma medida extrema - imaginem estar na sétima ou oitava hora da aventura e perderem tudo - é porque é. Na verdade, pouco depois do jogo ter sido publicado acabou por ser constatado que era afinal uma espécie de bluff da produtora. Porém, é inegável que se sente um ansiedade e um desassossego acrescido sempre que se morre. Há o regressar ao último checkpoint, o que é banal, mas há também uma pequena animação que mostra a sombra escura a afectar a personagem e, consequentemente, o jogador. Foi um passo conseguido na tentativa de fazer o jogador sentir um ínfima parte do tormento de Senua.

Os puzzles, um pouco como em Uncharted, servem para diversificar as mecânicas sem nunca se afirmarem como algo predominante. Sem grandes dificuldades, tal como é explicado no já mencionado documentário, ajudam a representar visualmente a forma como alguns pacientes vêem padrões, símbolos, e fazem a sua associação mentalmente. Na prática procuramos desenhadas no cenário formas que correspondem ao que é indicado pelo próprio jogo.

Há também uma mecânica que adensa a sua complexidade, com portões e máscaras que alteram a dimensão visual onde a acção decorre, revelando por exemplo um caminho que não estava originalmente lá ou abrindo um portão que no plano original estava fechado. O jogo mistura estas mecânicas e vai aumentando o tempo que demoram a ser resolvidos, mas graças a várias dicas visuais são enigmas que nunca se tornam desmoralizadores.

São puzzles de que ninguém se vai lembrar daqui a um mês, sim, mas o meu maior problema com o jogo foi a forma como equilibra as diferentes facetas da sua jogabilidade. Logo nas primeiras horas tive o momento mais frustrante: não pela complexidade, mas sim pela abertura da área em questão, fazendo-me perder tempo desnecessariamente. Na segunda metade da obra, contudo, a produtora parece ter revisto essa fórmula, mostrando situações mais condensadas

Infelizmente, é também na segunda parte, e particularmente na recta final, que a jogabilidade se apoia em demasia no combate, denotando a tal falta de equilíbrio e compartimentando sem necessidade a obra. Não afecta a experiência de uma forma irreparável, mas não era preciso fazer-nos participar em tantas batalhas só para aumentar a dificuldade a mando de estarmos próximos do final da aventura.

Comecei este texto mencionando brevemente o departamento gráfico. Recorrendo ao Unreal Engine da Epic, é uma obra que sabe como usar os gráficos para impôr a sua mensagem. É belo, sim, mas não é alegre. Os cenários fazem sentir quase sempre as emoções de Senua, fazendo-nos passar por trechos pensados para desassorear, com um deles a colocar-nos mesmo num local onde vemos um palmo à nossa frente.

Munida de incontáveis pormenores, que vão desde o balançar das chamas às texturas de elevada resolução e ao espelhar da água, é uma beleza com carisma. Há um momento em que Hellblade mostra uma paisagem alegre, com luz, flores, cheia de vida. A seguir volta a escuridão e sente-se o choque, sente-se o quão estamos mergulhados nesta espiral visual.

Já a sonoplastia brilha pela engenharia sonora. É recomendado que o experimentem com auscultadores e na prática é algo que resulta. Graças a um som binaural 3D, a forma como as vozes foram gravadas permite um alcance incrível - não só notando-se claramente a direcção apontada ao ouvido esquerdo e ao direito, seja o segredar ou o grito, foi tudo pensado para nos colocar no centro, para ajudar a dar-lhes espessura.

Hellblade vive muito de Senua e Senua vive muitíssimo de Melina Juergens, que assina uma performance notável. Melina é editora de vídeo na produtora que começou as capturas de movimento de forma temporária e acabou por assinar uma prestação que domina o ecrã. Há várias camadas de sofrimento no jogo, o que obviamente leva a várias camadas de expressão. Melina acerta destacadamente em todas, mas é na dor, no grito, na expressão atormentada no rosto que está a prova irrefutável de um excelente trabalho. Espero que haja uma continuação da série e, caso não haja, espero sinceramente que Melina Juergens continue o seu trabalho além da edição de vídeo. Curiosamente, é Juergens que edita o documentário que acompanha o jogo.

Terminado Hellblade: Senua’s Sacrifice, é claro que estamos perante um videojogo sólido e importante. A viagem de Senua - e pela mente de Senua - é fascinante, com o trabalho, o risco, a pesquisa e a excelente decisão de procurar conselhos junto de quem realmente percebe do tema dá os seus frutos. E ficar a pensar no que a heroína experienciou mesmo ou imaginou é sinal que o jogo ganhou; ficar com a sensação que arranjou uma forma de tratar a Saúde Mental de forma digna além do entretenimento banal é sinal que a obra é um triunfo por mérito próprio.

Produtora: Ninja Theory

Plataformas: PC, PlayStation 4

Sugerir correcção
Comentar