E se os gigantes da tecnologia fossem tratados como países?

A Dinamarca é o primeiro país a nomear um embaixador para as grandes empresas tecnológicas como a Google ou o Facebook.

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Para a Dinamarca, uma empresa como a Apple pode ser alvo do mesmo tratamento diplomático que a União Europeia. REUTERS/Dado Ruvic

Fazem avultados investimentos que podem revolucionar cidades e regiões em declínio, mas as suas opções de política fiscal também podem custar milhares de milhões aos cofres públicos. Travam braços-de-ferro com a justiça em nome da privacidade dos seus utilizadores, mas também a sacrificam pelo acesso a mercados promissores como a China. Dominam plataformas onde os cidadãos se informam e onde nascem movimentos políticos capazes de abalar a ordem internacional, mas que também são incontroláveis fontes de desinformação e de combustível para fenómenos populistas e extremistas. 

Se as decisões tomadas por gigantes da tecnologia como a Google, o Facebook ou a Apple têm cada vez mais impacto na vida de nações soberanas, devem estas empresas sentar-se à mesa dos grandes e serem tratadas como países? A Dinamarca pensa que sim. Em Janeiro, Copenhaga tornou-se na primeira capital do mundo a anunciar que iria nomear um embaixador para conduzir as relações entre o Estado dinamarquês e as multinacionais tecnológicas.

As grandes empresas “afectam tanto a Dinamarca como países inteiros”, disse ao jornal Politiken o ministro dos Negócios Estrangeiros, Anders Samuelsen. “Estas empresas tornaram-se numa nova espécie de países e temos de reagir a isso”, acrescentou.

O embaixador, cujo nome ainda não foi anunciado, terá o mesmo estatuto que qualquer representante dinamarquês: um passaporte diplomático e toda a máquina do MNE de Copenhaga ao seu dispor. Só não terá uma verdadeira embaixada, pelo que o especialista em inovação diplomática Martin Marcussen disse ao Politiken que o cargo é sobretudo “simbólico”.

“Será como o embaixador para o Árctico. Terá um gabinete que se resumirá na prática ao próprio embaixador. Vai ter aquele título e vai poder viajar, mas é só uma pessoa, por isso não esperem nada de grandioso”, disse Marcussen.

Com o cargo ainda a ser desenhado pelo Governo nórdico de centro-direita, discute-se o campo de acção do futuro embaixador. Poderá agir como uma espécie de lobista, captando investimento das grandes empresas – o Facebook está a construir um centro de dados de 55.000 metros quadrados em Odense. Por outro lado, seria um elo de ligação entre Copenhaga e os gigantes tecnológicos na resolução de diferendos como o que recentemente opôs a Apple a Washington, quando a empresa recusou ceder dados encriptados do iPhone do presumível autor do atentado de San Bernardino à justiça norte-americana.

Se a importância e influência crescentes destas empresas explica a necessidade de uma nova abordagem por parte dos governos, a decisão de Copenhaga de criar um cargo diplomático inédito não é recebida de forma inteiramente consensual. Num artigo de opinião na Forbes, a jornalista de tecnologia Emma Woollacott defende que a nomeação de um embaixador é “uma ideia terrível” que “estabelece um precedente preocupante”.

“As empresas não são países. Ao nomear um embaixador e ao colocar explicitamente as duas coisas no mesmo patamar [o ministro] Samuelsen sugere que o que conta é o dinheiro. Se tiveres dinheiro suficiente, o Governo não só te dá atenção especial como te confere um estatuto político singular”, escreve Woollacott.

O poder financeiro explica apenas parcialmente a decisão de Copenhaga, porque na verdade existem muitas empresas financeiramente mais poderosas do que a Google ou a Microsoft – por mais ricos que sejam os seus líderes e fundadores.

Olhemos para um estudo de 2016 da ONG Global Justice Now, citado pelo Fórum Económico Mundial, que listou as cem maiores entidades económicas mundiais por volume de receitas. Destas, 69 eram empresas. Apenas 31 eram nações soberanas. Se a lista das dez primeiras continuava a ser dominada por países – os Estados Unidos em primeiro, seguidos da China e da Alemanha, com a cadeia de supermercados Walmart a aparecer no décimo lugar – a Apple aparecia na 25.ª posição e a Alphabet (a designação legal do império Google) na 132.ª. Portugal estaria no 97.º lugar, atrás da Microsoft (92.º). Mas à frente dos gigantes tecnológicos continuam a estar empresas ligadas ao petróleo, ao sector automóvel, à banca e à distribuição.

O poder económico dos estados é cada vez mais contestado por grandes multinacionais, mas não apenas pelas que produzem smartphones e controlam redes sociais. No mundo pós-Trump e pós-Primavera Árabe, Copenhaga reconhece sobretudo a extraordinária influência mediática e política dos gigantes tecnológicos – só o Facebook conta neste momento com 1,8 mil milhões de utilizadores activos mensais. De resto, em 2016, a revista Foreign Policy nomeou Eric Schmidt, presidente da Google, como diplomata do ano. Em breve, poderá falar de igual para igual com um representante da Dinamarca. 

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