Apanhar sol num rosto diferente

Ficarão certamente as personagens e o grafismo de Firewatch, obra que estreia a Campo Santo de forma sólida e apenas traída por um final aquém e alguns problemas técnicos.

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Tal como Thoreau, Firewatch leva-nos de arrasto para um mundo fora do mundo. Rodear-se de bosque, natureza, deixar um bilhete à vida: “, volto já” — à esquerda da vírgula, o de cada um. No jogo de estreia da produtora com nome de livro de Sebald, Campo Santo, estas personagens escapam e encontram-se, e ficamos a pensar se isto de viver não seria melhor se durante uma temporada apanhássemos sol num rosto diferente.

Lidamos então com o escape perguntando se estão a preparar a queda ou a tentar fugir-lhe. Conhecemos Henry, o protagonista jogável, durante um prólogo desprovido de arranjos gráficos. Como se estivéssemos defronte de um livro interactivo, Firewatch ergue pela primeira vez os punhos da sua escrita e avidamente disfere ganchos em escolhas que nos permitem definir quem queremos ser, quem fomos. Lemos o contexto e erigimos uma personalidade no momento como se o jogo captasse a nossa como numa cabine fotográfica.

São instantâneos que nos revelam que Henry conheceu uma rapariga num bar, apaixonaram-se para o resto das suas vidas e as vidas decidiram que, afinal, aquilo era apenas um esboço. E do desabamento o protagonista emerge aceitando um emprego para longe de tudo: Henry aceita ser guarda na Floresta Nacional de Shoshone, Wyoming. Bem-vindos a Firewatch.

Sem nunca esquecer o seu passado, mas podendo tentar ocultá-lo, a obra decorre rodeada pela natureza, levando-nos por um mistério que vai alimentando a relação de Henry com Delilah, guarda-florestal e supervisora que lhe vai mostrando os princípios do novo cargo, guiando-o pelas tarefas corriqueiras, servindo como parceira na paranóia.

O parque é ilustrado com a ilusão de ser enorme, tanto até se perder de vista quando estamos na nossa torre de controlo. Há uma sensação inquietante e crescente como um fogo que a dupla de protagonistas não está sozinha. Pistas mais ou menos evidentes, suspeitas, tudo faz parte deste circo de emoções, sendo que a principal é: por que motivo alguém quererá aproximar-se tanto de Henry e Delilah? Ancorado, o jogador mal pode esperar para saber, afinal, o que está atrás da cortina. E Firewatch sabe bem o sentimento, nutre-o, adiciona e subtrai dados, alguns irrefutáveis, outros lançados para que a confusão não perca vigor.

São duas personagens que se conhecem aquando do jogador, e é esse um dos grandes méritos do jogo: enquanto Henry, estamos sozinhos nas nossas explorações por Shoshone; contudo, graças a um par de rádios, estamos quase sempre em contacto com Delilah. E, tal como com The Walking Dead ou Oxenfree, temos quase sempre várias opções de diálogo que moldam o avançar da conversa e da relação.

É um método que poderá parecer rudimentar, mas que acaba por se revelar eficaz. Sean Vanaman é responsável pela escrita de Firewatch, tendo sido um dos argumentistas do excelente e já mencionado The Walking Dead quando fazia parte da Telltale. E é Vanaman que assina um dos pontos mais fortes do título. Desde o início, são personagens com profundidade, vidas que importam e, sobretudo, fundadores de uma relação com uma química rara nos videojogos.

Sempre que falam ao rádio, sente-se a sua mutação aos desenvolvimentos, alimentando-se um do outro, tanto no aspecto mais dramático do argumento como nos laivos de humor que conseguem o raro feito de serem cómicos. É graças à excelsa qualidade das linhas de diálogo que ficamos à espera de mais, pacientemente à espera de ver onde é que o jogo nos quer levar.

Não é um impacto de um acontecimento só, mas sim o espelhar da naturalidade de duas pessoas de carne e osso. Vanaman não caiu no erro fácil e comum de querer dois protagonistas que marcassem pelo exagero, optando por duas pessoas com falhas e valências, com angústias intercaladas dos seus passados com os seus presentes. Para quem joga Firewatch, é claro que esta dupla não chegou aqui porque os seus quotidianos eram canteiros floridos — portanto, o Wyoming é uma porta secreta nas suas muralhas.

Como Firewatch tem apenas quatro ou cinco horas de longevidade, não há grande oportunidade para deambulações banais, mas mesmo quando é esse o caso, seja colocar a dupla a falar sobre as condições da casa de banho primitiva, as capas de revistas para adolescentes, quando Delilah insiste em desenhar Henry à distância, ou quando Henry tem preconceitos em falar sobre a roupa interior que encontrou a caminho do lago, tudo é feito ao serviço da edificação de carácter, mesmo que o jogador não se aperceba na altura.

Sem grande surpresa, o jogo da Campo Santo envereda por caminhos dramáticos e sombrios, seja por remembrança dos seus passados, seja com os desenvolvimentos activos. Como são pessoas credíveis, é fácil ficarmos alguns minutos sem pestanejar. Tudo isto também se deve ao excelente trabalho de vocalização: Rich Sommer, actor conhecido de Mad Men, empresta a sua voz para caracterizar Henry; Cissy Jones, que já tinha trabalhado em The Walking Dead da Telltale, é Delilah. Infalíveis no espectro emocional já descrito, torna-se impossível imaginar os protagonistas com outro tom, outra voz, outra identidade.

Não sendo propriamente por culpa da escrita, Firewatch vacila na hora de terminar. Sem um final propriamente terrível, o problema é não conseguir estar à altura das horas em que nos preparamos para ele, ou seja, a relação com as personagens acaba de forma um pouco inócua. Não é o cliché que o seu impacto é tamanho que torna difícil a despedida, mas sim o facto de se sentir o tapete puxado debaixo dos nossos pés, sublinhando a pergunta se é apenas isto.

Percebe-se a tentativa de querer fazer com que aquela dupla siga a sua vida e que o jogador retome a sua, regressando também ele de um escape. Contudo, na prática, é algo que trai o investimento emocional. São fugazes meses de Verão, um interlúdio a quem eram. Talvez fosse possível enveredar pelo mesmo, lembrando o final de Os Sopranos, mas não como é apresentado.

Em termos de jogabilidade, além da mecânica de escolha de diálogos e de comunicação via rádio, o jogador é convidado a explorar o parque, subindo e descendo o terreno ao ritmo das necessidades narrativas. Não há uma exigência testadora das habilidades de cada um, sendo que a maior dificuldade é lidar com a pressão instaurada pela sensação de que não estamos sós, nunca chegando a ser o videojogo de terror que muitos pensaram.

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Henry tem um mapa e uma bússola que lhe permitem orientar-se pelo cenário, todavia será muito difícil alguém perder-se, pois não só o cenário explorável não é tão grande quanto o jogo leva a pensar em teoria, como há sempre o controlo da produtora, tanto com grandes referências visuais, como a possibilidade de Delilah nos explicar o que temos que fazer. E se, mesmo assim, alguém tiver dificuldade, o mapa vai sendo actualizado com novas informações que aniquilam quaisquer dúvidas, sendo que a imersão é beneficiada se dissermos ao jogo que não queremos que ele nos mostre a nossa posição no mapa.

Firewatch apresenta-se pejado de pormenores que deixam clara a sensação de que tudo foi pensado ao milímetro. E cada um desses milímetros beneficia francamente com o envolvimento de Olly Moss, reconhecido artista britânico, no processo. Sejam as várias caixas que podemos abrir introduzindo um código que parece brincar com a complexidade dessa mecânica presente noutros videojogos — o código é quase sempre o mesmo e Delilah faz questão de o mencionar no início da aventura. Mesmo quando é alterado uma vez devido a complicações narrativas, a alternativa é novamente uma mostra do sentido de humor transversal à obra.

E, olhando para o quadro geral que o jogo pinta, o grafismo é outro dos pontos a reter da obra. Jane Ng é um dos rostos mais visíveis de um trabalho que aposta no contraste das cores quentes com as frias, transparecendo as várias faces de uma floresta nacional ao longo destes meses. Não é um grafismo que aposta no realismo, ou seja, a conjugação destas cores forma texturas que lhe dão uma entidade visual única e refrescante, facilmente capaz de nos fazer parar para contemplação e captar a sensação num instantâneo com a câmara que o jogo fornece em determinada altura.

Nas suas viagens pedonais, Henry é levado a penhascos, a vales, à mistura de cursos de água, de áreas queimadas, de uma caverna: isto assegura variedade, seja olhando à distância, seja constatando o que está cinco palmos à nossa frente. Mesmo no posto de vigia, por exemplo, esta direcção, aliada ao talento de Moss, faz com que haja uma sensação de credibilidade. Tal como as personagens, somos confrontados com a continuidade destes cenários: antes, durante, depois da nossa estadia.

Infelizmente, tudo isto é assombrado por uma falência técnica. Firewatch foi analisado numa PlayStation 4, plataforma que parece mal optimizada pela produtora. Praticamente do início ao final, a framerate é inconstante, sendo pejada por frequentes abrandamentos que não beneficiam nada a imersão. A Campo Santo diz estar a trabalhar numa actualização que chegará brevemente; porém, tal como foi analisado e chegou ao mercado, é pena que anos de trabalho num visual tão cuidado sejam traídos por estes solavancos técnicos.

Mesmo contabilizando tudo em que falha, Firewatch não é um mau videojogo. É uma viagem comandada pelas escolhas que o jogador faz em nome de um protagonista carismático, com um passado abrasador, passando pelo presente o melhor que sabe. Emocional e deslumbrante, é um primeiro passo de uma equipa que parece ter encontrado um equilíbrio de talento que fez e fará obras merecedoras de atenção. Antes do final e entre problemas técnicos, há uma brisa que assobia pelo cenário e Henry tem o seu fogo próprio enquanto contempla o laranja que o sol pintou em Wyoming.

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