A protecção de dados pessoais e o desafio da modernização electrónica

O futuro passará pela criação de uma caixa postal digital segura e certificada para cada cidadão.

A utilização de tecnologias de informação e comunicação (TICs) na organização, processos, e rotinas da administração pública revolucionou o conceito e a prestação de serviços públicos no século XXI. Os ganhos em eficácia e eficiência, e a agilização do acesso pelos utilizadores são extraordinários. Quem não se lembra das filas à porta dos serviços de finanças antes da desmaterialização da entrega de declarações de impostos por via electrónica? A autonomização deste processo reduziu milhões de quilos de papel, milhões de horas de espera pelos utentes, milhões de horas de processamentos por funcionários, e milhões de euros de despesa pelo Estado. Mais ainda, libertou o cidadão da tirania das horas de expediente.

Se alguma dúvida ainda persistisse sobre o impacto dos serviços públicos de geração digital para o desenvolvimento económico e a competitividade, bastaria ler as famosas declarações de Malmö, em 2009, as recomendações publicadas pela OCDE em 2014, e os planos estratégicos dos Estados Membros da União Europeia na área da administração pública electrónica.

Apesar da importância do tema e de ter reunido uma panóplia de especialistas mundiais em administração pública electrónica, a conferência sobre “governo electrónico” IFIP/EGOV-ePART ( http://www.egov-conference.org/egov-2016 ), que decorreu recentemente na Universidade do Minho, passou despercebida nos meios de comunicação social. Os estudos apresentados tornaram evidente o intenso trabalho desenvolvido a nível internacional para encontrar resposta a desafios que permanecem mesmo em países com elevado índice de desenvolvimento em serviços públicos electrónicos, nomeadamente países escandinavos e a Estónia. Afinal, como ficou bem visível nos debates, não somos o único país que enfrenta barreiras na transferência eficaz de informação entre instituições públicas, de forma a permitir a sua reutilização.

Um exemplo prático: se o leitor tiver recentemente solicitado 2ª via da sua carta de condução, por extravio, numa Loja de Cidadão, terá verificado que o documento que lhe foi entregue no seguimento do pedido não é válido como guia que lhe permita conduzir até receber a nova carta. O pedido de 2ª via terá sido aceite e processado na Loja do Cidadão mas, para obter a referida guia, seria necessária uma outra deslocação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes. Isto acontece porque a Loja do Cidadão não tem acesso aos dados disponíveis no sistema do IMT que seriam necessários para confirmar que o requerente não está sujeito a qualquer tipo de inibição de condução. Problemas semelhantes de “interoperabilidade” colocam-se também na troca de informação entre Estados, nomeadamente em situações de crise internacional que podem ter impacto dramático para a saúde e economia, como se verificou no crash financeiro de 2008, nas potenciais pandemias de Ebola e gripe A, e nas recentes ameaças à segurança na Europa, por actos de terrorismo.

O que se espera num futuro próximo, no processo de evolução da administração pública electrónica? O futuro passará pela criação de uma caixa postal digital segura e certificada para cada cidadão, através da qual toda a comunicação entre instituições públicas e o cidadão será processada. As trocas de papel entre Estado e cidadãos desaparecerão quase por completo, tal como podemos antever em algumas das medidas previstas no programa Simplex 2016: o cidadão terá acesso electrónico a todos os documentos que lhe dizem respeito, a sua assinaturas e fotografia estarão disponibilizadas electronicamente, o cidadão poderá monitorizar o acesso aos seus dados, e todos os documentos associados ao seu endereço digital poderão ser reutilizados após a primeira integração e certificação pelo sistema. Apesar dos seus inúmeros benefícios, a desmaterialização documental centralizada continuará a colocar enormes desafios ao Estado, no domínio da protecção de dados pessoais e na garantia da igualdade de acesso.

No século XXI, a info-exclusão ocupou um dos assentos da frente no combóio da desigualdade e não há sistema digital que substitua atendimento pessoal e cuidado, sempre que necessário e devido, sob pena de agravar a exclusão social da população mais vulnerável, nomeadamente idosos sem literacia informática, portadores de deficiência, e desempregados de longa duração. Esta é a dimensão social da modernização electrónica que nenhum governo poderá descurar.

Investigadora FCT em Políticas Públicas, Nova Information Management School

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