Quando escravos e presidentes se cruzavam na Casa Branca

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Thomas Jefferson escreveu este contrato de venda de John Freeman ao Presidente Madison, permitindo que o escravo pudesse viver com a mulher que amava PAUL MORSE

Em 1804, um escravo teve a audácia de escrever ao Presidente. A história das relações raciais nos EUA continua a fascinar os historiadores. A começar pela Casa Branca. Texto Liza Mundy

Em meados de Abril de 1804, um escravo de nome John Freeman escreveu uma carta ao Presidente dos Estados Unidos da América. Freeman, que tecnicamente era propriedade de um médico do estado de Maryland, William Baker, tinha sido contratado para trabalhar para Thomas Jefferson, que o colocou ao seu serviço na Casa Branca, e para o acompanhar nas viagens à sua propriedade de Monticello, na Virgínia.

Agora, Freeman estava a escrever porque queria que o Presidente o comprasse a título definitivo. "Peço desculpa por o estar a incomodar com este tipo de coisa", começou, dizendo que se sentia obrigado a fazê-lo e justificando-se: "Fui tão louco que me comprometi com Melinda."

A carta constitui um extraordinário feito de persuasão, sentida mas também habilidosa. Freeman, prometendo servir fielmente Jefferson, também pergunta ao Presidente se ele poderá ser "tão generoso a ponto de ficar connosco [os dois]" - ou seja, que adquirisse uma escrava chamada Melinda Colbert. Nas suas viagens à Virgínia, Freeman tinha-se enamorado de Colbert, que pertencia à filha de Jefferson, Maria, e ao seu marido. Maria morreu nesse mês de Abril e os dois escravos temiam que Melinda fosse vendida para fora.

Esta carta conta-se entre muitos actos de engenho e iniciativa que levariam a que, anos depois, John Freeman fosse comprado não apenas por um Presidente dos Estados Unidos, mas por dois. Casaria com a sua amada Melinda, ganharia a sua liberdade e, não menos importante, compraria um pedaço de uma propriedade em Washington, na Rua K, entre as ruas 18 e 19. Aí, Freeman iria estabelecer um lar para ela e os filhos de ambos, tomando o seu lugar numa singular, e actualmente em grande parte esquecida, comunidade de residentes negros livres com ligações a presidentes dos Estados Unidos como Jefferson, James Madison e George Washington.

Nos anos seguintes, o bairro de Freeman tornou-se no lar de um espantoso número de escravos libertados que também haviam sido propriedade de presidentes. Em meados do século XIX, a comunidade incluía homens e mulheres que tinham iniciado as suas vidas com as maiores desvantagens que um ser humano pode ter, mas que, através de persistência e inteligência e esse clássico ingrediente de Washington - ligações influentes -, conseguiram melhorar as suas perspectivas de vida. Juntos iriam trabalhar, confraternizar e adquirir propriedades que em alguns casos permitiram aos seus descendentes gozar vidas bem mais fáceis do que as suas.

"Quem não gostaria de ter um terreno na Rua K?", pergunta Beth Taylor, académica e ex-directora pedagógica em Montpelier, a histórica propriedade de James Madison. Enquanto investigava os escravos de Madison, Taylor ficou fascinada por esta área, que já foi o lar daquilo a que chama "as primeiras famílias de cor" de Washington. As suas histórias de vida demonstram as ligações entre os negros norte-americanos no período entre a Revolução e a Guerra Civil, e lembram-nos de que alguns dos primeiros presidentes dos Estados Unidos efectivamente possuíam outros seres humanos.

"À medida que faço mais investigações sobre as redondezas, não ficaria nada surpreendida se descobrisse descendentes de escravos que trabalharam para Tyler, Polk, Taylor, Jackson", declara Beth Taylor. "Todos eles foram presidentes, que, como Jefferson e Madison, tiveram escravos a trabalhar para si na Casa Branca."

Nos primeiros tempos da União, explica, os presidentes precisavam de dez ou doze pessoas para tomarem conta da parte doméstica da Casa Branca. O pessoal era muitas vezes uma mistura de brancos, negros livres e escravos, alguns das suas próprias plantações, alguns comprados na cidade e alguns, como era o caso de Freeman, alugados a outros donos.

A segunda carta

A zona onde muitos dos antigos escravos da Casa Branca se instalaram é a Baixa - actualmente edifícios de escritórios, lojas de retalho e arquitectura empresarial irrelevante -, em traços largos definida pelas ruas K e M a leste e oeste, e as ruas 15 e 21 a norte e sul. Naquela altura, conta Taylor, seria essencialmente residencial, com estruturas modestas e moradias e estábulos em tijolo. Ficava perto do coração da cidade - Praça Lafayette, Avenida Pensilvânia, a Casa Branca - mas suficientemente afastada para ter preços razoáveis.

Freeman foi um dos primeiros a instalar-se aqui, mas só após anos de luta. Em 1804, Jefferson comprou-o efectivamente por 400 dólares, prometendo ao seu dono de Maryland que Freeman receberia a liberdade em 1815.

O Presidente recusou comprar Melinda Colbert, dizendo que já havia demasiados criados "ociosos" em Monticello, mas também: "Em Washington, prefiro criados brancos, que quando se comportam mal podem ser trocados." Ela manteve-se em Monticello, contratada como criada doméstica de um trabalhador livre aí residente. Apesar de os escravos legalmente não se poderem casar, consideravam-se marido e mulher, e começaram a ter filhos.

Freeman, um homem com grandes capacidades, foi descrito por uma testemunha como tendo cerca de 1,70 m, "aprumado e bem constituído", com uma "fisionomia muito agradável". Era muito bem considerado. "É óbvio que Jefferson lhe dava muito valor", afirma Cinder Stanton, historiadora-chefe em Monticello.

Mas em 1809 houve dois acontecimentos: Melinda já tinha obtido a sua liberdade, o que lhe permitiu mudar-se para Washington. Mas, por ironia do destino, o mandato de Jefferson enquanto Presidente estava a terminar e uma lei da Virgínia que determinava que escravos libertados deviam abandonar o estado até um ano após serem libertados significava que, para ela, poderia ser arriscado regressar a Monticello, tal como deveria acontecer com o seu marido. Havia apenas uma solução. "Senhor, peço desculpa se disser ou fizer algo que o aborreça", escreveu Freeman noutra carta para Jef-ferson. Nela dizia que estava disposto a ir para Monticello, mas fazia notar: "Serei obrigado a deixá-la e às crianças."

O resultado foi que Jefferson concordou em vender Freeman a James Madison, o Presidente seguinte. Para chegar a um preço de venda, fez contas ao que tinha pago por Freeman, calculou quanto tempo faltava para 1815 e chegou a um valor - 231 dólares e 81 cêntimos -, que Taylor considera "tão jeffersoniano na sua precisão matemática".

A vida de Freeman estava agora interligada com a de Paul Jennings, um rapaz de dez anos que tinha nascido escravo em Montpelier e que agora vinha para Washington com Madison; na Casa Branca, Freeman era como que um mentor para ele. Eram ambos lacaios, diz Taylor, o que significava que serviam na sala de jantar, actuavam como mensageiros e faziam tudo o mais que fosse necessário. Melinda, mulher livre, costurava para os Madison, trabalho pelo qual era paga. Ela e Freeman viviam nas instalações da Casa Branca. Por fim, em 1815, James Madison cumpriu o prometido e concedeu a liberdade a Freeman.

Claramente, Freeman tinha vindo a preparar-se para este momento. Por volta dessa altura, ele e um amigo gastaram 400 dólares a comprar, entre outras coisas, uma carruagem, cavalos e mobiliário. "É óbvio que ele se estava a preparar para estabelecer a sua própria residência", afirma Taylor. Cinder Stanton descobriu que em 1821 ele já comprara o terreno na Rua K e que em 1825 já lá havia uma moradia de dois pisos em tijolo.

Freeman trabalhou como criado de mesa no Hotel Gadsby e como mensageiro no Departamento de Estado - e nisto foi igual a muitos dos seus pares, que descobriram que empregos de baixo nível no governo federal era, segundo as palavras de Taylor, "o mais alto a que um negro livre podia aspirar".

"Eu diria que tudo o que esses negros alcançaram foi numa difusa atmosfera de impedimentos - impedimentos legais, impedimentos sociais, impedimentos psicológicos", avança a investigadora.

Altos e baixos

Outro aspecto a destacar da zona que Freeman escolheu é que não era segregada. Em 1840, na cidade de Washington, os brancos eram mais numerosos que os negros e havia mais negros livres do que escravos. Seria demasiado afirmar que as relações eram harmoniosas. A rebelião de Nat Turner em 1831 tinha enervado os brancos e, em 1835, os brancos do Distrito Federal exteriorizaram os seus medos no que foi denominado o Motim da Neve. Existiam Códigos de Negros, nem sempre aplicados, que restringiam os movimentos dos residentes negros.

Mas, apesar disso, explica Taylor, segregação extrema e violenta ainda não era habitual.

"As pessoas assumem sempre que tivemos este avanço passo a passo nas relações raciais, mas isso está longe de ser verdade. Elas tiveram altos e baixos. No período de que estamos a falar, começando no final da década de 1840, as pessoas não eram assim tão rígidas" acerca da raça dos seus vizinhos.

A Freeman juntaram-se outros afro-americanos livres. A casa de John Brent ficava na esquina das ruas L e 18, e em 1854 Paul Jennings já se instalara no terreno por trás. Tal como Freeman, Jennings obteve a sua casa através da sua extraordinária determinação. Após o mandato presidencial de Madison, Jennings regressou a Montpelier e, depois da morte de Madison, voltou para Washington com a viúva Dolley. A mulher do falecido Presidente, que estava com problemas financeiros, tinha prometido no seu testamento libertá-lo, mas ele ficou com dúvidas de que isso viesse a suceder. Tomando ele próprio conta da situação - e utilizando as suas relações sociais -, conseguiu que Daniel Webster, através de um intermediário, lhe emprestasse os 200 dólares do preço de compra, conta Taylor. Conseguiu pagar a dívida e adquirir duas casas. Mais tarde, ainda daria algumas pequenas somas de dinheiro a Dolley Madison.

Mas estes não eram os únicos moradores naquelas redondezas que tinham relações presidenciais. A apenas alguns quarteirões, em propriedades nas ruas L e M, viviam William, Charles e Colbert Syphax, três irmãos livres que pertenciam ao que viria a ser uma das mais elitistas famílias da cidade. É uma tradição da família Syphax - e geralmente aceite - afirmar que esses três Syphax eram netos de nada menos do que George Washington Parke Custis e de uma escrava. Custis era ele próprio neto de Martha Washington (esposa do primeiro Presidente dos EUA), o que concede aos Syphax ligações de sangue e propriedade com Mount Vernon, onde alguns antepassados tinham trabalhado. Alguns Syphax estabeleceram-se na margem do rio do lado da Virgínia, e aí se destacaram.

A razão por que estes três se estabeleceram em Washington pode ser simples: empregos. William trabalhava para o Departamento do Interior, onde alcançou o título de "mensageiro-chefe"; era também um líder da sua comunidade a nível da educação de crianças negras. Charles trabalhava no departamento de pensões com Paul Jennings.

Apesar de viverem em zonas não segregadas, estes moradores, afirma Taylor, sentiam claramente que não eram bem-vindos em locais importantes, tais como igrejas. Por isso, os residentes fundaram igrejas negras para terem lugares onde rezar e onde se reunirem em privado. Muitas envolveram-se em esforços para ajudar outros escravos. John Freeman e os seus filhos, declara Cinder Stanton, eram muito activos nos esforços para angariar dinheiro para ajudar escravos a comprar a sua liberdade.

De facto, foi nesta área que se pensou uma ambiciosa fuga de escravos: em 1948, abolicionistas brancos nortistas planearam embarcar 77 escravos numa escuna, a Pearl, com direcção ao norte. A ajudá-los estavam Paul Jennings, John Brent e a sua esposa, Elizabeth Edmonson, que tinha irmãos escravos a bordo.

O plano falhou e a iniciativa era tão perigosa e secreta que alguns dos descendentes de Paul Jennings não sabiam dela até à publicação de relatos bastante recentes. "A história da Pearl para mim foi uma novidade", diz Hugh Alexander, um residente no Maryland descendente de Jennings e cuja mãe, já falecida e "historiadora" da família, mantinha o seu daguerreótipo na parede.

Outros ex-escravos de Montpelier acabaram por mudar-se para aquela comunidade. "Isso não pode ser coincidência", afirma Taylor. Um deles, Ben Stewart, que tinha sido vendido a um proprietário da Geórgia, conseguiu regressar a Washington e arranjou trabalho como guia no Capitólio. Com o passar do tempo, muitos moradores acabariam por casar com os seus vizinhos e as propriedades mantiveram-se nas famílias durante gerações.

Hoje, essas casas já quase todas desapareceram e com elas o destino conhecido da linhagem Freeman. De acordo com Cinder Stanton, John e Melinda - que casaram legalmente - tiveram dez filhos, um dos quais, Benjamin, trabalhou como escriturário no gabinete de patentes. Melinda sobreviveu a John, que morreu em 1839. O seu testamento datado de 1857 teve como testemunha o seu amigo de longa data Paul Jennings.

Até agora, Stanton ainda não conseguiu encontrar descendentes vivos, mas sabe que um neto, John Freeman Shorter, lutou na Guerra Civil. Shorter conseguiu chegar a tenente no 55.º Regimento de Infantaria do Massachusetts, onde, por coincidência ou não, também estavam outros dois negros com ligações a Monticello.

De acordo com o relato de um oficial branco, este John Freeman era um homem muito educado "com todas as qualidades de um soldado, desde a escrupulosa higiene à indomável bravura". Apesar de ter sido ferido, realistou-se e, em 1865, rumou para o estado do Ohio, onde vivia a sua noiva. Durante a viagem contraiu varíola e morreu. Nesse sentido, teve menos sorte do que o seu avô, que lutou tanto para se juntar a uma comunidade de pessoas que tinham enfrentado as mesmas condições extremas que ele, e conseguiu viver o resto dos seus dias na companhia da mulher por cujo amor teve a audácia de escrever a um Presidente. Duas vezes. a

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

Tradução de Eurico Monchiqueséculo XIX, a comunidade incluía homens e mulheres que tinham iniciado as suas vidas com as maiores desvantagens que um ser humano pode ter, mas que, através de persistência e inteligência e esse clássico ingrediente de Washington - ligações influentes -, conseguiram melhorar as suas perspectivas de vida. Juntos, iriam trabalhar, confraternizar e adquirir propriedades que em alguns casos permitiram aos seus descendentes gozar vidas bem mais fáceis do que as suas.

"Quem não gostaria de ter um terreno na Rua K?", pergunta Beth Taylor, académica e ex-directora pedagógica em Montpelier, a histórica propriedade de James Madison. Enquanto investigava os escravos de Madison, Taylor ficou fascinada por esta área, que já foi o lar daquilo a que chama "as primeiras famílias de cor" de Washington. As suas histórias de vida demonstram as ligações entre os negros norte-americanos no período entre a Revolução e a Guerra Civil, e lembram-nos de que alguns dos primeiros presidentes dos Estados Unidos efectivamente possuíam outros seres humanos.

"À medida que faço mais investigações sobre as redondezas, não ficaria nada surpreendida se descobrisse descendentes de escravos que trabalharam para Tyler, Polk, Taylor, Jackson", declara Beth Taylor. "Todos eles foram presidentes, que, como Jefferson e Madison, tiveram escravos a trabalhar para si na Casa Branca."

Nos primeiros tempos da União, explica, os presidentes precisavam de dez ou doze pessoas para tomarem conta da parte doméstica da Casa Branca. O pessoal era muitas vezes uma mistura de brancos, negros livres e escravos, alguns das suas próprias plantações, alguns comprados na cidade e alguns, como era o caso de Freeman, alugados a outros donos.

"Um dos aspectos que sempre me espantam é a forma como estes estadistas tinham uma verdadeira tendência para apenas falarem sobre o problema da escravatura, o tema da escravatura", reflecte Taylor. "Havia da parte deles uma falta de compreensão. Isto não é o problema da escravatura. Estas pessoas são escravizadas."

A segunda carta

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