Maria Isabel Barreno Corín Tellado servia para dizer às mulheres que o destino delas era o casamento

A morte de Corín Tellado, há duas semanas, é também a morte de uma certa literatura cor-de-rosa - aquela que ainda estava viva quando Maria Isabel Barreno, uma das Três Marias das Novas Cartas Portuguesas, começou a ler. A propósito do desaparecimento, aos 81 anos, da escritora espanhola mais lida desde Cervantes, perguntámos a uma portuguesa - que, como Tellado, começou a escrever nos anos de chumbo da ditadura, mas que, ao contrário dela, o fez contra a moralidade dominante - para que serve o romance cor-de-rosa. E descobrimos que serve para muita coisa.

Os romances cor-de-rosa servem para basicamente duas coisas - uma boa e outra má. Como sou uma optimista, acho que a literatura cor-de-rosa no fundo pode servir para criar nas pessoas alguns hábitos de leitura. Por muito lixo que seja, é sempre um começo. Tem de se começar por algum lado e este tipo de literatura pode ser uma base. É preciso ganhar experiência, inclusive experiência técnica, para se conseguir ler rapidamente e sem soletrar, e nesse sentido todas as leituras - as light, as levezinhas, as cor-de-rosa e as azuis - têm a sua utilidade. A parte má desta história é que este tipo de literatura está associada a uma certa formatação, a um certo condicionamento social das mulheres, mas na verdade não sei se o romance cor-de-rosa tal e qual eu o conheci ainda existe ou se já foi substituído por outro tipo de literatura em que as mulheres se vêem ao espelho com outra liberdade. A literatura cor-de-rosa do tempo da Corín Tellado servia basicamente para dizer às mulheres que o destino delas era o amor, o casamento. O próprio Gustave Flaubert faz referência a isso no Madame Bovary: quando descreve a educação sentimental da Emma, menciona o papel da educação sentimental ministrada por essa literatura.
Nunca fui leitora de romances cor-de-rosa, e sobretudo nunca fui compradora dessa literatura. Quem leu muita literatura cor-de-rosa e ainda tinha livros desse género em casa era a minha avó. Eu li alguns, até por curiosidade: a minha avó era de uma geração e de um meio social em que a leitura não era nada cultivada, e o facto de ter uma biblioteca em casa era muito intrigante. Lembro-me de que tinha uma colecção com capa azul, do Max du Veuzy - até hoje estou convencida de que era um autor português que usava pseudónimo, mas não tenho a certeza -, com aqueles romances do John Chauffeur Russo. Durante toda a vida da minha avó, e creio que até à juventude da minha mãe, o Max du Veuzy era o grande autor de referência no género. Contava sempre a mesma história da heroína e do herói que se casam depois de muitas vicissitudes. Que me lembre, nunca li nada da Corín Tellado.
Se compararmos esse universo com o das chamadas literaturas light, já são muitas as diferenças que encontramos - aliás, a literatura light é um fenómeno até por serem as mulheres a comprar e a vender. As mulheres sempre foram as grandes consumidoras deste género de escrita, mas agora além de consumidoras são também campeãs de vendas. Bem ou mal, houve uma evolução - a gente pode achar que é incompleta, ou que é defeituosa, mas a verdade é que as mulheres de que trata esta literatura apropriaram-se dos seus destinos e apropriaram-se também do sexo, o que é uma mudança de paradigma. Mesmo a forma como, nestes livros, as mulheres se relacionam com as outras mulheres - com as mães, com as filhas, com as amigas - é nova. Na literatura cor-de-rosa tradicional, a mãe era uma representação da autoridade, uma figura diferente da do pai mas que também exercia o seu poder, muitas vezes através da chantagem sentimental, e lá cumpria o seu papel de fazer com que as meninas aceitassem pacificamente que o seu maravilhoso destino era exactamente aquele. O que eram as meninas dos romances cor-de-rosa não tem nada a ver com as mulheres da literatura light e com a maneira como estas se apoderam das suas próprias vidas e não hesitam diante de destinos alternativos. Houve de facto um progresso, mesmo que tenhamos reservas sobre a falta de qualidade dessa literatura: são livros que oferecem às mulheres uma auto-imagem completamente diferente.
É claro que, no tempo da Corín Tellado e do Max du Veuzy, a censura e a moral instituída também impediam a autodeterminação das mulheres na literatura. Escrever era um enorme desafio naquela altura - a sociedade era tão conformada e estava tão programada para achar que o melhor era nem pensar, porque pensar trazia problemas, que poucas pessoas se aventuravam. Quando uma pessoa começava a escrever, tinha obviamente a sensação de que aquilo era uma actividade de risco. Houve uma fase em que escrevia muito para jornais e tive coisas cortadas de alto a baixo, até mais do que esperaria. Mas mais tarde percebemos que os censores, mais do que uma censura objectiva, faziam um retrato-robô das pessoas - e uma pessoa que tivesse uma imagem censurável estava lixada, dizendo as coisas em bom português. Mas as pessoas iam arriscando.
Quando escrevemos as Novas Cartas Portuguesas [1972, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa], sabíamos que a obra em si já era uma ousadia, independentemente do vocabulário que viéssemos a usar - mas era o que nos interessava escrever naquela altura e por isso fomos para diante. Mas quando nos metemos naquilo nunca pensei que o regime - até porque estávamos em pleno marcelismo e havia a ideia de que a abertura era outra - caísse na asneira de nos levar a tribunal. O destino mais comum dos livros era serem apreendidos, e até havia livrarias especializadas em livros proibidos, ninguém imaginava que o regime voltasse a cometer o erro que tinha cometido anos antes com a Natália Correia [condenada a três anos de prisão, com pena suspensa, pela publicação da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, em 1966]. Para a imagem internacional de Portugal, o processo foi desastroso: visto do estrangeiro, além de colonialista, Portugal era um país que punha mulheres na cadeia. Literatura erótica era coisa que não havia em Portugal - a antologia editada pela Natália Correia tinha dado naquilo, e nem sequer estamos a falar de um romance ou de materiais que pudessem corromper a juventude, era literatura de elite que o regime sabia perfeitamente que não chegava a toda a gente.
Conscientemente, acho que não me autocensurava quando escrevia [ao contrário de Corín Tellado, cujo estilo de sugerir mais do que mostrar foi muito configurado pela necessidade de escrever coisas que pudessem passar incólumes pela censura franquista]. A censura é sempre um obstáculo, e um obstáculo para além daquilo de que a própria pessoa tem consciência. Não era só eu: creio que nenhum outro autor se autocensurava conscientemente. Mas inconscientemente há sempre uma autocensura implícita, porque as pessoas já sabem quais são as coisas que não vão aparecer ou que vão precipitar a confiscação do livro. Isso condiciona uma escrita - e condiciona-a muito marcadamente -, mas não acredito que faça um estilo. a

inadais@publico.pt

(A partir de uma conversa com a escritora)

Sugerir correcção