Kiluanji Kia Henda Se acontecesse alguma coisa em Angola, seria mais parecido com o que se passa na Líbia

Foto
Homem tribal com sapatilhas Puma - a foto traduz a Luanda actual: "Mistura do

Kiluanji Kia Henda. Que quer dizer este nome? Nascido em 1979, em Angola. Como é viver num país onde o improviso é uma condição de sobrevivência? A memória de um país que não teve tempo para olhar para si, a reflexão sobre anos de instabilidade, hordas de mutilados, o horror do guerra, está no seu trabalho. É um dos finalistas do BES Photo - o vencedor é conhecido a 12 de Abril.

Viveu num país em guerra civil desde que tem memória de si. Cresceu com um país que oscilou entre a experiência comunista e a abertura ao mercado. Aprendeu um novo hino, mitificou, como todos da sua geração, Agostinho Neto. O pai, político, a mãe, mulher de político, empenharam-se na construção de uma nova Angola. Que não é exactamente esta onde Kiluanji Kia Henda vive.

Esta, feita de musseques e kuduro, estabelecimentos comerciais onde se paga em dólares e murais revolucionários nas paredes, é a que aparece no trabalho que faz. A fotografia é uma arma? O fundo do seu trabalho é político, sim. Mas sem perder de vista a poesia.

No princípio, quis ser músico. Fez residências artísticas e expôs em cidades como Nova Iorque ou S. Paulo, em países como Itália ou África do Sul. Tem a base em Luanda, imensa babel onde se sente em casa.

Entrevista há uma semana, na véspera da inauguração da exposição do BES Photo, no CCB, de que é um dos finalistas. Quatro da tarde de domingo, num hotel em frente ao rio. Cabelo apanhado em rastas, jeans e T-shirt, a voz nunca se emociona ou exalta.

Kiluanji?

Significa guerrilheiro. Era o nome de um dos reis do Ndongo, Ngola Kiluanji. Foi dado pelo meu pai. Todos na minha família temos nomes em kimbundo [uma das línguas de Angola], desde o tempo colonial.

Por que é que era importante para o seu pai dar estes nomes aos filhos?

Era o seu lado revolucionário. Foi uma das figuras que combateram pela independência. Fez parte da luta na clandestinidade. Nunca foi guerrilheiro nas matas. No tempo colonial, uma das estratégias era apagar a herança tradicional.

Pertence a uma geração que nasceu com o país (nasceu em 1979, a independência é de 1975). Mas não se pode compreender quem é, nem o país, sem compreender o que está para trás. Em casa, contava-se muita coisa do passado?

Já não conheci os meus avós. Sou o último de seis filhos. Há um gap geracional. Muita dessa história passou-me ao lado. Cresci num meio onde sempre se debateu muito sobre política, numa casa que foi frequentada por vários políticos angolanos, fins-de-semana de discussões acesas. Tinha tios que eram de outros partidos (da FNLA, por exemplo). O meu pai sempre esteve ligado ao MPLA. Tinha o Fidel Castro como ídolo, era comunista ferrenho. Se calhar, tudo isso influencia o meu trabalho, o meu interesse como artista.

Uma fotografia sua: uma criança está sentada, de perna cruzada, num espaço em escombros, e o título é Side effects of cold war [2005]. É uma obra grandemente política.

Sempre houve uma estratégia global na qual Angola estava incluída. Aquilo que vivíamos não era simplesmente responsabilidade do país ou de quem dirigia o país. Foi assim que aprendi a ver o meu país. Angola sempre sofreu muito a ingerência de poderes internacionais. Caso da África do Sul, da União Soviética, dos Estados Unidos. É costume dizer que Angola era o campo quente da Guerra Fria. Se bem que muitos dos factos do que se passava em Angola eram omitidos. Quem estava em Nova Iorque não devia imaginar o que se passava no Cuando-Cubango, as batalhas que ali se travavam.

O seu trabalho procura olhar e compreender a vossa história?

Durante a época de conflito não houve tempo para reflectir. A guerra exige um grande esforço físico, humano; no final do dia ninguém está disposto a pensar sobre o que é que viveu. Mas com a paz, lentamente, vai-se pensando sobre isso. Há resquícios, até hoje, daquilo que fez de Angola um campo de batalha, de experimentações, de armamentos e que implicou várias potências mundiais.

As suas memórias estão ligadas a isso e a um clima de guerra civil. Já era adulto quando a paz foi assinada.

Cresci nesse clima. Luanda sempre esteve protegida de guerra propriamente dita. Mesmo assim considero-me um privilegiado. Onde me senti mais afectado foi no ter a família a emigrar. Vários tias e tios que tiveram de vir para a Europa, para o Canadá. Depois de 1975, o cenário podia ter tomado várias repercussões, depois de os portugueses terem saído. Certas pessoas preferiram abandonar mesmo o país.

Os seus pais puseram essa hipótese?

Não, nunca. Incrível foi terem achado que, com a idade que eu tinha, nunca chegaria a altura de ir para a guerra. Acreditavam que nessa altura a guerra havia de estar acabada. Mas ainda tive de fugir das rusgas. Quando a guerra acabou, tinha 23 anos.

Fugir das rusgas como?

Havia rusgas na cidade, para recrutar novos mancebos. Contudo, o que mais me afligia nesse período era a falta de circulação pelo meu próprio país. Ficávamos muito fechados em Luanda, quando viajávamos era de férias para a Europa. Conhecer o país - isso foi-nos roubado durante muito tempo. Quando penso em pessoas como a minha mãe... Quando a guerra pela independência começou, ela tinha 21 anos; quando a guerra civil acabou, tinha 62 anos. Ficou 40 anos nessa vida, instável, num país com limitações de circulação por questões de segurança. No noticiário estávamos sempre a assistir a imagens da brutalidade que se passava no interior do país.

Como é que a sua vida era marcada por isso?, a sua cidade, a sua rua?

Luanda também se foi alterando. A explosão demográfica, a cidade em que se tornou, é resultado de muitos anos de conflito. As pessoas fugiam da guerra e viviam nas ruas de Luanda, crianças, jovens. Era o único porto seguro. Nasci e cresci numa rua que tinha um centro ortopédico onde iam parar grande parte dos mutilados e feridos de guerra, e que era o único centro onde se fabricavam próteses. Era impressionante a quantidade de pessoas sem pernas, sem braços que circulavam pela cidade. Depois de tanto viver com esse sofrimento, o que acontece é que começamos a tornar-nos imunes. De repente, já não nos abala tanto ver uma pessoa a viver numa miséria extrema. Essa é a parte mais perigosa de viver uma situação de guerra, essa perda de sensibilidade. Corremos todos esse risco.

O seu pai revolucionário, aquele que lutou pela independência do país, teria querido que fosse para a guerra, que se empenhasse mais politicamente?

Não, porque chegou um ponto em que a guerra perdeu o seu sentido. As pessoas já não acreditavam naquilo por que estavam a lutar. Tornou-se numa guerra de angolanos contra angolanos. Quando a África do Sul tentou invadir Angola, um primo, o Cristiano, que nem tinha de ir para a guerra, era engenheiro mecânico, largou tudo e foi para a frente de combate. Tratava-se de um país a invadir o outro - implicava outro sentimento. Depois das primeiras eleições de 1992, as pessoas deram-se conta de que estavam a entrar numa guerra estúpida. Quando chegou a minha altura de ser recrutado, houve muitas mães que saíram à rua e se manifestaram.

A sua mãe manifestou-se?

Não, mas ela partilhava do mesmo sentimento. Fez várias tentativas no sentido de conseguir um adiamento para mim. As pessoas já não estavam dispostas a fazer parte de uma guerra numa zona longínqua do país, já não se sentia esse dever patriótico.

Na escola tinham informação política, cantavam o hino, tinham de ir fardados, havia fotografias nas paredes?

Tínhamos de cantar o hino. [Canta] "Heróis do mar"... Não, é o outro [riso].

Justamente, queria saber qual é que lhe ocorria primeiro.

[Canta] "Ó pátria, nunca mais esqueceremos os heróis de 4 de Fevereiro, ó pátria, saudamos os teus filhos tombados pela nossa independência, honramos o passado, a nossa história, construímos para o futuro um homem novo..." Cantávamos todos os dias. Havia muito essa ideia do poder popular. Inspirava-se nas marchas e era revolucionário.

Por que é que brincou e começou por cantar "Heróis do mar"? O seu pai ainda teve de cantar na escola o hino português.

Estudavam os rios, a história de Portugal, era muito mais do que o hino. Para mim, sempre foi engraçada a ideia de um país, 15 vezes maior que Portugal, ser simplesmente uma província. Esses malabarismos políticos... Hoje, se ouvimos falar, até parece uma coisa utópica.

Quando foi para a escola, Angola era um país soberano havia meia dúzia de anos. O hino não podia ser outro senão o angolano.

Sim. A questão de ser artista em Angola: sempre foi esse desafio de viver num país experimental, que estava a acabar de nascer. A realidade em Angola consegue superar o criativo. Há sempre esse lado da improvisação, que até hoje foi necessário para que o país não caísse. Na Europa, os jovens nasceram num país onde está quase tudo estabelecido, pensado, sólido; isso às vezes é muito frustrante para quem está numa área criativa. Em Angola estava tudo em constante mutação.

Estava ou está?

Está. Novo hino, nova bandeira. O homem novo.

Como é que era a vossa escola?

Tinha áreas grandes, pátios, mista. Durante os anos 80, não havia uma separação social. Desde o filho do Presidente ao filho do contínuo na mesma sala. Começou a haver depois, na mudança para o capitalismo.

Sentiu-se no dia-a-dia uma viragem depois de 1992?

Sentiu. Estávamos a viver num país onde podíamos ser presos por ter dólares no bolso, e de repente tínhamos pessoas a trocar dinheiro na rua. Hoje pode-se entrar num estabelecimento comercial e pagar em dólares. Era uma ideia de comunismo que nunca chegou a ser comunismo. Era mais a ideia de uma economia centralizada. Tive a sorte de ter ido a Cuba com oito anos, e aí sim, senti outra coisa.

Que família era a sua e que estatuto económico tinha para lhe permitir viagens à Europa, a Cuba? Havia dinheiro.

Havia muitas coisas que eram subsidiadas pelo Estado. Se vendesse duas grades de gasosa na rua e tivesse a oportunidade de trocar esse dinheiro dentro de um banco, podia comprar uma passagem para Lisboa. O meu pai trabalhou muitos anos como topógrafo, e depois da independência ocupou cargos no Governo. Chegou a ser ministro do Comércio. Adriano dos Santos Júnior. Quando cortou com a política, em 1986/87, trabalhou no Ministério da Indústria. Tinha o curso superior de Economia. Trabalha como consultor.

Os murais, todo o tipo de propaganda política que ainda se encontra nas paredes de Luanda, são uma constante do seu trabalho. Muitos datam do período em que o seu pai era ministro.

A instabilidade que se viveu, a falta de documentação, de livros, espoletou o meu interesse em recuperar resquícios dessa fase. Houve quase um genocídio cultural em Angola nos anos 80 causado pela situação de guerra. Existe alguma música, mas tudo o que era ligado à indústria [cultural] morreu. Eu tinha um interesse grande pela música, mas não se encontrava à venda uma guitarra eléctrica.

As pessoas não têm as coisas bem resolvidas. Vai ser preciso algum tempo até podermos falar destes assuntos de forma mais livre. Ao mesmo tempo, é urgente a reflexão sobre o que vivíamos antes. Mesmo as perguntas que me fez, de como era a escola, são coisas em que não tinha pensado. A palavra de ordem, "estudar é um dever revolucionário", "a caneta é a arma do pioneiro", que estava nas paredes, nos livros, era de uma escola marxista, que já não influencia a realidade angolana. Tudo copiado da revolução russa. Ainda é difícil fazer um quadro do que foi o país nestes 35 anos. Um balanço. Faltam depoimentos, faltam imagens. O meu trabalho liga com isso. Tentar recuperar o que está presente dessa história passada.

Foi claro que aquilo que queria fotografar era um país a ser erguido? Com os seus paradoxos, magias do quotidiano, contradições.

No início, não tinha uma visão tão politizada sobre as coisas. Era mais explorar o meio técnico do que as histórias que fotografava. Essa preocupação surgiu mais tarde.

Foi um encontrar da sua narrativa, no fundo.

Sim. Já tinha dentro de mim essa ligação à história. Quando comecei a viajar e a perceber melhor o mundo, foi necessário entender o quanto tínhamos dos outros em nós. De onde sou influenciado. Quantos fragmentos de outros sítios há em mim. Angola é um país muito permeável a outras culturas. Por não termos indústria, consumimos tudo o que vem de fora. Roupas, sapatos, pente. O epicentro da minha ideia está em Angola, mas a ideia é bem global. Às vezes disfarçamos, mas existe uma interdependência entre os países. Essa interdependência não é só física, é também genética. Eu tenho um avô português.

O recíproco também é verdadeiro.

Claro. O que é que representa Angola no mundo? Desde os escravos que foram para as Américas - em que é que influenciaram a cultura? A grande música americana: quantos desses músicos negros saíram dos portos de escravos de Angola? O meu trabalho é entender essas relações, essa dinâmica, que é bem visível no Atlântico e que traz uma cultura híbrida, universal. Não tem bandeiras, não tem nações, não tem raças. Já me perguntaram na África do Sul: "Por que é que gostas de rock?, rock é música de branco." O meu trabalho ronda por aí. Ajuda a encurtar distâncias, a melhorar o diálogo.

Ocorre-me a fotografia que fez de um homem com o corpo pintado de branco. Tem um carácter tribal muito acentuado.

Mas tem umas sapatilhas Puma. Essa foto traduz o que é Luanda neste momento. Remete para a cultura suburbana, para a mistura do high-tech com o animismo. Muitas das pessoas que vivem nos musseques nasceram no interior e transportam em si os ritmos tribais; o choque disso com a tecnologia que se encontra na grande cidade resulta no kuduro. Que é um dos maiores e melhores fenómenos culturais que aconteceram em Angola nos últimos 20 anos.

Luanda tem essa hibridez de que falava e uma enorme contradição. Há bairros cujo metro quadrado custa 7500 dólares e isto coexiste com o curandeiro na outra esquina.

Eu não gosto do discurso da angolanidade. Mas, se há alguma coisa próxima de angolanidade, é o que sai dos musseques. E depois tem o mundo do centro da cidade, mais conservador, onde as pessoas têm melhor qualidade de vida.

Não sente esse lado conservador nos musseques?

Não. Por exemplo, o problema da homossexualidade, nos subúrbios das grandes cidades da África do Sul, é violento. Todos os dias uma lésbica é violada, matam um gay. Fiz até um trabalho sobre isso. Em Luanda, não. Nos meios suburbanos há uma... nem usaria a palavra "tolerância", que acho que não se encaixa; há uma liberdade na maneira de ser. Para falar de homossexualidade: há pessoas que dizem que quem levou a homossexualidade para África foram os europeus!, que homossexualidade é coisa de branco.

Com a religião, acontece o mesmo: no meio suburbano de Luanda, tem muçulmanos, protestantes, católicos...

A grande Luanda é uma imensa babel onde coincide tudo isso?

E de forma pacífica.

Então, o que é que provoca as grandes tensões na cidade? As diferentes condições de vida, a distribuição iníqua da riqueza?

Não sinto que a cidade esteja a viver uma grande tensão. O que acho é que toda a mudança profunda, em Angola, envolveu banhos de sangue. Há esse medo. É normal que haja, está ligado à história do país. Foram 14 anos de guerra para chegar a uma independência. Foi uma semente de conflito aí lançada. Uma dissidência no partido no final dos anos [19]70, outro banho de sangue. Para haver eleições, outro banho de sangue. A tensão existe por causa do caos social, da diferença radical entre ricos e pobres. Mas há uma grande vitória: é o respeito pela integridade física. O que a sociedade civil quer, acima de tudo, é poder preservá-la. Consciente de que o país vai ter de sofrer mudanças.

Essas mudanças podem ser iminentes? Pode haver um contágio do que se está a viver no Norte de África?

No Norte de África: estamos a falar da segunda e da terceira economias de África. Estamos a falar de países como o Egipto, que tem 20 milhões de usuários de Internet. Podem criar-se paralelos quanto ao poder político no Norte de África e em Angola. Mas o contexto histórico é completamente diferente e não temos uma população tão preparada para cobrar aquilo que quer ter, ter aquela consciência.

Na Tunísia, tiraram um ditador; mas não quer dizer que tenham acabado com a ditadura. Temos de ver até onde as sociedades estão preparadas para essas mudanças. Não adianta sair à rua e gritar pela democracia quando não fazemos nem ideia do que é isso de democracia. O que vejo em Angola, desde há anos, é que grande parte da população não é nada politizada. Simplesmente vive. Nas matas, onde a guerra foi sangrenta, as pessoas não sabem o que é capitalismo ou socialismo, não sabem o que é a Guerra Fria ou bloco comunista. Quer novas oportunidades de vida. Até traduzir isso em poder político, até achar que o político é que vai mudar isso... Não penso que as pessoas vejam essa responsabilidade nas mãos dos políticos. Em África tem de se consolidar melhor a sociedade civil. Prefiro dar mais atenção àqueles que trazem mais soluções para a sociedade civil do que dirigir-me aos políticos.

Não pensa, então, que haja a possibilidade de se fazer um levantamento em Angola, como se fizeram em países como a Tunísia, Egipto, Líbia? Houve movimentações no país depois do que sucedeu no Norte de África.

Por uma questão ética, não gosto de falar sobre a situação política em Angola fora de Angola. Prefiro falar quando estou em Angola. Podemos manifestar-nos, a Constituição permite-o. Mas não dei muito crédito [a essas movimentações]. Era uma petição sem figura, anónima, e isso não resulta em nada. As pessoas têm de dar a cara pelas lutas que querem levar em frente. Angola tem muita coisa para mudar. Mas tão-pouco queremos uma coisa que crie apenas um alarme. Sabemos bem quais são as consequências disso. Se acontecesse alguma coisa em Angola, seria mais parecido com o que se passa na Líbia.

No seu trabalho, apesar do fundo político, procura sobretudo cartografar o seu país e os seus habitantes. Já falou do que faz como sendo uma "poesia ausente de palavras". Como é que chegou, enquanto autodidacta, a esta forma de fazer poesia?

Antes de fotografar, fiz o exercício de ler imagens. Cresci num meio em que a fotografia estava presente (o meu irmão mais velho tem um estúdio em casa). Vivi dois anos em casa de um fotógrafo sul-africano, uma das pessoas que mais me ensinaram sobre Angola, através das suas fotografias. A fotografia é uma forma de materializar aquilo que penso ([e que me interessa] mais do que o rigor técnico). Sou um contador de histórias. O meu trabalho é político porque essa materialização envolve um pensamento, uma vontade, um ponto onde chegar. Ao mesmo tempo tem a ironia, o humor. Não me interessa ser um artista que tem um ponto de vista documental. Pelo contrário; gosto de manipular o que é documental para que isso possa ser usado na minha narrativa.

É uma forma de ficção.

É. Na sociedade onde cresci, as pessoas perderam um pouco a capacidade de fantasiar. É o que sinto também na arte portuguesa. Uma certa formalidade. Perdeu-se a vontade de entrar nos territórios da ficção. Encontrar a contestação nas artes plásticas não é tão claro quanto no hip hop, em que tudo é mais denunciado. Há uma intervenção política no que faço, sim. Sou fã de Jimmy Hendrix, Bob Dylan; havia neles uma lírica de intervenção, mas sem deixar para trás a poesia.

Dá-se com o establishment artístico de Luanda?

Sim. Foi onde apareci. Luanda e Cape Town [Cidade do Cabo, África do Sul] são os sítios onde trabalho mais em projectos colectivos.

As coisas estão aí muito entrincheiradas? De um lado estão artistas que se dão com o sistema e que estão representadas nas grandes colecções; do outro, estão os que não se dão.

As coisas são assim em todo o lado. Mas não sinto especialmente isso. Os artistas que pertencem a colecções e têm tido mais oportunidade de expor conseguem ser mais interventivos. Reflectem sobre o que é a sociedade hoje, são muito críticos. Há artistas que conheço, que não estão nas grandes colecções e que se contentam com pintar o pôr do Sol e os embondeiros, as máscaras e as nossas tradições.

Estar representado na colecção de Sindika Dokolo, um dos maiores coleccionadores africanos, marido de Isabel dos Santos, e por isso genro do Presidente, não o inibe de fazer crítica política no seu trabalho?

De maneira nenhuma. A crítica política está no meu trabalho. Não sou um radical. Mas uma das fotografias que expus no BES Photo foi de uma estátua desmontada do Paulo Dias de Novais. É uma metáfora do desmantelamento do colonialismo. Cheguei a afirmar que as estátuas portuguesas que estão em Luanda são estátuas de cidadãos que têm visto caducado; e não deixei de expor aqui, num meio algo oficial. As pessoas têm de ter a capacidade de incorporar a crítica sobre a sua própria sociedade. Para Itália fiz obras sobre a guerra que foram consideradas muito leves. Existe uma subtileza no meu trabalho. São fotografias sobre a guerra que se podem pôr na sala de jantar e não tiram o apetite. Mas que nos levam à reflexão. O meu problema não é com indivíduos, políticos. O espírito colectivo é que tem de ser mais forte - essa é a minha luta.

anabela.mota.ribeiro@publico.pt

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