Viver, até que comece a doer em demasia

Cada um de nós sente onde começa o seu pântano irreversível e tem direito a não querer morrer sufocado nele.

1. Em Portugal, tem-se acusado os defensores da “morte (medicamente) assistida” de esta ser uma expressão quase de má-fé. Dizem os opositores que todos os profissionais de saúde fazem um morte “assistida”, nos hospitais ou nos cuidados paliativos (CP). Querem com isto dizer que a morte é acompanhada, fazendo-se tudo para que o doente não sofra. Mas, nesta questão terminológica, é preciso ver que, antes de Portugal começar a discutir o tema, muitos outros países o fizeram. Ora, em inglês, o esperanto dos tempos contemporâneos, o termo “assistido” (assisted dying, physician-assisted-dying, physician-assisted-suicide) tem um significado muito preciso, implicando a antecipação deliberada e voluntária que um doente faz da sua morte.

Se, neste momento, um profissional português de saúde escrever em inglês para um Congresso, nunca dirá que pratica mortes “assistidas” (assisted deaths). Quer dizer, pode escrevê-lo, mas será entendido pelo menos com curiosidade - e no final os colegas lamentarão a sua falta de domínio do inglês e da temática.

Em inglês, há até quem prefira a expressão aid-in-dying (ajuda no morrer), também no sentido do assisted dying.

Por outro lado, em francês já existe a utilização de mort assistée para designar este assisted dying. Portanto, onde reside a surpresa?

De qualquer modo, realce-se que, no terreno, muitos doentes americanos reagem mal ao termo physician-assisted-suicide. Têm receio de que os acusem de cometer um suicídio irracional. Preferem dizer que é a doença que os mata. No fundo, que o seu acto é de legítima defesa, embora implique a sua morte. Mas melhor isso do que serem engolidos aos poucos pelo pântano da doença, quando o sofrimento já é para eles um excesso.

2. A propósito do termo pântano, surge-me uma história, das dezenas que li. Num livro de memórias de quem combatera numa das grandes guerras, vem a seguinte descrição. Um grupo de soldados passa ao lado de um pântano. Dele emerge o grito de socorro de um outro soldado, a afundar-se nele sem possibilidade de salvação: “Dêem-me um tiro e matem-me antes que sufoque!”. Os outros passam ao largo e deixam o colega morrer aos poucos. Contei a história a uma católica que julgava “aberta”. Respondeu: “os colegas fizeram bem, pois sabe-se lá se, antes de ser completamente engolido no pântano, o soldado não encontrava uma rocha firme?”. Calei-me e mudei de assunto. O que julgo saber é que cada um de nós sente onde começa o seu pântano irreversível e tem direito a não querer morrer sufocado nele, mesmo com toda a ajuda dos CP, que não operam milagres.

3. Voltemos à recusa de os doentes americanos em ouvir dizer que cometem suicídio. É que sabem haver uma distinção muito grande entre um suicídio evitável ou “irracional” e o que no seu caso se poderia designar de “suicídio assistido racional”. Não querem ser confundidos com doentes deprimidos ou doentes mentais, como o fez há pouco o Bastonário dos Médicos no Porto Canal. Aliás, lembremo-nos que foi sob a acusação de doença mental que tantos dissidentes foram internados em hospitais psiquiátricos pelos países ditatoriais. Ao apelo veemente do Bastonário para que se “psiquiatrize” a questão, lembremos que o próprio Freud, fundador da psicanálise, quando o cancro do maxilar se manifestou previu para ele a possibilidade de uma eutanásia. Para o aceitar como médico pessoal, pediu a Max Schur duas coisas: que lhe dissesse sempre a verdade e que, um dia, se ele assim o entendesse, o “assistisse” na morte. Foi essa vontade que o médico cumpriu, já em Londres, quando Freud o chama à cabeceira, lhe diz que agora só se sente em tortura sem sentido e lhe pede para cumprir a promessa antiga, o que foi feito pouco depois. Tinham passado 16 anos desde o primeiro ataque do cancro.

4. Nos próprios campos de concentração nazis, havia quem só conseguisse um mínimo de paz se encontrasse uma possibilidade de se suicidar, caso o sofrimento fosse insuportável. E tendo sido a classe médica holandesa a única de um país ocupado pelos nazis a ter-se recusado, como um todo, a colaborar com eles, muitos dos seus médicos optaram mais tarde por atender os pedidos de eutanásia dos seus doentes: sabiam distinguir entre assassinatos e pedidos genuínos de auxílio na morte. Há quem afirme que daí resultou a confiança dos holandeses nos seus médicos, não a desconfiança.

5. Quem se sente num sofrimento para ele insuportável (situação naturalmente subjectiva, mas não arbitrária) e pede uma morte “assistida” não é menos digno do que qualquer outra pessoa. Pede apenas que lhe respeitem a dignidade de ter direito a não morrer sufocado no seu pântano. De quem desconfiará? De quem não lhe respeite essa última liberdade.

Professora Aposentada da UMinho, autora de Ajudas-me a morrer? e A morte assistida e outras questões de fim-de-vida (laura.laura@mail.telepac.pt).

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