Vacinação: o que pertence à opinião e à decisão

A obrigatoriedade não deve ser excluída. Seria importante que os militantes anti-vacinação entendessem que podem estar a tornar essa decisão inevitável.

Não sei o nome da jovem que morreu de sarampo esta semana no nosso país. Não sei o nome dos seus pais, que estão a passar pelo mais terrível sofrimento, ainda para mais certamente agravado pelo enorme debate público que esta morte, provocada por uma doença que já não era suposto matar em Portugal no ano de 2017, está a gerar. Mas sei que, se queremos que este debate doloroso tenha algum significado, a primeira coisa que há a fazer é afastar dele qualquer espírito persecutório. A segunda é fazê-lo de forma tão construtiva quanto possível: ele pode partir de um caso particular, mas é para o sentido geral que é preciso levá-lo.

Imaginemos por isso (para afastar todo o sentido de culpa particular) que um determinado indivíduo não foi vacinado por erro administrativo. Poderia também tratar-se de uma grávida ou de uma pessoa que não pudesse ser vacinada por razões médicas de outra ordem, mas o que importa aqui é que esse indivíduo não foi imunizado. O que há a fazer? Simples: garantir que o grupo em torno dele está tão imunizado quanto possível para que o indivíduo não-imunizado tenha o mínimo de possibilidade de ser contagiado. Como é óbvio, se eu não me vacinar, não estou só a pôr-me em risco a mim: estou também a criar um canal que pode contagiar esse outro indivíduo que não foi imunizado. A vida dele (ou dela) depende da minha escolha. Em consequência: a minha opinião e a minha decisão têm aqui critérios diferentes. A minha opinião vale só para mim; a minha decisão vale para a minha vida e para a vida de outros.

Digo “a vida” e não apenas “a saúde”, porque há uma realidade que importa salientar e que o caso trágico desta semana ilustra. Quando descem os níveis de imunização numa comunidade, não aumentam só as probabilidades de contágio. Segundo vários estudos (aquele que consultei foi da prestigiada revista médica Lancet), a própria severidade da doença quando contraída aumenta. No caso do sarampo, a doença pode ser até quatro vezes mais fatal quando contraída em bolsas de não-vacinação numa sociedade predominantemente vacinada. Por isso é importante, longe de qualquer estigmatização, chamar a atenção dos nossos concidadãos que não se vacinam ou não vacinam os filhos por militância: ao fazê-lo, não estão apenas a colocar-se em risco a si mesmos, nem sequer apenas a colocar em risco os vossos filhos, nem sequer a providenciar mais canais de contágio que fazem com que a doença atinja mais pessoas. Estão também a criar as condições para que a doença seja mais perigosa em cada caso.

Chegados a este ponto, os militantes da não-vacinação dir-me-ão que esta é apenas uma opinião que os não obriga a eles. Mas as consequências daquilo a que eles chamam de “opinião” pró-vacina e anti-vacina são muitíssimo diferentes, e por isso estas “opiniões” não podem estar em posições equivalentes no que diz respeito à tomada de decisões em saúde pública. Numa sociedade democrática, todas as opiniões são possíveis. Mas onde há decisões a tomar, a comunidade tem de se guiar pelos factos disponíveis e pelo consenso em torno deles. Podemos, por exemplo, achar o que quisermos sobre o “debate” entre conduzir sóbrio e alcoolizado: que é um debate interessante, irritante, inútil, ou até que não é debate nenhum. Mas ninguém vai esperar pelo fim da conversa para só aí tomar a decisão de proibir a condução alcoolizada: a conversa pode ser interminável e os riscos de não se tomar uma decisão são demasiado grandes. Face aos riscos da não-proibição e aos benefícios da proibição, a decisão de proibir a condução alcoolizada foi proporcional — e a proporcionalidade é a regra de ouro nestas decisões. Ora, a proporcionalidade que vale para uma proibição vale também, é claro, para uma obrigatoriedade.

Isto deveria, aliás, levar os adeptos da não-vacinação a manterem eles próprios a sua militância no domínio estrito da opinião e não passarem à prática de não vacinar. Pela simples razão de que, no seu caso, passar da opinião à decisão — de acordo com toda a informação que temos disponível — põe em risco a vida de terceiros. Por outro lado, caso se verifique que a não-vacinação está a aumentar e a vacinação a afastar-se da desejável universalidade, é perfeitamente legítimo que a comunidade tenha também de decidir em face dos dados disponíveis e do consenso científico. Ora, dada a comparação entre os perigos que ocorrem se baixarem os níveis de vacinação e a simplicidade, segurança e baixo custo de vacinar toda a gente (contra as doenças de que estamos a falar), é mais do que evidente que a decisão de tornar a vacinação obrigatória pode ser proporcional. A obrigatoriedade não deve por isso ser excluída. Seria importante que os militantes anti-vacinação entendessem que podem estar a tornar essa decisão inevitável.

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