Uma proposta: descriminalizar a condução sem carta

No tema punitivo, o Estado tornou-se apenas uma má governanta de cadeias e internatos, que pouco sabe e pouco quer saber sobre quem lhe entra pela casa adentro e porquê, não obstante eles por lá irem ficando.

Estará em processo legislativo parlamentar o fim da designada “prisão por dias livres”, pena aplicada em Portugal por crimes muito leves e normalmente perante arguidos reincidentes, a quem o pagamento de uma multa não atemorizou, ou até a cidadãos simplesmente sem recursos para pagar a tal multa a que foram condenados e que podem assim vê-la substituída por tempo de prisão efectiva.

Prisão por dias livres significa, na prática, usar de liberdade de segunda a sexta, o período habitual de trabalho, e ir passar o fim-de-semana na cadeia, ao longo de um período que pode chegar até um ano.

Quem são concretamente os destinatários habituais desta medida? Costuma dizer-se que são condenados reincidentes por condução de veículo sem carta. Numa cadeia nacional em concreto os funcionários até conhecem bem um condenado a prisão por dias livres que costuma chegar no seu automóvel e estacioná-lo na rua do estabelecimento prisional à sexta ao fim do dia, para o retomar no domingo à noite, não obstante o crime cometido ter sido o de conduzir sem carta…

Em 31 de Dezembro de 2016, estavam 899 reclusos nas prisões portuguesas presos por condução sem título legal habilitante – e outros 258 em reclusão por condução sob efeito de álcool ou de substâncias prisoctrópicas. Olhando todos os crimes que levam à prisão em Portugal, são estes os que levam em maior número, apenas superados, e por pouco, pelo tráfico de droga e pelos furtos e roubos.

No passado dia 15 de Maio, ainda de acordo com as estatísticas públicas dos serviços prisionais, eram apenas 536 pessoas as que cumpriam a pena de prisão por dias livres, ou seja, ao fim-de-semana, num total de 13.888 reclusos, entre condenados e preventivos.

Assim, temos de reconhecer que findar com a prisão por dias livres, mesmo podendo ser uma boa opção por outras razões, tem um efeito extremamente limitado no tema da sobrelotação prisional, uma vez que aqueles condenados representam apenas 3% do total de reclusos e, note-se, são reclusos que apenas passam 48h por semana na cadeia…

No entanto, se se equacionasse a descriminalização da condução sem título habilitante, ou pelo menos, se se evitasse absolutamente uma pena detentiva neste caso (por exemplo através de uma nova pena de geolocalização em permanência, na habitação e fora dela, ou outras), estaríamos a falar de 900 reclusos a menos nas prisões portuguesas, 7% do total.

Mas descriminalizar a condução sem carta seria uma opção perfeitamente legítima, não apenas como resposta pragmática à sobrelotação, mas especialmente atendendo aos resultados que as penas detentivas aqui impostas produzem, nulos do ponto de vista da reincidência do condenado e nulos também em termos de prevenção geral perante a criminalidade futura.

Outro tipo de sanção, que não a criminal, poderia ser aplicado, como o foi, entre nós, entre 1995 e 1998, período em que a condução sem carta foi descriminalizada. E outra atitude, do ponto de vista da prevenção da reincidência, deveria ser assumida. Quem conduz sem carta, na maior parte dos casos saberá conduzir… No fundo, valeria a pena construir um modelo em que a obtenção da carta fizesse parte da dimensão sancionatória a ser aplicada, sob pena de qualquer outra resposta a esse comportamento ser sempre irrelevante.

Que efeitos reais tem a prisão hoje, quer a efectiva, quer a sua simples ameaça, para os nossos condenados por conduzirem sem carta? Aparentemente nenhuns. O crime continua a ser francamente comum e a reincidência habitual. E toda a gente sabe que deve ter carta para conduzir… Como se escreveu num acórdão da Relação de Coimbra, de 2012, “apesar de se tratar de um tipo de crime pelo qual continuam a ser pessoas julgadas diariamente, não se sente a necessidade de prevenção geral a um nível elevado na medida em que existe por parte da comunidade em geral uma conformação das condutas com a norma proibitiva. Ademais, (…) apesar de se tratar de um crime de perigo, não é sentida uma forte insegurança por parte da comunidade face a este tipo de condutas” (Processo 48/12.2GTLRA.C1).

A experiência passada parece apoiar esta proposta. Entre 1995 e 1998 o facto de conduzir sem carta ter deixado de ser crime não significou qualquer aumento da sinistralidade ou do número de mortos e feridos na estrada. Aliás, o que sabemos (por exemplo através da investigação realizada por Tiago Guerreiro, Análise da sinistralidade rodoviária em Portugal), é precisamente que o número de mortes em acidentes rodoviários diminuiu significativamente naqueles anos da descriminalização, tal como continuou a diminuir nos anos seguintes, e que o número de feridos não foi igualmente afectado pela medida.

Em todo o caso, neste e noutros comportamentos, está seguramente na altura de se saber mais sobre motivação criminal, reincidência e efeitos associados às penas aplicadas. Sem esse conhecimento, todas as opções e decisões podem ser boas – ou más. No tema punitivo, infelizmente, o Estado tornou-se apenas uma má governanta de cadeias e internatos, que pouco sabe e pouco quer saber sobre quem lhe entra pela casa adentro e porquê, não obstante eles por lá irem ficando.

Não seria mau que a facilidade que o nosso parlamento, muito por iniciativa dos sucessivos governos, tem em criar novos crimes, por vezes meramente simbólicos e propagandísticos, se pudesse traduzir igualmente na exigência de estudos, de uma ponderação pública de opções e de apresentações de resultados de uma política criminal, exista ela ou não.

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