Tribunal Europeu condena Portugal por violação da liberdade de expressão

Numa reportagem transmitida na SIC em 2005, sobre um rapaz condenado a quatro anos e meio de cadeia por causa de um telemóvel, a jornalista Sofia Pinto Coelho usou sons de uma audiência em tribunal. E foi multada por isso.

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Os juízes do TEDH não entendem porque razão não devem os sons ser divulgados se audiência era pública, o julgamento já tinha terminado e as vozes dos juízes e procuradores que participaram foram distorcidas Daniel Rocha

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) diz que o Estado português não cumpriu o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que protege o direito à liberdade de expressão e à liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias. É a resposta a uma queixa apresentada pela jornalista Sofia Pinto Coelho.

A decisão dos juízes do tribunal de Estrasburgo foi adoptada com seis votos a favor e um contra. E divulgada nesta terça-feira de manhã. A jornalista tinha sido condenada pela Justiça portuguesa a uma multa de 1500 euros por causa de uma reportagem da sua autoria, transmitida na SIC, a 12 de Novembro de 2005, sobre um julgamento em Sintra onde, alegadamente, houve um erro judiciário. E que resultou na condenação de um jovem de 18 anos a quatro anos e meio de prisão pelo roubo de um telemóvel e de um par de brincos.

Nessa reportagem, a jornalista usou sons da gravação feita pelo tribunal durante a inquirição de testemunhas. Mas a reportagem foi transmitida já depois de a sentença ter sido lida, o que foi tido em conta pelo TEDH — que considera que não ficou demonstrado de que forma a divulgação dos excertos sonoros das audiências na reportagem “terá influenciado negativamente a boa administração da Justiça”, como é alegado pelas autoridades portuguesas. Afinal o processo estava fechado.

Os juízes do TEDH não entendem, de resto, porque razão não devem os sons ser divulgados se a audiência era pública, o julgamento já tinha terminado e as vozes dos juízes e procuradores que participaram foram distorcidas, para protecção da sua identidade.

Contactada pelo PÚBLICO, Sofia Pinto Coelho diz que a decisão do TEDH “é um marco muito importante”: “É uma porta que se abre para as rádios e para as televisões. Foi a primeira vez que se discutiu o uso de sons audio de julgamentos. O que nós sempre defendemos é que os sons devem ser tratados como peças processuais, como as actas dos julgamentos” a que os jornalistas têm habitualmente acesso e podem transcrever.

A jornalista nota ainda que o que se passou no caso que relatou na reportagem em questão “foi um clamoroso erro judicial” e que os sons que passou eram fundamentais para o demonstrar – nomeadamente “a forma acintosa” como uma testemunha, que dizia que o jovem que viria a ser condenado não podia ter estado no local do crime, foi tratada em tribunal.

Sofia Pinto Coelho lembra que um dos argumentos que sempre foi usado pela Justiça portuguesa contra a divulgação dos sons foi a protecção do “direito à palavra” mas que, no caso, nenhum dos intervenientes dos diálogos gravados se queixou da violação desse direito após a reportagem — o que é também sublinhado pelo TEDH.

O caso Éder Fortes

O caso relatado na reportagem tem início em 2004, no Cacém. Um grupo de rapazes faz um assalto. Éder Fortes e vários membros de um gangue acabam por ser levados a julgamento. Uma das vítimas disse que conhecia Éder e que tinha a certeza de que ele não era um dos assaltantes. Mas outro, segundo relatou a jornalista, apontou-o num álbum de fotografias na esquadra. Já a dona de uma empresa de mudanças garantiu em tribunal que ele estava a trabalhar no dia do crime, pelo que não podia ter sido um dos assaltantes, mas o tribunal não acreditou nela. Sofia Pinto Coelho investigaria mais a fundo este caso, mais tarde, no âmbito da mini-série “Condenados”, que passou na SIC já em 2010.

O julgamento de Éder foi gravado em suporte magnético, para o caso de um eventual recurso da matéria de facto. Acontece que excertos do som dessa gravação, nomeadamente de perguntas feitas pelos juízes e procuradores a testemunhas, e respectivas respostas, foram utilizados por Sofia Pinto Coelho na primeira reportagem de 2005. As vozes dos intervenientes foram alteradas, para que não fossem identificadas.

Só que o Código do Processo Penal diz que não é permitida “a transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativas à prática de qualquer acto processual, nomeadamente da audiência, salvo se a autoridade judiciária” o autorizar. E a reportagem fora para o ar sem a autorização da divulgação desses excertos sonoros.

O presidente do colectivo de juízes apresentou então queixa contra Sofia Pinto Coelho. E a jornalista acabou por ser condenada pelo Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras. Recorreu da decisão. Entendia que tendo havido a gravação das sessões em suporte magnético do próprio tribunal, esse som gravado não deveria, após a sentença, ficar “eternamente sepultado, nas prateleiras de um qualquer arquivo morto” — como se lê nas alegações que mais tarde serão apresentadas ao Tribunal Constitucional.

Sustentava também que o que a lei proibia era a “tomada de som” e a sua transmissão até à data da sentença (ora ela usara peças do tribunal, após a sentença). E lembrava que a sua reportagem tinha como objectivo denunciar “um erro da justiça”, que tinha posto em causa a liberdade de um indivíduo, o que prevalecia sobre qualquer acto ilícito que tivesse sido cometido. O tribunal não concordou. E condenou-a a 1500 euros de multa, o que veio a ser confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

A jornalista recorre então para o Constitucional, defendendo que era inconstitucional a forma como o Código de Processo Penal (que diz que não é permitida “a transmissão ou registo de imagens...”) havia sido interpretado pelos tribunais até ali, para a condenar. O que é rejeitado já em Fevereiro de 2011.

Liberdade de expressão

Ao TEDH Sofia Pinto Coelho alegou que a sua condenação por desobediência atenta contra o artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que protege o direito à liberdade de expressão e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias. Agora o TEDH dá-lhe razão.

Diz que o Estado deve pagar-lhe de volta 1500 euros por danos materiais, mais 4623,84 euros para despesas e que ela tem direito a uma reparação por danos morais.

Em 2010, foi para o ar a série “Condenados”, onde Sofia Pinto Coelho contava com detalhe a história de quatro erros judiciais. Éder Fortes foi a personagem principal de um dos episódios. Nele, o jovem contava como cumprira até ao fim a totalidade dos quatro anos e meio de pena por causa do telemóvel que fora acusado de roubar e como o tranquilizava saber que muita gente acreditava na sua inocência. Contudo, pouco depois de falar com a jornalista voltou a ser preso por causa de um processo antigo em que tinha sido condenado a pena suspensa – processo que só foi reactivado por causa do processo do telemóvel.

Éder cumpriu no total seis anos de cadeia. Saiu numa noite de Natal, na sequência de um indulto do presidente Cavaco Silva. “Nesse ano foram apenas dois indultos”, recorda Sofia Pinto Coelho.

Éder está bem, garante ainda a jornalista. Tem trabalho, uma mulher, um filho.

A sentença do TEDH torna-se definitiva em três meses, se as partes declararem que não solicitarão a devolução do assunto ao tribunal – ou se, pedindo as partes que isso aconteça, este não o aceitar.

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