Tragédia de Pedrógão: O que já sabemos e o que ainda falta saber

Continua a ser demasiado aquilo que não se sabe sobre o que correu mal no incêndio que deflagrou em Pedrógão Grande e alastrou aos municípios vizinhos, provocando 64 mortos e 254 feridos. O 11.º fogo mais mortal no mundo desde 1990 deixou ainda 150 famílias desalojadas.

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Adriano Miranda

O IPMA emitiu algum aviso sobre a probabilidade agravada de ocorrência de incêndios florestais?

Sim. O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) emitiu um aviso meteorológico sobre o risco muito elevado de incêndio florestal para a zona de Pedrógão Grande (e para outras regiões do país) quatro dias antes do incêndio. O alerta foi lançado por causa das altas temperaturas e baixos níveis de humidade previstos para esta região. A trovoada também fazia parte das previsões do IPMA que levaram ao alerta sobre o elevado risco de incêndio, mas não foi referida no aviso meteorológico feito para esta e outras regiões do país. Porém, segundo um esclarecimento enviado na quarta-feira pelo presidente do IPMA, Miguel Miranda, ao primeiro-ministro, “os níveis de avisos emitidos estavam de acordo com as regras fixadas entre o IPMA e a ANPC [Autoridade Nacional de Protecção Civil] ”.

Como e onde começou o incêndio?

A cronologia da ANPC aponta as 14h43 como a hora a que foi recebido o primeiro alerta para um incêndio rural em Escalos Fundeiros, uma localidade de Pedrógão Grande. Menos de 24 horas depois, a Polícia Judiciária (PJ) apontou a árvore onde terá ocorrido a descarga eléctrica que desencadeou o fogo, afastando desde cedo a possibilidade de origem criminosa. É relativamente fácil aos peritos na investigação de fogos determinarem a sua origem, como explicou um destes responsáveis ao PÚBLICO. A árvore atingida pelo raio, que não arde dada a velocidade da descarga, tem de apresentar marcas de enegrecimento e o solo em volta fica “recozido, arenoso, como que vitrificado”. Esta tese, porém, já foi contrariada pelo presidente da Liga dos Bombeiros, Jaime Marta Soares, que alega ter fundamentos para acreditar em “mão criminosa”. A PJ vai ouvir este responsável e prosseguir com a investigação às causas do fogo.

Houve condições meteorológicas adversas que condicionaram a propagação do incêndio?

Sim. Independentemente de o incêndio ter ou não começado pela descarga eléctrica de trovoada seca, a alta temperatura e baixos níveis de humidade (33,3 graus Celsius e uma humidade de 20%) que se fizeram sentir nesta região funcionaram como combustível para o fogo, ajudando na (rápida) propagação das chamas.

Há alguma explicação geofísica para a forma anómala como o fogo se propagou?

Além das altas temperaturas, baixa humidade e do facto de a região estar colonizada por espécies altamente inflamáveis (como pinheiros bravos e eucaliptos), o IPMA levanta ainda a hipótese de ter ocorrido um fenómeno meteorológico chamado downburst durante o incêndio e que pode ter acelerado a sua propagação. Trata-se de uma massa de ar descendente, que chega até ao solo e se espalha de forma radial, causando ventos fortes. Uma vez chegada ao chão, essa descarga de ar dispara para todas as direcções. Parece um tornado, mas não é. A ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, também adiantou que “a própria dinâmica do incêndio provocou ventos convectivos e fez aquilo que os especialistas chamam incêndio eruptivo, ou seja, faz uma espécie de um tornado de vento em que lança bolas de fogo, aliás muitos populares descreviam isso mesmo: como se tivesse havido um furacão, um tornado com bolas de fogo e a uma velocidade absolutamente estonteante”.

Como foi a primeira reacção ao incêndio? Por que é que, havendo um aviso prévio para o risco de incêndio e tendo o alerta sido dado às 14h43, mais de cinco horas depois, às 20h de sábado, só estavam 180 bombeiros no local e dois meios aéreos?

Não há, por enquanto, uma resposta directa a esta questão. O presidente da ANPC, Rui Esteves, tem-se mantido em silêncio. A ministra Constança Urbano de Sousa já admitiu que pode ter havido por parte da ANPC uma “subvalorização” dos alertas. “A elevação do alerta de prontidão é algo que temos que avaliar de uma forma mais aprofundada. Admito que tenha havido uma subvalorização dessa informação”, declarou, para lembrar, porém, que no sábado o país registou 156 incêndios, cujo combate envolveu mais de 9000 operacionais e quase 3000 viaturas. As falhas nas comunicações podem, por outro lado, ajudar a perceber por que é que, tantas horas depois do início das chamas, os operacionais no terreno continuassem a ser tão poucos. Entre os bombeiros, as perguntas que circulam têm nuances mais precisas: como é que o comando não solicitou meios aéreos logo no início da operação? Os meios aéreos que estavam a abastecer nas imediações para combater um outro incêndio não poderiam ter sido repartidos logo pelos dois incêndios?

Por que não foi cortada ao trânsito a Estrada Nacional 236-1, onde acabaram por morrer 47 pessoas. É verdade que esta via foi indicada pelas autoridades como alternativa ao IC8?

Na sequência do despacho do ministro António Costa, a GNR sustentou que “não havia qualquer indicador ou informação que apontasse para a existência de um risco potencial ou efectivo em seguir por esta estrada em qualquer dos sentidos”. Em jeito de justificação, a GNR explicou que o acesso à EN 236-1 se faz a partir de múltiplos locais, “muitos deles provenientes de pequenas localidades e propriedades existentes nas proximidades e não apenas a partir do IC8”. Acresce que foi no contexto de um fogo “invulgar”, com “múltiplos focos de incêndio e propagações galopantes e imprevisíveis”, que terão ocorrido, ainda segundo a GNR, os fatídicos acontecimentos na EN 236-1, “uma vez que o fogo terá atingido esta estrada de forma totalmente inesperada, inusitada e assustadoramente repentina, surpreendendo todos, desde as vítimas aos agentes de protecção civil, nos quais se incluem os militares da Guarda destacados para o local”. Neste contexto, a GNR confirma que cortou a circulação no IC8 cerca das 18h50, tendo sido depois forçada pelo avanço do fogo a recuar para a zona de confluência do IC8 com a EN 236-1. Esta manteve-se aberta. E aos automobilistas restavam três opções: retroceder pelo mesmo IC8 em direcção a Oeste ou arriscar os cerca de 14 quilómetros da EN 236-1 em direcção a Figueiró dos Vinhos ou em direcção a Castanheira de Pêra. Os que o fizeram ficaram encurralados. A ministra da Administração Interna já se manifestou “perplexa” com o facto de a GNR não ter decidido logo fechar esta via, mesmo considerada a forma “anómala” e “eruptiva” como o fogo se propagou, e não descartou investigações à actuação da GNR.

Houve interrupção do funcionamento da rede SIRESP?

Não há respostas cabais. Vários operacionais e autarcas no terreno alegam que sim, que os homens das diferentes forças que combatiam as chamas estiveram várias horas sem conseguirem comunicar entre si, o que ajudará a explicar em parte a reacção tardia em termos de mobilização de meios. Mas, por enquanto, Constança Urbano de Sousa admite apenas “intermitências” e não uma falha total das comunicações, adiantando que o que lhe garantiram foi que, pelas 20h, as redes móveis por satélite já estavam no terreno a substituir a fibra óptica que ficou queimada pelo fogo. De todo o modo, foi pedido um “relatório circunstanciado” cujas conclusões estavam previstas para ontem.

Que impacto tiveram estas falhas no planeamento, comando e execução das operações?

Ninguém adianta para já essa informação. Mas um relato de um dos bombeiros que estiveram desde a primeira hora no combate ao fogo diz que, além das falhas na comunicação de emergência, estes estiveram “sem qualquer rede móvel” durante várias horas, sendo que a rede da Meo apenas foi reposta “dias depois”. “Ouvi indicações contraditórias e assisti a meios esperarem imenso tempo por novas ordens, enquanto outras zonas ardiam e ninguém recebeu as informações, pois era impossível para os cidadãos informar pelas vias 112 ou centrais dos corpos de bombeiros. Onde andavam os meios de reconhecimento? E como garantir aos cidadãos uma capacidade de comunicação de incidentes ininterrupta em estado de emergência?”, questionou este bombeiro.

O Governo sabia das fragilidades do SIRESP e, nesse sentido, pode considerar-se que houve negligência do MAI?

A ministra da Administração Interna confirma as conclusões de um relatório oficial tornado público que aponta falhas anteriores no sistema de comunicações, nomeadamente no incêndio do ano passado no Sardoal, em que 50% dos operacionais no terreno estiveram sem comunicações, e em 2014, ano em que a morte de dois bombeiros num incêndio em Carregal do Sal terá sido propiciada por falhas nas comunicações. Mas, garantiu Constança Urbano de Sousa na entrevista à RTP, essas falhas “tiveram consequências, nomeadamente ao nível contratual, com [novas] obrigações contratuais de reforço da rede e ao nível das manutenções”. Porém, os especialistas, como ontem no PÚBLICO António Salgueiro, que liderou o Grupo de Análise e Uso do Fogo entretanto praticamente extinto, são muito menos benevolentes no balanço que fazem ao funcionamento do SIRESP: “Gastámos cerca de 400 milhões de euros num sistema de comunicação de protecção civil e, passados cerca de dez anos, continuamos com um sistema que falha, quando os sistemas de comunicação da protecção civil têm recursos alternativos para que nunca falhem ou que a probabilidade de falharem seja muito baixa. É inacreditável.”

Ainda há pessoas desaparecidas?

As autoridades estão ainda a cruzar os dados recolhidos por cada uma das forças, segundo o Ministério da Administração Interna. Continua aberta a linha para informações sobre vítimas e desaparecidos: 800 246 246.

Como é feita a identificação dos corpos?

Uma das técnicas primárias na identificação de cadáveres em desastres como o de Pedrógão Grande faz parte da medicina dentária forense e apoia-se na comparação dos dentes da vítima com os registos dentários existentes. Nos cadáveres que ficaram carbonizados não há impressões digitais, como terá ocorrido nalgumas das vítimas deste incêndio. Quando as temperaturas são muito elevadas, a partir dos 400 graus Celsius, o material genético dos ossos também fica destruído, impossibilitando uma identificação por este meio. Outras técnicas secundárias são as medidas de identificação circunstancial — por exemplo, documentos legíveis, objectos pessoais, roupas ou, no caso dos corpos carbonizados nos carros, até a matrícula da viatura. Anteontem à noite, a ministra da Justiça garantiu que as autópsias aos cadáveres foram concluídas num tempo recorde de 48 horas mas que ainda há corpos por identificar no Instituto Nacional de Medicina Legal de Coimbra. A respectiva identificação, que está a ser feita em colaboração com a Polícia Judiciária, tem que ser feita por via do reconhecimento dos cadáveres por familiares. Francisca Van Dunem explicou que, caso as famílias apareçam a reclamar os corpos, será ainda possível extrair material genético para fazer o processo de comparação, nos casos em que haja dúvidas.

Quem vai investigar o que se passou?

O Ministério Público já abriu um inquérito-crime para apurar tudo o que esteja relacionado com a origem deste fogo. Noutra frente, o primeiro-ministro, António Costa, garantiu ontem “total abertura e disponibilidade” do Governo para que uma comissão técnica independente, formada pelo Parlamento a pedido do PSD, possa “tão depressa quanto possível” adiantar todas as respostas que faltam para compreender cabalmente o que se passou e a reacção das autoridades. A Inspecção-Geral da Administração Interna também deverá ser chamada a abrir um inquérito à actuação das forças de segurança, sendo que muitos dizem não compreender por que é que este inquérito está a tardar tanto, tomando como exemplo o facto de, no ano passado, em São Pedro do Sul, quando as chamas causaram uma vítima mortal, Constança Urbano de Sousa ter ordenado de imediato a intervenção da IGAI.

O que vai ser feito, no plano legislativo, para prevenir que fogos como o de Pedrógão, que terá queimado cerca de 30 mil hectares, quase quatro vezes a dimensão de Lisboa, atinjam tais proporções?

Em 28 dias, até dia 19 de Julho, os deputados no Parlamento propõe-se discutir e aprovar a reforma florestal que esteve dois meses parada na Comissão de Agricultura e Mar da Assembleia da República. Marcelo Rebelo de Sousa já avisara que o Parlamento teria, se preciso fosse, de adiar as férias para deixar aprovado tudo o que dissesse respeito à reforma florestal. Entre as medidas previstas encontram-se alterações ao cadastro florestal, que visam simplificá-lo, benefícios fiscais para a gestão florestal, a rearborização com travão ao eucalipto e a criação do banco nacional de terras, para onde reverterão todos os terrenos “sem dono” registado. A ideia é criar zonas de descontinuidade, alterar a monocultura do eucalipto e “tornar a floresta mais resiliente” ao fogo, segundo Urbano de Sousa. “Este é o momento para fazermos a reforma há muito adiada da floresta”, reforçou, por seu turno, o primeiro-ministro, António Costa, no final do Conselho de Ministros de ontem dedicado aos fogos. com Andrea Cunha Freitas

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