Bagão Félix em 2080? Tenho medo do conhecido, mais do que do desconhecido

Pedimos ao cronista do PÚBLICO António Bagão Félix, economista e que já teve em mãos as pastas da Segurança Social e das Finanças, o exercício de se imaginar nesse longínquo ano de 2080, em que seremos apenas 7,5 milhões, e velhos na maioria.

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Tenho medo do conhecido, mais do que desconhecido”, sábias palavras do pensador francês Paul Valéry (1871-1945). Tão sábias que são cada vez mais actuais, agora que o conhecido se deixou envolver, paradoxalmente, numa difusa teia de imprevisibilidade (diferente de incerteza).

Foi desta asserção que imediatamente me lembrei ao ler as projecções do INE para a estrutura da população residente em Portugal no longínquo ano de 2080.

Escrevo este texto na data de publicação do estudo, o que não me dispensará de o revisitar com maior profundidade. Depois de ter lido as suas 19 páginas, fiquei entre a depressão cavada (a minha face solidária) e o alívio encravado (a minha face egoísta).

É que, em 2080, teria 132 anos de idade. Dizia Keynes que o longo prazo é um exagero, pois que nessa altura já estamos mortos. Cá por mim, não há “factor de sustentabilidade” que me salve. Mesmo a minha filha mais nova teria 114 anos. Com um pouco de sorte, espero bem que as minhas netas ainda cá estejam. A mais velha com 77 anos e a mais nova de todas com uns joviais 65 anos, certamente ainda a trabalhar e longe da reforma (se a houver).

Por tudo isto, estou a reflectir para as minhas bisnetas e trinetas (cá por estas bandas, só nascem mulheres…). Espero que todas elas não leiam o que hoje – 29 de Março de 2017 – escrevo, ou se alguma vez lerem, por descuido, não me levem a sério.

A questão demográfica tem consequências assinaláveis na Segurança Social (em particular nas pensões e, também, no desemprego), Educação, Saúde, cuidados continuados, etc. E se, na Educação, a despesa diminuirá (menos estudantes), nas outras áreas, o seu impacto no agravamento de custos será muito forte (nos cuidados de saúde e geriátricos será elevadíssimo). Aqui limito-me a potenciais consequências nos sistemas públicos de pensões.

Há uma velha tabuleta num famoso bar em Dublin que diz, mais ou menos, o seguinte: “Se você está a gostar da nossa televisão a cores, tome atenção: a nossa televisão é a preto-e-branco”. Com este estudo do INE – que não é surpreendente na tendência, mas talvez um pouco na magnitude – a demografia passa fundamentalmente a ser a “preto-e-branco”. O que vai exigir, agora e cada vez mais aceleradamente, que, em vez de divagações e discussões estéreis, procrastinações cobardes e visões redutoras e egoístas de puro curto-prazo, se olhe para o assunto de modo a tentar “pôr o preto no branco”.

O cenário é “dantesco” (não recomendável para pessoas mais sensíveis, como sói dizer-se nas televisões). Calma, porém, porque a projecção é uma hipótese que é uma coisa que até pode não ser, mas que a gente faz de conta que é para ver o que seria se fosse…

Notícias num telejornal

Em 2080, de acordo com o cenário central de projecção, Portugal perderá 27% da sua população (dos actuais 10,3 para 7,5 milhões de pessoas), o número de jovens sofrerá uma queda de 40% (de 1,5 para 0,9 milhões), ao invés, os idosos aumentarão 33%, considerando ainda a actual fronteira etária dos 65 anos que não será, seguramente, a de 2080 e a população em idade activa terá uma impensável diminuição de 6,7 para 3,8 milhões de pessoas (cerca de 43%).

Perante isto, ficciono uma de muitas notícias de um telejornal, algures entre 2020 e 2080 – mais precisamente em 2048, faria eu 100 anos – num dia em que a abertura do mesmo se fez com imagens de um treino da selecção nacional que prepara o Mundial desse mesmo ano, após ter desembarcado no Aeroporto Cristianinho, em Porto Santo. Só muito depois, se noticiou o tema demográfico, apenas quanto baste para não martirizar as almas e não incomodar o poder. Como hoje, aliás. Ainda e sempre o ciclo eleitoral mais aliciante que o ciclo geracional, tudo em nome de uma falsificada ética de egoísmo esclarecido (enlightened self-interest).

Numa versão de oxímoro temporal de um “regresso ao futuro”, a notícia rezará assim:

– O “factor de sustentabilidade” (lembram-se que foi criado na primeira década do século e lá vai sobrevivendo embora muito mutilado?…) implicará que se acelere a passagem da idade legal de reforma para os 70 anos e 4 meses (o que que já atingirá os trabalhadores que iniciaram o seu trabalho por volta do ano 2000);

– A forma de cálculo das pensões será alterada (ainda não se sabe com que efeitos retroactivos) passando a ser indexada a um factor medido por um logaritmo de não rejuvenescimento geracional (ainda em estudo e suficientemente complexo para os futuros reformados não perceberem);

– A TSU (extinta em 2031) será repristinada, incidindo exclusivamente sobre as pensões em pagamento, e continuando os impostos gerais a financiar os encargos com a Segurança Social;

– A bonificação de pensão para os pais será duplicada, nos próximos 5 anos, exclusivamente para quem tenha a ousadia de ter … dois filhos, como a dos avós se tiverem quatro netos e bisavós se alcançarem os oito bisnetos;

O noticiário terminou este assunto com uma declaração solene do chefe de Governo (um optimista), corroborada pelo chefe de Estado (também optimista) de que, com as novas medidas, o sistema de Segurança Social estará garantido até 2100, em consonância com os estudos do 12.º Livro Branco da Segurança Social. Nada de diferente de afirmações semelhantes no início do século e de que as pessoas mais velhas se lembrarão ainda.

No dia seguinte, as críticas choveram de todos os quadrantes, mas – do mal o menos – já ninguém falou de plafonamento ou similar, assunto considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em Fevereiro de 2037.

Também, por essa Europa fora, este assunto está na ordem do dia, ainda que o que resta da antiga União Europeia continue a trabalhar afincadamente em “no papers” e relatórios suficientemente vagos para nada resolver.

Terminada a ficção do noticiário de 2048, volto, angustiado, a 29 de Março de 2017. Aposto que, nos próximos dias, estas projecções do INE vão ser noticiadas q.b., para logo mergulharem rapidamente na bruma do tempo.

A maior parte das mulheres que vão ser mães já nasceu

O trabalho do INE é feito – e bem – com base em hipóteses médias entre uma mais conservadora (ou pessimista) e outra mais desafiante (ou optimista). No caso do índice sintético de fecundidade (o número de filhos por cada mulher em idade fértil), o valor central é de 1,55 filhos por mulher, no intervalo entre 1,35 e 1,75. Mesmo este último valor (o optimista) não é suficiente sequer para renovar a geração (seria necessário um valor muito ligeiramente acima de 2 filhos). A questão fundamental aqui tem a ver com a inércia da natalidade. Por força de taxas de fecundidade muito baixas (estamos agora algures entre 1,2 e 1,3, o valor mais baixo no mundo a par da Bósnia-Herzegovina), as mulheres que podem vir a ter filhos no futuro são cada vez menos em comparação com a geração anterior. Por outras palavras, a fertilidade até pode aumentar por mulher, mas o número de mulheres nessas condições é menor, logo os nascimentos são menos. Digamos que nos próximos 35 anos, a maior parte das mulheres que vão ser mães já nasceu. A questão da natalidade para efeitos do sistema social e de pensões só poderá contribuir, marginalmente, para o equilíbrio (ou menor desequilíbrio). O que não quer dizer, evidentemente, que não se tomem rapidamente medidas de estímulo à natalidade, até por todas as outras e decisivas razões, que não são agora para aqui chamadas.

Entretanto com a notável evolução da esperança de vida à nascença que se vem verificando (o estudo prevê, em 2080, números à volta de 93 anos para a mulher e 88 anos para o homem), o índice de envelhecimento mais do que duplicará, podendo vir a atingir mais de 300 pessoas com mais de 65 anos por cada 100 crianças e jovens até aos 14 anos.

Todavia, a percentagem de população activa sobre a população total (taxa de actividade) não será muito diferente da que hoje se verifica. É que o aumento da população mais velha equivalerá, em boa parte, à diminuição da população infantil e jovem.

E, perante isto, chego “pretensiosamente” (quem sou eu para dizer o que será a vida em 2080!) ao ponto-chave do problema: a produtividade, entendida no seu sentido amplo, quantitativo e qualitativo. Ou seja, se a relação “activos (contribuintes) /inactivos (beneficiários)” se deteriora, se a demografia é adversa (por más razões, a inércia da natalidade e por boas razões, o viver-se mais tempo), só o crescimento sustentado pela inovação e tecnologia e, consequentemente, pela produtividade pode e deve ser amiga dos futuros reformados.

Pray As You Grow

Há um ponto que o estudo suscita. É provável que o desemprego (ainda que com uma profunda alteração da “geografia das profissões e actividades”) tenda a ser bem menor do que nos dias de hoje para uma população activa que passaria de 6,7 para 3,8 milhões. Isso pode ser uma boa notícia a 50 anos de distância, também tendo em atenção que – nos dias de hoje – o que mais afecta o equilíbrio da Segurança Social é o desemprego (perda de receitas fiscais de IRS e TSU e até IVA e aumento da despesa social), mais do que a demografia que esta, no período recente, tem sido “domada” pelo factor de sustentabilidade e reformas paramétricas decrementais postas em vigor.

O estudo ainda considera outra variável demográfica (emigração / imigração), que entendo não comentar. É, seguramente, a variável mais discricionária, e, portanto, a previsão de cenários para 2080 pode ser um bom exercício académico, mas não passa disso. Eu já estarei “migrado”, há muito…

Não sei se, naquele distante ano, ainda haverá o sistema de repartição para financiar as pensões, conhecido pelo acrónimo inglês PAYG (“Pay As You Go”). Mas, à cautela, e enquanto crente, talvez sugerisse acrescentar um “r” à frase que ficaria: “Pray As You Go”. Ou para ser mais coerente com a ideia de que é pela produtividade que poderemos aliviar o sombrio cenário, acrescentaria ainda um segundo “r”: “Pray As You Grow”.

Há já alguns anos, um bom amigo lembrou-me um texto que diz assim: “Por causa do volume acentuadamente crescente de pensões por velhice ao longo dos últimos anos, recomendamos uma redução de um terço nas respectivas pensões a ser posta em prática o mais cedo possível …”. Trata-se de um excerto de um relatório escrito na China, durante a dinastia Han (206 AC – 220 DC), citado, por sua vez, numa obra de Nelson Chow (“The administration and Financing of Social Security in China”, Universidade de Hong-Kong). Está, assim, desvendado o milenar segredo de quem pensa que a única reforma é “cortar, cortar, até não haver”.  Por isso, as crianças nascidas e a nascer não se podem esquecer do aviso de Anatole France: “A imprevidência dos povos é infinita, mas a dos governos é legal”.

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