Entrevista

“Temos em França uma política de cuidados para a infância sofisticada e generosa”

Jeanne Fagnani é uma conhecida especialista em políticas de família em França, país que é considerado um caso de sucesso na promoção da natalidade. Investigadora emérita do Centre National de la Recherche Scientifique, investigadora associada do Institut de Recherches Economiques et Sociales, em Paris, desconstrói alguns “mitos”. Por exemplo: o de que na França há muitos bebés porque é um país que recebe imigrantes. Diz que não é assim.

A socióloga, que durante anos foi consultora da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), afirma que as segundas gerações, os filhos dos imigrantes já nascidos em França, adoptam comportamentos reprodutivos parecidos aos do resto da população francesa.

O segredo francês — país que tinha em 2013 a mais alta taxa de fecundidade da União Europeia — é outro, diz. E passa pelas políticas que desenvolveram uma vasta rede de serviços de guarda para as crianças que permite às mulheres terem uma carreira e deixarem os filhos, “sem culpa”. E, muito importante, sem gastarem muito dinheiro. Fagnani explica tudo isto no jardim da sua casa, a menos de 10 quilómetros do centro de Paris, num final de tarde, depois de, precisamente, ter ido buscar o neto à creche. “Os avós têm um papel muito importante” nas escolhas que os casais fazem, sublinha.

Como é que uma especialista em assuntos de família olha para um país como Portugal, que tem o mais baixo índice de fecundidade da União Europeia (1,21 nados-vivos por mulher), e como é que o compara com França (1,99)?
Portugal fez coisas positivas para promover a partilha de responsabilidades nos casais. Fez isso com a licença parental. Em França não há uma verdadeira preocupação com a igualdade de género. Nem há uma verdadeira preocupação com os pais [homens]. Em França há essencialmente duas preocupações: a França quer que as mulheres estejam no mercado de trabalho, porque precisa delas, sobretudo das mais qualificadas. Depois, não quer que as mulheres reduzam o número de filhos que têm. Não quer que aconteça o que acontece na Alemanha, que é as mulheres dizerem: “Vou ter um filho e vou para casa cuidar dele” — e, por isso, na Alemanha a taxa de fecundidade é muito baixa [1,39 filhos por mulher].

Em França dizemos: “Queremos as mulheres no mercado de trabalho e queremos que sejam mães.” Isto é muito importante para perceber por que é que temos uma política de cuidados para a infância tão sofisticada e generosa, com as creches, com as amas registadas, altamente subsidiadas pelo Estado. Comparando com Portugal temos mais modelos de guarda de crianças, altamente subsidiados pelo Estado...

Há uma diversidade de opções...
Sim. Diversidade. As famílias optam mais pelas creches e pelas amas que são muito supervisionadas pelo Estado — nem todas as amas são muito qualificadas, mas todas são obrigadas a fazer uma formação para ser ama e são supervisionadas por serviços médicos, por exemplo. Podem ter três ou quatro crianças a cargo, conforme as situações.

Como se distribuem as crianças em França por essas diferentes modalidades de guarda?
Cerca de 15% das crianças com menos de 3 anos, cujos pais (ambos os pais) estão empregados, estão a tempo inteiro na creche, incluindo o almoço, até às 18h30. E 30% das crianças em que os pais estão ambos empregados estão em amas subsidiadas, o que não é caro — os pais pagam em função do rendimento. Quanto mais rico se é mais se paga. E esta é a principal razão para que tantas mulheres estejam no mercado de trabalho.

Em Portugal, também há, como em França, uma grande tradição de as mulheres estarem inseridas no mercado de trabalho. Elas trabalham e trabalham muito. Mas a maioria das mulheres portuguesas só tem um filho. Porque é difícil, porque é caro, porque é complicado conciliar a vida familiar e a carreira. Em França, as mulheres têm muito orgulho (e isso é muito valorizado) em ter uma carreira, um trabalho a tempo inteiro e filhos. Na Alemanha, por exemplo, as normas são completamente diferentes. Se uma mulher tem um bebé, até ele ter 3 anos acha-se que ela não deve trabalhar. Ou então, que deve trabalhar apenas poucas horas por dia, em part-time.

É a ideia de que uma mãe que trabalhe a tempo inteiro não é boa mãe...
Exactamente. O que não acontece, de todo, em França, pelo contrário: todas as estrelas famosas, as mulheres de negócios bem-sucedidas, gostam de aparecer com os filhos. Dizem que querem filhos. Mesmo que não tenham muito tempo para eles.

Mas ainda assim, em França, 30% das mulheres trabalham a tempo parcial. O que é bastante. Em Portugal são apenas 15%.
É verdade... Mas as francesas têm horários em part-time longos, de 30 horas por semana (na Alemanha trabalham sete ou oito horas por semana, é bastante diferente). E quando a criança vai para a escola, aos 3 anos, a maior parte das mulheres francesas volta ao trabalho a tempo inteiro.

Mas acha que para um país ter boas taxas de natalidade tem de ter muitas mulheres a trabalhar em part-time, como a França tem? Em Portugal, o Governo anunciou a intenção de apoiar as mulheres que querem trabalhar a tempo parcial quando as crianças são pequenas.
Está-me a perguntar se o desenvolvimento do part-time leva as mulheres a ter mais filhos e não é assim tão simples. Não é. Quando falamos do comportamento reprodutivo das pessoas estamos a falar de um fenómeno muito, muito complexo. Não é por se mudar um parâmetro que algo vai mudar se não se mudarem outros parâmetros. É claro que ajuda, mas nunca é simples. Se algumas mulheres tiverem bons part-time, o que significa ter um horário dentro das horas “normais”, vai ser mais fácil conciliar vida profissional e familiar. Mas as mulheres que querem progredir na sua carreira, que têm esse objectivo, que querem ter bons trabalhos, elas sabem que se trabalharem em part-time serão penalizadas no mercado de trabalho. Por isso muitas não querem...

Mesmo em França, com os apoios?
Mesmo em França. As mulheres com empregos menos qualificados é que dizem que, de qualquer modo, não têm uma carreira, só precisam do dinheiro, e se começam a trabalhar em part-time e têm uma ajuda do Estado para isso, para compensar a perda de rendimentos, então estas mulheres talvez trabalhem em part-time. Mas há outros problemas. A habitação, o desemprego... E as normas, as normas, as normas...

As normas, como assim?
Como criar uma criança? Dou um exemplo: cá, a criança fica entre seis e oito horas por dia na creche. Há países onde dizem: “Isso é horrível, oito horas! Como podem fazer isso às crianças?” As normas são muito importantes. Os valores e as normas. França é um país com a tradição da família. E onde o sistema de guarda e de educação das crianças é muito importante. Mas o sistema tem que ter qualidade. Porque se não as mulheres vão sentir-se culpadas [ao deixar os filhos].

Depois, a partir dos 3 anos de idade, temos a école maternelle [equivalente aos jardins de infância] que é grátis. E que é um sistema muito bom que temos em França.

E há vagas para toda a gente?
Sim. Tem de haver lugar para todos. O almoço é pago em função dos rendimentos — e para as pessoas mais pobres é muito barato, ou até gratuito nalguns locais. O problema é que como há muitas crianças em França os rácios educador/aluno estão a aumentar, o que torna as condições de trabalho mais difíceis.

Há muita gente que diz que em França os indicadores de natalidade são bons porque há muitos imigrantes que têm muitos filhos. É verdade?
Isso não é de todo verdade. É um mito. As pessoas não dizem mas estão a pensar nos imigrantes de África. Que são uma pequena minoria na enorme população francesa [quase 66 milhões]. Apenas 7% das mulheres em idade de procriar são estrangeiras (ou seja, não são cidadãs francesas). Pelo que influenciam pouco o nível geral de fecundidade. Depois, a segunda geração dessas mulheres, filhas de imigrantes africanos, mas que já nasceram em França, elas ajustam o seu comportamento reprodutivo ao comportamento dos restantes franceses.

Portanto, os imigrantes e descendentes adoptam o mesmo padrão do resto da população...
Sim, dois filhos por mulher. Todos os demógrafos sabem isto. Mas os franceses não sabem... e o discurso da extrema direita, sabemos como é. É ridículo dizer que é a imigração....

Pode dar dados?
Os “imigrantes” (pessoas nascidas fora de França que não são cidadãos franceses) têm mais crianças, mas os seus descendentes têm um comportamento similar aos não-imigrantes: entre as mulheres que têm entre 50 e 59 anos, 26% das que são descendentes de imigrantes (nascidas em França) tiveram três filhos ou mais; é um pouco menos do que as outras, que não são nem imigrantes nem descendentes de imigrantes — entre essas, 28% tiveram três ou mais filhos.

Os montantes de apoios familiares que existem em França permitem a uma família com filhos viver sem trabalhar, à custa dessas prestações sociais, ou isso também é um mito?
É um mito excepto para as pessoas com rendimentos muito baixos. Se a mulher não é qualificada, se trabalha como empregada de limpeza, ou assim, se somar o custo com a guarda para as crianças, os transportes todos os dias, o comboio, o metro, etc, que custam dinheiro, ela vai preferir ficar em casa com o apoio do Estado. Mas quando a criança chega aos 18 anos, acaba, não têm mais nada. Estas famílias mais pobres têm mais filhos, mas são uma minoria. O que conta para as estatísticas [da natalidade] é a classe média e para a classe média não é suficiente [o que o Estado dá às mães se querem ficar em casa sem trabalhar].

Por falar em classes sociais, quem tem mais filhos em França?
Os muito ricos (não gastam muito tempo com eles, mas têm alguém em casa que cuida deles), têm três ou mais, mas na maior parte das vezes três. A classe média alta também. Depois há os pobres que também têm muitos filhos, talvez mais até do que três em média. A classe média tem dois filhos. Em França a classe média é muito forte, cobre um largo espectro... por isso a taxa de fecundidade em França é dois filhos por mulher.

O que é que diria a um ministro da Família em Portugal se ele lhe perguntasse o que é que lhe aconselhava a fazer para promover a natalidade?
Diria para desenvolver as políticas relacionadas com os serviços de guarda das crianças, para desenvolver bom serviços de guarda de crianças, com qualidade, diversificados — creches, amas... —, acessíveis, isto é muito importante.

Seria a primeira coisa?
Sim. E melhorar as condições de trabalho das mulheres. Para que possam trabalhar, ter trabalhos decentes, com horários decentes, e ao mesmo tempo ter filhos.

Quando diz melhorar as condições de trabalho, diz também promover o part-time?
Não, não, não. Melhores condições significa flexibilizar o trabalho, o que é diferente. Ter horários flexíveis, para conciliar melhor a vida profissional e familiar.

Em Portugal, ouço muitos homens e mulheres que chegam aos 30, 40 anos e não tiveram filhos que dizem: não tenho um salário suficiente para ter filhos. Ou, não ganho o suficiente para ter o segundo filho, no caso dos que já têm um. Não dão um passo para o segundo.
Em França também tem pessoas a dizer isso. Mas só dizem isso porque é socialmente aceitável dizer isso. As pessoas dizem: o Estado não me dá o dinheiro suficiente para ter filhos, o meu salário não é suficiente. Mas na verdade há outras razões.

Quais são? As pessoas não querem, simplesmente, é isso?
Não querem, ou não têm tempo... sabem que ter uma criança é algo que consome muito tempo. E muitas vezes dizem uma coisa que é muito importante em França, e creio que também será em Portugal: “Não tenho os meus pais para me ajudar.” Os avós têm um papel muito importante. Eu continuo a trabalhar mas tento ajudar sempre que posso. O grande problema é que muitos casais moram longe dos seus pais e não têm esse apoio.