Sobre as rádios-piratas e os contingentes

A desregulação dos transportes na rede pública de estradas estender-se-á a outras áreas?

 A propósito da manifestação de 10 de Outubro pelo sector do táxi, em que a definição de um contingente para transporte em veículos descaracterizados tem sido pedida, ouvimos dizer que não se podem definir tais limites para actividades comerciais privadas. Ouvimos também comparar a tentativa de regulamentação para este transporte com a legalização da actividade das rádios-piratas que aconteceu há vários anos. Ora, a legalização e regulamentação de tais rádios-piratas passou inevitavelmente por um processo muito semelhante ao da definição de um “contingente” na gestão do espectro das radiofrequências usadas em tais transmissões.

 A maioria dos países considera o espectro de radiofrequência como uma propriedade ou recurso natural exclusivo de cada Estado, tal como a água, a terra ou a rede de estradas públicas construídas nessa terra. A gestão do espectro de radiofrequência, que passa nomeadamente pela atribuição de licenças e respectivas frequências a determinadas estações transmissoras, visa mitigar a poluição do espectro de rádio, evitando e resolvendo interferências, de forma a maximizar o benefício do espectro de rádio utilizável. Fará obviamente sentido uma actividade de regulação idêntica, através da definição de contingentes para actividades comerciais de transporte de passageiros, que vise maximizar o benefício de uma rede de estradas públicas.

Sem tal regulação estaríamos a permitir que as diversas empresas de transporte de passageiros em veículos descaracterizados deteriorassem a seu bel-prazer uma propriedade exclusiva de cada Estado, tão fundamental e importante como é a rede pública de estradas. Se existe regulação na gestão do espectro de radiofrequência, que é um recurso naturalmente renovável, mais sentido fará que exista regulação na exploração comercial da rede de estradas, que implica avultados investimentos na sua construção e manutenção. 

A existência de um contingente apenas para táxis cria também uma óbvia situação de concorrência desigual com o transporte em veículos descaracterizados, para o qual não se propõe um contingente. Um factor de concorrência crítico é o tempo de recolha do passageiro, que está obviamente ligado ao número de carros em operação. No concelho de Odivelas, por exemplo, com uma população de 150 mil pessoas, o contingente de táxis é de apenas 60 veículos, o que faz com o que o tempo médio de recolha seja superior a cinco minutos. Claramente, uma empresa de transporte em veículos descaracterizados poderá colocar cem ou mais veículos em operação neste concelho, criando uma vantagem competitiva determinante sobre os táxis, ao permitir reduzir substancialmente o tempo de espera dos passageiros. Note-se também que os contingentes para táxis não se reduzem apenas à definição do número máximo de veículos licenciados para tal transporte em cada concelho. Associada à definição do número total de veículos licenciados vem também a definição do número de lugares para estacionamento em praças de táxis. Por exemplo, no concelho do Porto, o contingente de táxis é actualmente de 726 veículos, estando definidos 531 lugares de estacionamento, que são fundamentais para tornar eficiente este transporte em ambiente urbano, evitando a circulação dos veículos sem passageiro ou a sua imobilização em locais onde é proibido estacionar. 

O ministério que tutela o transporte em veículos descaracterizados é o Ministério do Ambiente, que tem referido por diversas vezes a importância das metas definidas no Acordo de Paris, em que a redução das emissões causadas pelo transporte rodoviário nas cidades terá uma importância fundamental.  Não se entende, portanto, que nada seja dito sobre os lugares para estacionamento de uma frota potencialmente ilimitada (sem contingente) de transporte em veículos descaracterizados, parecendo que se assume que circularão também sem passageiros pela rede pública de estradas, ou que estacionarão de forma ilegal, perturbando, em qualquer dos casos, a mobilidade rodoviária nas nossas cidades.

Esta perturbação não é de todo insignificante, como bem realça o professor Donald Shoup, um dos principais especialistas mundiais na economia do estacionamento: “Uma quantidade surpreendente de tráfego não é causada por pessoas que vão para algum lugar. É antes causada por pessoas que já chegaram.” Estima-se que 30% do congestionamento rodoviário nas nossas cidades seja causado pelo fenómeno de circulação à procura de um lugar de estacionamento, com as consequentes emissões de gases poluentes associadas a tal congestionamento rodoviário. Num cenário em que nem sequer se procura um lugar de estacionamento, circulando-se simplesmente enquanto se aguarda pelo próximo serviço de recolha de um passageiro, as consequências no congestionamento rodoviário só podem ser amplificadas, e é incompreensível que o Ministério do Ambiente não salvaguarde esta questão na regulamentação do transporte em veículos descaracterizados.

Voltando às rádio-piratas e ao licenciamento de espectro, será interessante observar nos próximos tempos se esta tendência de desregulação do transporte na rede pública de estradas se estenderá também a outras áreas, assistindo nós à “uberização” da actividade dos operadores das redes móveis. Há, no entanto, uma diferença fundamental: é que a ausência que até agora se verificava das grandes empresas multinacionais no sector do táxi em Portugal está longe de acontecer nas licenças atribuídas para utilização do espectro de rádio nacional.

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