Sob o signo da irresponsabilidade

Lamentavelmente, não só os políticos, mas nós próprios, continuamos a tolerar o intolerável, o que é visível na indiferença do olhar perante um rosto em sofrimento.

Bem sei que tudo é natural

Mas ainda tenho coração…//

Boa noite e merda!...

(Estala, meu coração!)

(Merda para a humanidade inteira!)

Álvaro de Campos

1. Esta a epígrafe adequada à falsa, e por isso mesmo perversa, humanidade com que a Europa e outros países do mundo têm fingindo tratar a intolerável situação dos refugiados, preocupando-se, descaradamente, em divulgar artigos apologéticos do trabalho desenvolvido, sem que o vejamos, e contando, como sempre, com a cumplicidade activa de alguns jornalistas e comentadores, normalmente arautos do “choque de civilizações” e hábeis em alimentar preconceitos, racistas e religiosos, e desencadear medos assentes não no que nos aproxima dos outros, mas no que nos diferencia.

Ficámos perplexos quando ouvimos, há já uns meses, a jornalista Helena Matos invocar a sua condição feminina, num debate na televisão estatal, desfiando uma série de adversativas que pretendiam relevar o seu receio pelo acolhimento dos refugiados. Naturalmente, que na confusão do seu discurso, ia intervalando uma pretensa compaixão que, naturalmente, não poderia prevalecer sobre a sua preocupada “condição feminina”. Também alguma comunicação social gostou de noticiar, numa tonalidade veladamente escandalizada, que refugiados, a viver em miseráveis campos, ditos de acolhimento, se haviam recusado a vir para Portugal, uma notícia que foi necessário a Plataforma para os Refugiados desmentir, de forma veemente, porque de uma vil mentira se tratava.

Lamentavelmente, não só os políticos, mas nós próprios, continuamos a tolerar o intolerável, o que é visível na indiferença do olhar perante um rosto em sofrimento, rosto que deveria exigir responsabilidade e solidariedade, na verdade, inexistentes, salvo raras excepções, como recentemente a atitude nobre do ex-juiz australiano, Jim Macken, de 88 anos que, no meio de tanta inércia e de tanta insensibilidade, propôs, em carta dirigida ao ministro da Imigração e Protecção de Fronteiras australiano, Peter Dutton, trocar a sua situação de cidadão com plenos direitos pela de um refugiado a viver, “situações aterradoras”, no campo de Manus ou de Nauru.

2. Numa reunião familiar, soube de uma situação flagrante, relacionada com o ensino, e relatada directamente pela encarregada de educação de uma criança, a frequentar o 4.º ano do 1.º ciclo cuja avaliação, praticamente a finalizar o ano lectivo (2015-2016), era negativa em todas as matérias.

Ciente de que o seu educando não transitaria de ano e desejando receber algumas orientações, a encarregada de educação foi falar com a professora que, surpreendentemente, a informou que tinha decidido a aprovação do seu educando. Perante a preocupação da encarregada de educação sobre o que poderia acontecer no 5.º ano, a professora sossegou-a, explicando-lhe “pedagogicamente” que as matérias seriam outras, o ambiente também e tudo isso facilitaria a integração e a recuperação.  Isto passou-se recentemente, mas vi-o defendido desde a década de 80, momento em que se deu início ao discurso da facilidade e defesa da pretensa felicidade dos alunos, numa “baba pedagógica” que se se vai tristemente mantendo, a par de uma deficiente formação de professores. Convém salientar que este aluno do 4.º ano foi um exemplo de quem transitou do 1.º para o 2.º ano sem saber ler, tendo chegado ao 4.º ano a fazê-lo de forma muito deficiente.

Na verdade, qualquer um, e pela sua própria experiência de vida, que nada tem a ver com estudos encomendados sobre o óbvio, sabe que o 1.º ciclo é a coluna em que assenta todo o ensino e nele se deve intervir com seriedade, no sentido de ultrapassar as dificuldades logo que elas surgem, o que só será possível se esses alunos forem de imediato atendidos. Isso implica que toda a atenção seja dirigida para eles, para esse grupo específico. Daí a necessidade de mais professores, um aspecto que a política economicista de muitos anos tem impedido, facto que explica igualmente, não só neste ciclo de estudos, mas em todos os outros, a contínua desmotivação dos professores e o seu extremo cansaço, aliás, visível na generalidade das pessoas porque fruto de uma política que assim o determina.

3. Presenciei, com a Reforma de 2003 do ensino, a euforia de um discurso propício à infantilização, à irresponsabilidade e à auto-comiseração que, de forma óbvia, contagiou muitos alunos, acentuando a sua indisciplina, ao mesmo tempo que se apontava todas as falhas do ensino aos professores quando, na verdade, fruto da inércia e de decisões precipitadas de sucessivos ministérios da Educação. Recordo, em notícia do jornal Público, e a propósito da indisciplina, que um aluno lamentava que a Escola “não ensinasse os alunos a não partir vidros, por exemplo”.

Refiro esta situação por tê-la associado, não só à notícia dos jogos de futebol do Europeu, oferecidos pela GALP a Secretários de Estado que, seduzidos infantilmente por tal oferta, a aceitaram, mas também à decisão paternalista, decorrente da polémica suscitada, em redigir uma espécie de regulamento que enunciasse o que devia ou não ser feito, em situações semelhantes, pelas pessoas que ocupam cargos políticos, como se estas não soubessem pensar e precisassem de ser esclarecidas sobre o que é, ou não, ético. No entanto, juraram, no momento da sua investidura, servir o país e não servir-se dele em proveito próprio.

A dignidade em troca de um jogo de futebol.

Professora

Sugerir correcção
Comentar