Segredo de justiça? E que segredo de justiça?

Não se percebe qual a dificuldade em dizer que se contabilizaram x vítimas pelos critérios y. E não há nenhuma dificuldade.

Já tem sido assinalado por diversos colegas, mas não é demais reforçar: a invocação do regime de segredo de justiça em relação ao incêndio de Pedrógão Grande parece ser efectivamente um pouco exótica ou pelo menos pode merecer alguma ponderação adicional. Senão vejamos:

  1. estamos perante uma investigação para apurar a eventual existência de um crime, mas todo o País sabe há semanas que essa investigação está em curso, até pelos próprios comunicados de imprensa do Ministério Público (MP), pelo que quanto a isso não há segredo possível;
  2. não se conhecem arguidos ou vítimas que tenham requerido a aplicação do regime de segredo de justiça, eventualmente para protecção de sua identidade ou por outros motivos;
  3. as vítimas mortais deste incêndio florestal em concreto são obviamente conhecidas de muitas pessoas – pelo menos dos seus familiares, amigos e vizinhos, das autoridades locais, do registo civil quanto ao seu óbito, de diversa imprensa que tem publicado os seus nomes, perfis, circunstâncias de morte, etc. –, e a sua identidade ou o número de vítimas não podem ser elementos decisivos de investigação cujo segredo deve ser preservado para proteger a recolha de prova;
  4. qualquer inquérito à eventual prática de um crime, correndo sob direcção do Ministério Público, é hoje em dia público – essa é a regra (artigo 86.º, 1, do Código de Processo Penal - CPP) –, a não ser que um arguido, assistente ou vítima ou o próprio Ministério Público requeira, nos primeiros casos, ou determine, no segundo caso, a sujeição a segredo de justiça. Se o MP o fez neste caso, como o justifica? Porquê? E entende que até o número de vítimas que está a considerar deve estar sujeito a segredo processual?
  5. A única hipótese para justificar o regime de segredo de justiça parece ser a protecção da identidade das vítimas enquanto elemento de reserva da sua vida privada, o que o n.º 7 do artigo 86.º do CPP prevê. Protecção da identidade, não do número de vítimas. Mas fará sentido invocar-se a reserva da vida privada em relação a factos sujeitos a registo público obrigatório, como o óbito? Admito que isso possa ser discutido – especialmente quando o relevante, no caso, são as circunstâncias dessa morte.

Em suma, a quem quer por força mais um novo escândalo a que possa associar o Governo, faça ele sentido ou não, o suposto segredo de justiça aqui invocado garante-lhe munições para essa triste tarefa, como o PSD procura fazer.

Mas, por outro lado, por que deverá ser o Ministério Público a responder por uma contagem das vítimas mortais naquilo que é uma calamidade pública e na qual diversos serviços públicos tiveram intervenção e lidaram directamente com as vítimas, designadamente na verificação dos óbitos e das suas causas?

Os próprios membros do Governo, ainda no decurso do incêndio, davam dados em directo nas televisões sobre o número de vítimas, necessariamente falíveis, sem se escudarem num qualquer inquérito que deveria surgir a cargo do MP...

Não se percebe qual a dificuldade em dizer que se contabilizaram x vítimas pelos critérios y. E não há nenhuma dificuldade: o Governo, através do Ministério da Justiça, explicou que o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses contabilizou um dado número de vítimas resultantes do incêndio. Essa é uma função e um dever da administração e do Governo, não do MP. O problema existirá se esse número for substancialmente distinto da realidade, o que até agora não foi demonstrado. 

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