Se tem objecções à felicidade, não leia isto

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A M. nasceu sem cabelo, sem unhas, sem dentes. Pronto, está dito. Assim de chofre, sem paninhos quentes nem lamúrias. A M. é minha sobrinha, embora na verdade seja minha prima. Como não tenho irmãos, ela é o mais próximo que tenho de sobrinha. Os outros falam dos filhos, eu falo dela.

A M. nasceu sem cabelo, sem unhas, sem dentes (ou eles é que não nasceram). Parece que já foi há muito tempo que entrei na maternidade, sem saber o que dizer à mãe, a minha prima – o mais próximo que tenho de irmã. Estava toda a gente à espera que eu dissesse alguma coisa e eu sem nada para dizer. Tive insónias e insónias e depois lá esbocei uma frase que repeti, como uma cassete, a toda a família que procurava explicações e soluções em ciências e medicinas que não as tinham – ou não as têm como todos queriam. Esbocei a frase e engoli a cassete:

– A M. vai ser muito feliz.

É mesmo minha. E acredito mesmo nela. Não errei, só no tempo verbal. A M. não vai ser muito feliz, a M. é muito feliz. Mas isso eu não sabia quando ela nasceu, só percebi quando começou a crescer. O cabelo não cresceu, nem as unhas, nem os dentes. Mas ela, sim. Está enorme, com dois anos e meio. Uma barriga redonda, come que se farta, mesmo sem dentes. Chama-me “Ia Oão” – quer dizer “Tia João”. Eu chamo-lhe doce, docinho, cuqueda, bebé, boneca. Sou a tia dos livros, todas as vezes que estou com ela, dou-lhe um. (No outro dia, enchi-a de colares e de pulseiras e, se fosse minha, enchia-a de folhos e de vestidos). Ela gosta que eu lhe conte histórias. Faço voz de lobo mau, ela ri-se como uma perdida.

Ela é mesmo cómica quando se ri. E adora palco, gosta que reparem nela, de ouvir as palmas. Quando percebe que nos estamos todos a rir porque ela se está a rir, ri-se ainda mais, ri-se já sem vontade, o que torna tudo ainda mais cómico. A M. adora palco. No outro dia pôs-se numa parte do chão mais elevada lá em casa, olhou para nós e disse:

– Meninas e meninos, o espectáculo vai começar.

Dançou, não sei como é que ela abana o rabiote, como diria Chico Buarque, tem um jeito que é só seu. Eu, que também gosto de palco, ponho-me ao lado dela a dançar. A nossa música preferida para estas coisas é o Twist and Shout.

A M. nasceu sem cabelo, sem unhas, sem dentes. Pronto, está dito, caiu o tabu. Nunca falo disto, nunca escrevo sobre isto e eu escrevo sobre tudo e mais alguma coisa. Farto-me de escrever sobre a minha família no Facebook e nunca disse as coisas tal e qual como elas são sobre a M., e ela é o maior centro da minha ternura.

É a única pessoa que me consegue fazer desligar de tudo. Quando estou com ela, não tenho espaço para mais nada. Tenho de lhe ler as histórias todas, fazer de fantasma com os lençóis, dançar, cantar, inventar as letras porque não as sei, mas depois fico toda vaidosa quando, no fim, ela diz que quer que seja a “Ia Oão” a dar-lhe a sopa. Faço de conta que ela não é a miúda mais sociável do mundo e que aquilo só acontece porque sou eu.

A M. está no infantário. Dois anos e meio depois, a primeira pergunta que todos fizemos foi:

– Os outros meninos disseram alguma coisa?

Mas os outros meninos não disseram nada. Todos os dias, a minha prima manda-me fotografias dela no infantário. Já temos material para uma Anita II: A M. faz compota, a M. dá um abraço, a M. planta uma flor, a M. come uma bolacha, a M. bebe o leite, a M. faz um desenho. A M. vive no Porto, eu em Lisboa, preciso dessas fotografias para ter a sensação que acompanho a M. a crescer.

Os outros meninos não disseram nada, e ela aparece tão feliz nas fotografias. Ela está feliz, até pediu uma escova de dentes – quer fazer o mesmo que fazem as outras crianças quando acabam de comer. A mãe deu-lhe a escova de dentes. A M. sabe que não tem cabelo, e não estranha. Diz:

– O pónei tem cabelo, a Ia Oão tem cabelo, a M. não tem.

Ficamos todos a olhar – “pois, a M. não tem cabelo” –, mas ela está feliz. Quando entrei naquela maternidade, há dois anos e meio, só errei no tempo verbal. Não sei se a M. vai ser muito feliz, porque nunca podemos saber essas coisas, mas que é muito feliz, isso, desculpem-me os pessimistas, isso é.

P.S. – Os testes genéticos continuam a ser feitos, ainda não se confirmou se a M. terá uma displasia ectodérmica.

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