Rótulo "Que se lixe a Troika" reprovado por pôr em causa "prestígio" dos vinhos do Douro

Eurico Figueiredo registou um vinho da sua marca Solar do Prado, na região demarcada do Douro, com o rótulo Que se lixe a troika. Mas a garrafa pode nem chegar às lojas. O rótulo foi reprovado pelo Instituto dos Vinhos do Douro e Porto por prejudicar o "prestígio da denominação de origem".

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Numa noite do final do passado mês de Novembro, Eurico Figueiredo teve um sonho: ia lançar um vinho registado com o nome Que se lixe a troika. Seria um sucesso, acreditava. Pouco tempo depois, estava a registar o nome e a preparar-se para enviar o rótulo ao Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP) para aprovação. Como foi avisado de que a sua escolha podia ser contestada, decidiu registar o vinho como Solar do Prado, a sua marca habitual, mantendo apenas no rótulo a imagem de uma pintura de parede onde se lê: Que se lixe a troika.

O pedido foi enviado para o IVDP a 28 de Novembro e a decisão da direcção dos Serviços de Fiscalização e Controlo do IVDP chegou, via email, a 16 de Dezembro: "A utilização da expressão Que se lixe a troika não é permitida uma vez que prejudica o carácter distintivo ou o prestígio da denominação de origem."

O comunicado do processo de aprovação refere que a maqueta da marca não está "em conformidade com o estabelecido na legislação em vigor". E remete para o n.º 3 do artigo 30.º do Regulamento nº242/2010 de 15 de Março.

Eurico Figueiredo ficou surpreendido com a resposta do IVDP: "Parece-me que é um nome perfeitamente inofensivo e o rótulo é claramente uma pichagem, pretensamente anarca, com o A com aquela roda à volta, com o K também muito grande, como geralmente aparece nestes rótulos de inspiração anarquista. Pensei que o país já tinha humor suficiente e a mentalidade censória já estava suficientemente ultrapassada para que não me incomodassem", explicou em declarações ao PÚBLICO.

O IVDP justifica a reprovação do rótulo Que se lixe a troika com a protecção do "carácter distintivo" e do "prestígio de denominação de origem", mas refere também um outro ponto da mesma legislação de 2010 que remete para a proibição da utilização de rótulos que sejam ofensivos "da ordem pública e dos bons costumes".

Para Eurico Figueiredo, esta é uma legislação retrógrada e desactualizada: "É vergonhosa para o país. Vai haver uma manifestação em Lisboa por causa do vinho? E se houver? De facto já não vivemos nessa época, pensava eu. A própria legislação é já salazarenta. É ridícula. Falar em nome da ordem pública e dos bons costumes, o que é isso dos bons costumes?", questiona, dizendo que a sua intenção foi sempre a de fazer um rótulo humorístico.

Contacto pelo PÚBLICO, Manuel Cabral, presidente do IVDP desde 2011, remeteu para o comunicado dos Serviços de Fiscalização e Controlo e recusou comentar o caso, dizendo apenas que não arrisca atribuir nenhuma classificação ao rótulo, "muito menos [a] de humorístico". Recusa ainda que as conotações políticas da inscrição Que se lixe a troika possam ter influenciado a decisão.

"O humor vende"
Em cima da mesa, Manuel Cabral tem agora um recurso superior hierárquico, enviado na passada sexta-feira por Eurico Figueiredo. O proprietário da Solar do Prado contesta a decisão, acusando-a de ser mais próxima "de um censor dos velhos tempos do salazarismo do que de um serviço público do Portugal democrático".

Foi a primeira vez que Eurico Figueiredo, psiquiatra e histórico socialista, tentou lançar um vinho com um rótulo do género.

Desde 2001 que produz vinhos tintos, brancos e rosés a partir da Vila Histórica e Vila Vinhateira de Trevões, concelho de S. João da Pesqueira, Região Demarcada do Douro. Todos com a marca Solar do Prado e todos, desde 2001 até 2010, ano em que lançou o último vinho, receberam a Denominação de Origem Controlada. Se quiser lançar para o mercado o vinho com o rótulo Que se lixe a Troika terá de o fazer sem esse selo de qualidade, desclassificando o seu vinho e recorrendo ao Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) com quem está, de resto, em negociações.

"Não me parece que por ter humor o meu rótulo desprestigie a denominação da origem Douro", afirmou ao PÚBLICO. Lembra o caso do rótulo Diálogo, lançado em 2011 pela sociedade Niepoort, que inclui tiras humorísticas do cartoonista Luís Afonso e que recebeu a Denominação de Origem Controlada Douro.

"Pensarei noutras soluções, mas se me chumbarem este rótulo procurarei outro também com humor, porque de facto não vejo que a Niepoort possa ter direitos que não são iguais para todos. O humor vende e quando não vende é porque o país está morto. Quando a gente já nem humor puder fazer é grave."

Em 2012, o caso do vinho Memórias de Salazar saltou para as páginas dos jornais depois de ter sido rejeitado, mas nesse caso pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que alegou que a marca continha "elementos susceptíveis de pôr em causa a ordem pública".

Proteger a denominação de origem
A Denominação de Origem Controlada — DOC é uma menção tradicional específica que pode ser utilizada em Portugal na rotulagem dos produtos com denominação de origem. O regulamento n.º 242 de 2010, de 15 de Março, do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP), estabelece o regime aplicável à protecção e apresentação das denominações de origem Porto e Douro e da indicação geográfica Duriense, da Região Demarcada do Douro, nomeadamente no que diz respeito à rotulagem e embalagem.

O artigo 30.º descreve em que circunstâncias um rótulo pode ser "chumbado": quando contenha indicações que "sejam ofensivas da ordem pública ou dos bons costumes"; "menções, termos, marcas, nomes, figuras, símbolos, ou quaisquer outros sinais ou matéria descritiva que possa induzir o consumidor em erro sobre a natureza, qualidade, quantidade, proveniência (…) que possa prejudicar o carácter distintivo ou o prestígio da denominação de origem (…)" ou, ainda, "nomes ou designações referentes a personalidades da história bem como santos ou outras figuras religiosas".
 
 
 

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